terça-feira, 12 de outubro de 2021

SAL DA TERRA

“Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é um clássico dos mais sofisticados da MPB. A gravação original, de 1975, com as vozes de Milton e Beto Guedes e músicos como Wagner Tiso e Toninho Horta, é hipnotizante.

“Fé Cega, Faca Amolada” é também uma provocação. Em seu uso geral, expressão que dá nome à canção é a síntese mais direta do potencial destrutivo da fé e da religião. Será disso que fala a letra?

“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
Um brilho cego de paixão e fé, faca amolada

Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada

Surpresa. O eu lírico que a tal fé cega não parece ser um fanático ou obstinado, mas alguém cheio de alegria, leveza e um entusiasmo que contagia. E esta canção é apenas um dos exemplos da abordagem da fé na obra de Milton Nascimento e de seus colaboradores.

A fé, nas letras de Milton, é muito diferente daquela fé que mata e morre a pretexto de recompensa futura. Ela não abdica da vida, nem se contrapõe a ela. Pelo contrário, é fé na vida, alegria e combustível para viver o tempo presente. A faca não é arma, é ferramenta para viver e resistir, apesar mesmo daqueles que empunham as armas.

Outro exemplo é “Maria, Maria” (1978), de Nascimento e Fernando Brant.

“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida

Os versos acima são tão compatíveis com a missa quanto com a praça. A fé segundo Milton não é ópio, não aliena o povo, antes, religa-o a si mesmo. Ela não se opõe à cultura. Pelo contrário, é manifestação cultural que demonstra a força do povo e desperta a fé do próprio povo em si mesmo.

Em um tempo e lugar movidos pela crença assassina, é difícil enxergar a dimensão positiva da fé. Pela via da fé, a pilantragem soube cativar o povo como ninguém. Um exército de crentes foi mobilizado na defesa cega de charlatães, aproveitadores e mercadores da própria fé.

Porém, essa mesma pilantragem pseudopiedosa está matando o povo que nela creu. Vai cair a ficha: estamos, afinal, falando de homens. As consequências políticas e espirituais dessa decepção, que não tarda e é do tamanho do Brasil, são imprevisíveis.

Negará o povo crente a fé que é constitutiva de si mesmo? Ou mudará a direção dessa faca amolada, tornando-a de arma a ferramenta do amor ao próximo e da ajuda mútua, tão poderosamente revolucionária quanto o ensinou o próprio Cristo? Não se pode afirmar. Mas podemos continuar cantando com Milton:

Tenha fé no nosso povo que ele resiste
Tenha fé no nosso povo que ele insiste
E acordar novo, forte, alegre, cheio de paixão

Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova
Viver semeando a liberdade em cada coração
Tenha fé no nosso povo que ele acorda
Tenha fé no nosso povo que ele assusta

(“Credo”, Milton Nascimento e Fernando Brant, 1978)

O CINEMA E A ESSÊNCIA DO FASCISMO

O que é o Fascismo de que tanto se fala? Para quem sabe pouco ou nada sobre o conceito, podemos defini-lo como a política do domínio pela força. Existiu um movimento específico, o fascismo italiano dos anos 20 a 40, que originou o termo. Mas ele passou a também ser utilizado para um fenômeno político maior, do qual o Fascismo Italiano foi a experiência original, e o Nazismo alemão, a experiência radical.

A partir de certo ponto, porém, generalizações se tornam problemáticas. Ao longo das décadas, grande parte da militância política usou a palavra “fascista” retoricamente para desqualificar quem quer que estivesse à direita de si. O resultado disso foi a banalização da palavra e, quando um fascismo de verdade voltou a ter força, o nome havia perdido a capacidade de advertir.

Conclusão: se, por um lado, o fascismo é muito mais que um movimento específico de um tempo e lugar na História, por outro, a generalização de seu uso não pode ser infinita. A própria definição acima proposta, de “política do domínio pela força” é uma boa explicação introdutória, mas gera novos questionamentos: o Império Romano e a Inquisição Espanhola eram fascistas? Quais os problemas do uso anacrônico do termo? Quais as consequências de juntar em uma mesma categoria nazifascismo e stalinismo? Quais as consequências de não fazê-lo?

Bom, parece que o segundo passo nessa discussão é limitar o fenômeno fascista a um contexto específico, mas não tão específico quanto à Itália e a Alemanha dos anos 1920 e 30. O contexto que dá origem e força ao fascismo é o da defesa do interesse da burguesia capitalista em períodos de crise econômica.

É claro que, para uma resposta mais consistente, teríamos de recorrer à imensa reflexão existente sobre o tema. Hannah Arendt seria referência inescapável. O dicionário político de Norberto Bobbio, também. O texto que mais me influenciou sobre o assunto “Os Fascismos”, de Francisco Carlos Teixeira da Silva, seria revisitado. Os manuais de História do Século XX na estante também poderiam ser úteis. Em mais de década que se passou desde que terminei o curso de História, houve a ascensão do cyber fascismo, e muitos novos trabalhos, como o de Jason Stanley, geraram repercussão. E estamos falando só do que me vêm à mente agora.

Isto aqui, no entanto, não se propõe a ser uma tese de mestrado. Quando muito, é um ensaio. Então, minhas fontes serão apenas os filmes que vi nesse período, e que me ensinaram a identificar alguns sintomas do pensamento e do discurso fascista.

1-      Autoridade da Força e Criminalização do Inimigo

Em “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (1970), de Elio Petri, o policial vivido por Jean Maria Volonté quer provar que pode cometer crimes impunemente. Sua tese é um dos pontos centrais do fascismo, a saber, que a autoridade se dá, não pelo respeito à lei, mas pelo exercício do poder. Quando a autoridade se dá unicamente pela força, adversários políticos se tornam criminosos e vice-versa.

2-      A Morte da Verdade

Reza a lenda que quando o cineasta Fritz Lang se recusou a servir o Terceiro Reich, alegando ser judeu, os nazistas teriam replicado: “não se preocupe com isso, nós dizemos quem é judeu e quem não é”. Para que criminosos e adversários políticos sejam simplificados em uma só categoria, é preciso alterar a realidade. Isso é característica fundamental, mas não exclusiva, do nazi-fascismo. Tanto que talvez o exemplo mais emblemático dessa prática no cinema seja o julgamento fictício em “A Confissão” (Costa-Gavras, 1970), filme passado na Tchecoslováquia de 1951, sob domínio soviético.

3-      Capataz da Burguesia

Mas, se fascismo e stalinismo compartilham muitos de seus pontos essenciais, o primeiro tem como especificidade seu papel na história do capitalismo. Na alegoria política “1900” (1976), de Bernardo Bertolucci, o cruel personagem de Donald Sutherland representa o fascismo: é o capataz das classes dominantes, que ganha seu poder arbitrário para defender a propriedade privada.

4-      A Máquina Decide por Mim

Numa cena do documentário “Noite e Neblina” (1956), de Alain Resnais, guardas do campo de concentração recém-liberto são mostrados em sequência. Todos repetem o mesmo mantra: “não sou o responsável”, como explicação para os horrores ali encontrados. Quando um sistema autoritário toma todas as decisões pelo indivíduo, ele não precisa se responsabilizar por nada. Esse é o prêmio dos que entregaram sua liberdade. Com ela, vai-se também seu senso crítico e sua humanidade. Viram engrenagens na produção industrial da morte.

5-      Ódio à Diferença

Em “O Conformista” (1970), de Bernardo Bertolucci, o personagem de Jean-Louis Trintignant é obcecado pela normalidade, por razões puramente subjetivas. Sua busca por “ser normal” encontra abrigo perfeito na negação da diferença, proposta pelo regime fascista de que se torna agente. Mas o ódio à diferença não nasce nos corações por imposição de um regime. Pelo contrário, é nesse ódio pré-existente que o fascismo encontra as bases para aumentar seu poder. Cria-se então uma relação de retro-aimentação crescente: o ódio alimenta o regime, que alimenta ódio, que alimenta o regime... No limite, dá-se o extermínio. Mas não é o extermínio que faz o fascista, é o fascista que faz o extermínio.

Compartilhadas essas reminiscências cinéfilas, fica o convite para um estudo mais aprofundado e acadêmico a quem se dispuser. E, para quem não se dispuser, reflexão suficiente para que tirem suas próprias conclusões.

domingo, 5 de setembro de 2021

A MECÂNICA DA CRUZ

O que é essa cruz de que tanto falam os cristãos? Será que eles mesmos entendem do que estão falando? Se entendermos “entender” em termos puramente intelectuais, é bem possível que não. Não é tarefa fácil explicar ou entender via racionalidade técnica o que está muito além da compreensão intelectual humana. Mais fácil é entender os efeitos da cruz na vida de quem nela crê. Por sorte, isso também é tudo que de fato importa.

O efeito prático da cruz é o exemplo. O rei do mundo veio para servir, e a cruz é a manifestação visível disso. Para que seu ensinamento fosse sólido, era preciso que sua própria vida exemplificasse suas palavras.

Imagine um pastor que seja acumulador de riquezas. Um que ostente carros importados, relógios caros, um supersalário e ganhos de capital. Como ele teria moral para ensinar os fiéis a não acumularem tesouros na Terra, “onde a traça come”? Para ensinar que “não se pode servir a Deus e às riquezas ao mesmo tempo”? Para lembrá-los que Jesus disse ao jovem rico “venda todos os seus bens e dê aos pobres”? Pois é, ele não teria moral para ensinar as palavras de Cristo. Da mesma forma, se o Messias ensinou que o maior é aquele que serve, e não aquele que exerce domínio, então sua vida teria de ser coerente com isso.

É no exemplo de serviço que está a força da pregação. E a pregação de Jesus é essa: o caminho é o serviço, e não o domínio. Esse ensinamento salva do pecado, pois a base de todo erro é o desejo de dominar. De dominar o outro, de submetê-lo à própria vontade, de acumular poder, de controlar todas as circunstâncias, de se colocar, em última instância, no lugar de Deus.

Por sua vez, Deus, que é todo poderoso, poderia dominar o homem, e impedi-lo de errar. Mas aí seria como o pai que diz: “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. Sua prática não teria coerência com seu ensinamento. Agiria pelo domínio, e não pelo convencimento. Por isso, antes da fundação do mundo houve a Cruz: o auto esvaziamento de Deus, ao permitir que o homem tivesse a possibilidade de errar.

E, ainda no terreno do exemplo, o Messias não veio só para morrer: veio para morrer e ressuscitar. A ressurreição nos ensina a confiar no poder Deus para além da morte. Isso também salva: salva do medo, do medo de morrer e do medo de viver.

Nada disso exaure o assunto, pois não se explica ainda a lógica de como o sacrifício de Jesus na cruz paga os pecados dos homens. Há muitas explicações teológicas para tal questão, mas nenhuma convence realmente a mente. Explicações teológicas sofisticadas geralmente só convencem aqueles que já de antemão creram com o coração, pois é com o com o coração, e não com o intelecto, que se crê. Para o crente, em última análise, bastará a explicação de que “Deus assim o fez porque quis”. E é por isso mesmo que a explicação técnico-racional é totalmente dispensável. Queremos entender em termos de física newtoniana o que está além até mesmo da física quântica. A “mecânica da cruz”, se é que existe, é inalcançável para nós, ao menos neste mundo.

domingo, 22 de agosto de 2021

O ANJINHO DO AMOR

Hoje ela faria três anos, mas não deu tempo. De repente, não quis mais comer, nem brincar. Preocupação, dúvida, emergência veterinária, internação, desespero... Não resistiu. Em apenas um dia, uma doença silenciosa havia levado nossa anjinha de amor para ser um anjinho no Céu. Ficamos de coração partido.

Nesses quase três anos, Cecy foi a companheirinha da minha mãe em tempo integral. Com a pandemia, também pudemos passar bem mais tempo com ela.

A coisa que ela mais amava na vida era comer com companhia. Vinha ao nosso encontro, e imediatamente tentava nos conduzir para o cantinho da ração. Se alguém se sentava ali, ao seu lado, ela comia, pedia carinho, esfregava o focinho no móvel, ronronava, se refestelava no chão... Satisfeita, ia brincar ou dormir, mas daí a pouco estava chamando de novo para a ração. Se dependesse dela, a gente passava o dia todo indo lá, para vê-la comer.

Sempre que podia, eu me sentava ali com ela, em um banquinho. E ficava. Às vezes olhava, lá de baixo, para o relógio na parede. 8 horas... Às 9 eu estava lá de novo, e às 11. Meia-noite, e eu pensava: por que afinal estou passando tanto tempo sentado neste banquinho? E o olhar da Cecy, transbordando amor, dava-me a resposta. Aquele era o sentido da vida.

sábado, 14 de agosto de 2021

O PAI NOSSO É NO PLURAL

É impressionante que uma sociedade que se orgulha de seu caráter cristão não aprenda a raciocinar coletivamente, mesmo quando sua oração mais conhecida dá todas as pistas para esse aprendizado. O Pai Nosso é todo no plural, e harmoniza didaticamente o indivíduo ao seu entorno.

Se não, vejamos. O Pai do céu não é só meu, é nosso. O pão da terra também é nosso, não é meu. Não basta que o pão esteja no meu carrinho de compras, é preciso que ele seja dividido, ou melhor, multiplicado... O pão do outro não se difere do meu pão. Da mesma forma, a necessidade do outro é também a minha necessidade.

O Pai Nosso intercede por nós, e não por mim. Pede-se que Ele nos proteja, e não que me proteja deles. Assim, quando eu digo “não nos deixes cair em tentação”, peço, ao mesmo tempo, que eu não erre contra o outro e que o outro não erre contra mim. Em consequência, o outro será livre do mal que eu fizer a ele, e eu serei livre do mal que ele fizer a mim. Antes de pedir livramento do mal, tenho que eu também estou sujeito a criá-lo.

Pelo Pai Nosso, oramos pelos que nos fazem mal, imitando e obedecendo Jesus. Imitando, pois assim ele o fez na cruz, e obedecendo, porque ele nos disse que orássemos pelos nossos inimigos. Igualmente, o Pai Nosso só nos permite pedir perdão pelos erros depois que já temos a capacidade de perdoar o erro alheio.

A princípio, nossa tendência é pensar em separado as “nossas ofensas” das ofensas cometidas por outros a nós. Esse verso pode soar até como barganha: perdoa-nos, porque, afinal, perdoamos também aqueles desgraçados que nos prejudicaram tão aviltantemente que se eu pudesse... Muito antes do amém, o pensamento encheu-se de ofensa, e o coração, de julgamento.

Julgar é parte do aprendizado da vida, e até mesmo inevitável em certas circunstâncias. Mas o julgamento também tem seu preço espiritual, pois cada sentença é uma espada que apontamos para nossa própria cabeça. Portanto, não é sábio julgar além do que nos cabe.

Pois bem, sabemos que enfim estamos aprendendo a pensar coletivamente quando não separamos mais as nossas ofensas das ofensas alheias. Somente ao entender que em “as nossas ofensas” estão também incluídas as ofensas dos outros dirigidas a nós, o nosso “assim como nós perdoamos aos nossos devedores” passa a ser realmente sincero.

Com esse exercício de empatia, esvaziamos o coração do julgamento que não nos cabe e nos envenena. E isso é apenas o princípio do que uma fé altruísta pode fazer, quando deixamos que ela nos ensine a sair do raciocínio puramente individualista, para onde o mundo inteiro, incluindo o mundo da fé, parece apontar.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

NATURALIZAR A MORTE

Um dos nossos maiores problemas enquanto sociedade é a incapacidade de raciocinarmos coletivamente. A dimensão coletiva do ser humano é tão importante quanto a individual, ambas se complementam e uma não substitui a outra. Uma postura pode ser, do ponto de vista individual, desejável, mas detestável do ponto de vista coletivo. O contrário também pode acontecer. Se raciocinamos como indivíduos sobre aquilo que é coletivo, erramos. E a incapacidade de pensar como sociedade tem nos distanciado de qualquer ideal de desenvolvimento.

Do ponto de vista individual, a naturalização da morte não é reprovável. Quando alguém morre, tendemos mesmo a buscar consolação e significado no aspecto natural do evento: “ele já estava bem velhinho”, “parou de sofrer”, “viveu muito bem”, “está melhor do que nós”. Essa postura, ainda que nunca chegue a ser fácil, é necessária, e mesmo sábia, diante do inevitável.

Não há nenhuma sabedoria, porém, na naturalização da morte pela ótica coletiva. Quando, coletivamente, naturalizamos a morte, a consequência é a perda daquele que talvez seja nosso único valor comum ainda sólido: a preservação da vida. Esse valor é o que nos mantém civilizados. Se naturalizamos a morte coletivamente, banalizamos o mal. E, a partir daí, o que há é o fascismo.

sábado, 7 de agosto de 2021

PRÓS E CONTRAS DO FIM DO MUNDO

É uma tendência natural, o ser otimista. Ainda mais nos otimistas. Sim, é uma forma de amortizar a realidade, mas não me venham dizer que é irracional. A força que uma perspectiva positiva traz ajuda a seguir em frente e aumenta as chances de fazer da própria realidade a melhor possível. Claro, às vezes ela é indomável, e se impõe, acima das nossas expectativas. A realidade, digo. E se impôs. O meteoro estava chegando, e não era possível mais se enganar.

O que fazer diante disso? O otimismo ilusório só nos traria a negação, e com ela a morte. O pessimismo niilista, de modo ironicamente semelhante, nos tornaria insensíveis à morte, que abraçaríamos, fingindo ser coragem a nossa covardia. O realismo, desse modo, tornou-se um imperativo, para podermos nos adaptar ao inesperado. Subitamente, surgiram novas necessidades práticas, que não nos davam tempo para lamentação. Havia uma nova vida a ser vivida, e ela não parecia ser fácil, nem agradável.

Por quanto tempo? Não sabíamos. Sairíamos dessa com vida? Tampouco se sabia. Quando? Não existia mais quando. Talvez sobrevivêssemos, mas era preciso, antes, negar a própria vida.

Não, não se tratava de negar a vida em seu sentido amplo. Esta ainda existia, e permanecerá. A vida, a mesma que agora nos atordoava, não poderia ser negada, nem ignorada, ainda que quiséssemos. O que se apresentava como solução era negar aquilo que nossa psiquê se acostumara a entender por vida. A ideia, na verdade, é mais leve do que a palavra “negar” sugere. O termo mais correto seria “desprender-se”.

O desprendimento mostrou que aquilo que a nossa psiquê se acostumara a chamar de vida era muito menos que a nossa vida. Era apenas uma vida entre muitas possíveis. Era, na verdade, a nossa rotina. Ela nos trouxe segurança por muito tempo, mas deixou de fazer sentido. Dela, nos desprendemos. A vida passou a ser aqui e agora. E o que tinha ficado lá fora ficou para depois, ou para nunca mais.

O desprendimento tem o poder de nos libertar de pesos excessivos e desnecessários. Essa foi a primeira grande lição do fim do mundo, e dela nos beneficiaremos para além desse evento.

A propósito, a essa altura, o meteoro já havia caído, e o mundo como conhecêramos não existia mais. Entre os sobreviventes, alguns tentavam reduzir os danos, enquanto outros se entregavam à ilusão, à embriaguez ou a ambas. O primeiro caminho era árduo.

Logo ficou claro que a nossa psiquê precisava também de cuidados. O realismo, seco, puro, leva à depressão, a morte em vida. Disso já sabíamos. O que se assemelhava a um desafio era conciliar o desprendimento realista, que mantínhamos debaixo do braço, com a esperança, que, por receio, tínhamos desligado. Reativá-la parecia agora questão de sobrevivência.

Então tivemos procuramos uma velha ferramenta, a fé. Tiveram motivo para se sentir gratos aqueles que a tinham guardado, por via das dúvidas, em algum canto empoeirado da bagagem que restou.

Fé não é necessariamente sinônimo de crença, apesar de ambas muitas vezes caminharem juntas. Mas esta última pode ter muitas faces. Se a crença na força superior que nos protege traz fé, a crença na força superior que nos castiga traz medo. São dois caminhos opostos e inconciliáveis. Pode mesmo haver fé independente de crença, a fé na vida, que não pede maiores explicações. Basta saber que se está vivo para ter fé na vida. A fé simplesmente é uma luz verde que acendemos no peito, e que torna o caminho à frente mais bonito.

Somente ao religá-la, percebemos que não havia contradição entre o desprendimento e a esperança. Não precisávamos forçar respostas ou alimentar ilusões, mas, sempre que necessário, vislumbrávamos o horizonte mais bonito sob a luz verde, e isso nos dava mais prazer e saúde. Quando a vida nos pisava, pedíamos ao bom Deus que nos ajudasse, dizíamos à vida: “vida pisa devagar”, ouvíamos um pouco mais de Belchior.

E assim, os dias passaram. Pareciam muitos dias, sucessivos, por vezes iguais, quase sempre curtos. A esta altura, tudo indica que vamos continuar existindo. Será como antes do meteoro? Certamente que não e, no fim das contas, nem desejaríamos que fosse. Isso quer dizer que aprendemos lições que nos farão mais fortes, depois de tudo? Depende do cada um consegue ver.

Objetivamente, a morte, o caos e a desigualdade ainda ocupam o primeiro plano da realidade presente. Enquanto trapaceiros e iludidos chamam de fé o individualismo irresponsável, niilistas se apressam em decretar que, se aprendemos alguma coisa, é que, venha meteoro que vier, nunca aprenderemos nada mesmo. Paciência, dirão.

Ironicamente, é ela que os desdirá. Ela, a paciência, o último e inegável legado do fim do mundo. A paciência nos permite continuar plantando o bem independente de tudo à nossa volta, dos outros e até de nós mesmos. Sim, um pouco mais de paciência, afinal, essas lições preciosas foram guardadas por muitos, e é até possível enxergar, sob a tal luz verde, sua manifestação lá na frente, em um futuro melhor.

sábado, 31 de julho de 2021

...É O QUE FAZ MAL À CRIAÇÃO

Com base no conceito de bárbaro proposto pelo filólogo Tzvetan Todorov em “La Peur des Barbares”, entendemos por civilizado aquele que considera qualquer outro ser ou população como humano e, portanto, inimputável de tratamento que ele mesmo se recusaria a aplicar a si mesmo. Nesse sentido, o avanço civilizatório pode também ser relacionado ao ensino de Cristo, independentemente de religião.

Sim, a religião cristã institucionalizada, ao longo dos séculos tem se envolvido promiscuamente com as disputas mundanas de poder, afastando-se com frequência do próprio ensinamento que se propõe a difundir. Leva, no entanto, debaixo do braço, as palavras de Jesus, e essas influenciaram o mundo, independentemente das instituições eclesiástica (e, por vezes, contra os próprios interesses dela).

Com idas e vindas, aos trancos e barrancos, as sociedades caminharam rumo a valores do humanismo e, finalmente do direito humano. Hoje, e esperamos que cada vez mais, a própria natureza assume protagonismo como sujeito de direitos. Muito do que embasa todo esse arcabouço de valores já estava na moral de Cristo: igualdade, amor e alteridade.

Essa moral deveria ser, para o crente, parâmetro da permanência ou caducidade de uma norma espiritual dentro do cânon bíblico. Em outras palavras, o crente na divindade de Jesus tem em suas palavras a medida que diferencia, na Bíblia como um todo, o que é contexto histórico e cultural do que é verdade permanente. Permanece que o que faz mal ao ser humano, o que faz mal a si, ao próximo e ao planeta, ofendendo criação e Criador, é o condenável. Jesus completa a Lei ao resumi-la, ao enxugá-la ao essencial, o amor, que faz com que todo o resto se torne detalhe.

Muitos cristãos, no entanto, sacralizam a cultura do tempo bíblico, colocando no altar os aspectos transitórios da lei em detrimento de sua essência. Assim, leis que só fazem sentido em seu contexto histórico e cultural passado, são tornadas universais, enquanto a lei universal, a lei do amor, essa mesma, a Lei de Cristo, é relativizada.

O argumento legalista (está escrito) é o que foi usado pelos mestres religiosos para acusar Jesus, que curava no sábado. Não pode, diziam, porque assim está escrito. Jesus respondeu: “É lícito no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou tirá-la?” (Marcos, 3:4).

Jesus corrige os religiosos evidenciando que fazer o mal era fazer aquilo que tirava a vida. Obrigar a si mesmo ou a outro a trabalhar de sábado a sábado, sem descanso, danifica o corpo e exaure a mente. É, em suma, tirar a vida, e um povo que acabara de sair da escravidão entendia isso muito bem. Em contrapartida, promover aquilo que salva a vida, seja qual fosse o dia, não poderia, pelo princípio da razoabilidade, ser objeto da mesma proibição.

“O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.” (Marcos 2:27)

A lei é para o ser humano, e não o contrário. Se algo é proibido ou, em uma relação mais madura, se não convém, é porque faz mal. A partir disso, o que “está escrito” é apenas uma lista exemplificativa, que deve ser contextualizada e validada por essa mesma Lei maior, a Lei do Amor. Faz mal ao ser humano? É contra a Lei do Amor. Viver o amor é entender-se uno ao outro e ao restante da criação. Em Deus, todos somos um, e o mal a qualquer indivíduo é mal ao todo. Essa é a Lei e os Profetas. O resto é História.

O QUE ABORRECE O CRIADOR...

“Procure saber o que é abominação a Deus”. Foi assim que um irmão de fé encerrou a discussão sobre a proeminência ou não de uma rígida moral sexual na vida cristã. Naquela hora, não fui além. Mas a proposição voltava à mente, de tempos em tempos, quando me pegava pensando no assunto. Aqui se segue a tentativa de sintetizar algum estudo e reflexão nesse sentido.

Comecemos pela impressão que o termo causa no ouvinte. “Abominação” já soa como algo muito forte. “Abominação a Deus”, então, multiplica esse peso por infinito. Algo descrito assim, portanto, só pode ser terrível. Não há mais discussão. Mas de onde tiramos a noção de que um mero ato sexual é abominado pelo Criador do universo?

Bom, se o debate se dá, como dito, entre irmãos de fé, e essa fé se baseia na palavra de Deus, vamos a ela conferir a resposta. Jesus, o Verbo encarnado para os cristãos, nunca usou a expressão “abominação ao Senhor”, até onde se tem registro (falou apenas em “abominação desoladora”, em uma citação ao profeta Daniel, mas isso já é assunto para outra conversa). Tampouco era a moral sexual um tema central em sua pregação. Mas, indo além, consideremos a Bíblia como um todo.

É na Lei Mosaica e nos Provérbios de Salomão que encontramos a palavra cujo caráter temível tem o poder de encerrar qualquer discussão. No livro do Levítico, “abominação ao Senhor” é repetido constantemente, como um refrão para proibições específicas.

“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação.” (Levítico 18:22)

Nos Provérbios, ganha caráter mais abstrato e filosófico, referindo-se comumente a situações de injustiça.

“Balança enganosa é abominação para o SENHOR, mas o peso justo é o seu prazer.” (Provérbios 11:1)

Detenhamo-nos por um momento no Levítico. O livro é um conjunto de leis cujo propósito é a santificação do povo de Deus, ou seja, sua separação dos demais povos da terra em termos de pureza e comportamento. Tudo ali visa preservar o povo limpo para os rituais sagrados. O que torna alguém impuro o proíbe de tomar parte nos rituais e na congregação. Uma mulher que tivesse um fluxo de sangue ou um homem que tenha tido contato com essa mulher deveria manter-se afastado por determinado tempo, após realizar sua limpeza. Outras práticas mais “abomináveis” implicariam na separação definitiva de seus autores da congregação, visto que o povo de Deus deveria ser santo, como santo é o seu Deus.

Chegamos então à abominação ao Senhor. A palavra original é “to’ebah” que, segundo a Bíblia de Estudos (Nova Versão Transformadora, página 217), indica forte desaprovação e desagrado. A ideia de algo abominável também nos remete a monstruosidade. Abominar algo é rejeitá-la ou aborrecer-se dela tão fortemente ao ponto do medo e/ou do nojo.

Mas o que pois é capaz de aborrecer tão fortemente a Deus, como se humano fosse, com medo de uma barata ou uma aranha??? Veja bem, estamos falando do Ser Supremo, mas inserindo nele uma reação humana (e não no sentido nobre), incompatível com o próprio conceito de Deus. O uso da “abominação” como justificativa bastante de uma proibição específica conceito é algo como: “Não pode. Por quê? Porque não. Mas por que não? Porque Deus fica muito, mais muito aborrecido.” Isso só faz sentido, como tentaremos explicar, em um estágio infantil da fé, em que se usa o medo como explicação da proibição.

“E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele.” (1 João 4:16)

“No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor.” (1 João 4:18)

Aqui, faz-se necessário um importante parêntese. Não se trata de contrapor uma fé cristã, madura, a uma fé judaica, não cristã, imatura. Isso seria de um antissemitismo inaceitável. A leitura dos textos sagrados hebraicos não precisa necessariamente de um Novo Testamento para ser mais profunda que o “não porque não” legalista. Um estudioso dessa tradição, pela ótica não cristã, deve ter pensado, com toda a razão, ao passar pelos parágrafos acima: “a Torá é muito mais profunda do que você está fazendo parecer”. E isso era justamente o que, em outras palavras, o judeu Jesus defendia, em suas discussões com os religiosos de seu tempo. Por outro lado, são justamente pessoas do meio cristão que, hoje, com novo testamento e tudo, propõe o que ora chamamos de leitura infantil da Bíblia. Fecha parêntese.

Quanto mais específica é uma legislação, mais ela é frágil. Quanto mais geral, mais dificilmente ela se tornará ultrapassada. Mas também mais difícil será a sua compreensão, pois exigirá do leitor interpretação, bom senso, maturidade intelectual e, ao menos no caso da lei religiosa, espiritual.

Comparando, por exemplo, as duas fontes do Velho Testamento que se propõem a dizer o que aborrece a Deus, temos, de um lado:

“Todo inseto que voa, que anda sobre quatro pés será para vós outros abominação.
Mas de todo inseto que voa, que anda sobre quatro pés, cujas pernas traseiras são mais compridas, para saltar com elas sobre a terra, estes comereis.
Deles, comereis estes: a locusta, segundo a sua espécie, o gafanhoto devorador, segundo a sua espécie, o grilo, segundo a sua espécie, e o gafanhoto, segundo a sua espécie.
Mas todos os outros insetos que voam, que têm quatro pés serão para vós outros abominação.” (Levítico 11:20-23)

E, do outro:

“O caminho do perverso é abominação ao Senhor, mas este ama o que segue a justiça.” Provérbios 15:9

No exemplo de Levítico, temos uma norma direta e específica, de fácil compreensão e execução, enquanto, no provérbio de Salomão, fica por conta do leitor entender o que caracteriza o perverso e seu caminho e o que o que é a justiça. Por outro lado, séculos depois, o segundo texto ainda provoca o nosso interesse mais profundo, enquanto o primeiro, apenas curiosidade histórica. Quanto mais específica uma legislação, mas ela diz respeito às características do povo a que se dirige, seu tempo e local.

É por isso que o movimento que Jesus promove, quando questionado acerca da Lei, é de generalizá-la, desvendando o princípio que a norteia, e que deverá nortear de forma mais permanente a moral, de modo que essa não seja tão frágil às inevitáveis transformações do mundo ao longo do tempo.

“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.” (Mateus 5:17)

Cumprir é também completar. A lei não se completa pela sua expansão detalhista, mas pela sua síntese:

“Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento.
Este é o grande e primeiro mandamento.
O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mateus 22:37-40)

Todas as ações específicas proibidas pela Lei Sagrada estavam ligadas, de alguma forma, à idolatria. Ir contra a natureza da criação de Deus era, ao mesmo tempo, ir contra a própria natureza e à soberania do Criador e fazer mal a si mesmo. Assim, um homem que se deitasse com um homem como se fosse uma mulher, desonrava a própria natureza e ao seu Criador.

Mas, essa palavra não é para todos. Assim como Jesus, ao ensinar sobre o divórcio, afirmou que aquelas palavras não eram para todos, pois há uma diversidade de condições humanas para as quais aquela questão sequer se aplica.

“Jesus, porém, lhes respondeu: Nem todos são aptos para receber este conceito, mas apenas aqueles a quem é dado.
Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por causa do reino dos céus. Quem é apto para o admitir admita.” (Mateus 19:11,12)

Hoje, só quem tem medo ou não quer enxergar a realidade pode negar que é comum a homossexualidade ser inerente a natureza de alguns indivíduos. Digamos que esses indivíduos sejam homens (apenas para manter o exemplo de uma época em que sequer se preocupava em falar para mulheres). Pois bem, esses homens, quando se deitam com outros homens, não o estão fazendo como se este outro fosse uma mulher. Estão se deitando com outro homem porque sua atração natural é por homens. E, desconcertante que seja para os religiosos ortodoxos, nesse caso, desonrar sua própria natureza e contrariar a vontade do Criador seria se deitar com uma mulher sem sequer desejá-la, apenas para agradar os fiscais da vida sexual da comunidade.

Então vale tudo? E o que vamos fazer com essa tal liberdade?

“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas.” (1 Coríntios 6:12)

Tudo pode, mas nada tem que. Converter algo em um “tem que” é fazer desse algo um deus. Um falso deus é todo comportamento que nos escraviza. O que nos escraviza nos faz sofrer. E o que nos faz sofrer não nos convém.

O que não nos convém é o que faz mal ao ser humano. Em termos de comportamento sexual, como em relação a tudo, o que não nos convém é aquilo que nos desonra, ou desonra ao próximo ou ao resto da criação, que são parte de nós, assim como somos parte de Deus. Uma lei mais ampla (completa) exige do seu seguidor, nos casos específicos, interpretação, maturidade intelectual e espiritual. E, para o crente, a orientação do Espírito será sempre mais confiável que qualquer livro de receitas.

Se ainda hoje podemos buscar algum sentido na extensa legislação do Levítico, o que deveria ser evitado era aquilo que fazia mal ao ser humano. Deus é amor, e o amor infinito e incondicional à criação, se é que pode se aborrecer, se aborrece daquilo que faz mal à própria criação. Portanto, Deus não se aborrece de algo por pura mania e birra, como o faz o homem. O que aborrece o Criador, em última análise, é o que faz mal à criatura.

sábado, 24 de julho de 2021

O VÍRUS DO INDIVIDUALISMO

Receber a notícia de que pessoas protestam contra o passaporte sanitário não é uma maneira agradável de começar o dia. É então tentador o caminho de amenizar essa realidade, supondo tratar-se de gente ignorante e sem estudos. Mas não: há cidadãos de países com invejáveis índices educacionais lutando para que a liberdade de escolha sobre tomar ou não vacina seja ainda acompanhada do direito de espalhar a doença.

A partir dessa constatação, poderia surgir facilmente um texto-desabafo permeado de descrença no ser humano, que levaria qualquer leitor à depressão. Mas quem não acredita na humanidade não precisa se dar ao trabalho de escrever um texto. Ideias saudáveis são a única vacina conhecida contra ideias doentias e, se plantamos aqui alguma ideia que se propõe positiva, é na esperança de que ela encontre terreno fértil para se reproduzir.

A propósito, a memética afirma que as ideias se propagam como vírus (daí vem a palavra “meme”). Nesse sentido, o individualismo é uma das ideias que mais hospedeiros angariou nos últimos dois séculos e meio. Está tão arraigado na mente de tantas pessoas que chega a causar uma interdição ideológica coletiva que parece imune ao próprio conhecimento objetivo.

Quando Adam Smith revolucionou o pensamento moral, em 1776, propondo que a busca pelo interesse individual é o melhor motor para o bem-estar coletivo, vivia-se um tempo em que o conhecimento, necessário à promoção do bem geral pelo governo, era muito escasso. Nesse contexto, era possível mesmo que melhor fosse, para o corpo social, deixar cada um cuidar de seus próprios problemas, comparado a confiar o destino de todos nas mãos de um monarca, com seus caprichos e mudanças de humor.

Mas hoje a informação é incomparavelmente mais abundante, e segue aumentando exponencialmente. Os governos, além de mais descentralizados, investem bilhões na produção de conhecimento que embase suas decisões. E a própria evolução da ciência econômica, que nasceu com Smith, deu à luz conceitos que desmontam a ideia-base daquele autor, a saber, a de que a busca pelo próprio interesse gera automaticamente o bem coletivo.

Adam, Adam, meu querido Adam, talvez sua afirmação ainda fosse válida se cada decisão individual não tivesse consequências para outas pessoas. Vivemos, porém, em sociedade, os seres humanos não são ilhas. Mercados podem falhar, entre outros motivos, porque uma decisão de consumo, tomada por um agente, comumente influencia, para o bem ou para o mal, aqueles que estão à sua volta. O nome disso é externalidade, uma das chamadas falhas de mercado.

São inúmeros os exemplos de externalidades positivas e negativas, mas vamos nos ater ao mais importante neste 2021, utilizando uma questão de concurso público para economista (Cesgranrio, 2008).

Ela dizia: “Uma das razões importantes para a presença do estado na economia é a existência de externalidades negativas e positivas. A esse respeito, pode-se afirmar que:”. O gabarito era a letra E: “quando uma pessoa não se vacina contra uma doença infecciosa está impondo aos demais uma externalidade negativa.”

Um negacionista poderá dizer “eu não concordo”, mas isso não o impediria de errar a questão se não marcasse a letra E. Da mesma forma, a sua discordância não o impedirá de fazer mal a si e aos outros tomando a decisão de não se vacinar.

Nesse sentido, é doentia a ideia que promove o direito de não se vacinar como “liberdade inalienável sobre o próprio corpo”. Isso não é apenas lutar pelo direito de ser imbecil, não cuidando da própria saúde. É também fazer questão de ser uma pessoa ruim e prejudicial à saúde coletiva. É não tomar conhecimento deliberadamente da existência de outras pessoas em volta.

Na verdade, não se trata nem mesmo da escolha de fazer mal ao próximo, mas da prerrogativa de que isso sequer é problema seu. E é aí que mora a interdição ideológica. Tão infectados estamos pelo individualismo, que perdemos a capacidade de raciocinar coletivamente. Esse bloqueio impede a passagem da consciência de que eu sou responsável pelo bem do outro. Conheço apenas o meu próprio interesse, território de que sou soberano, não cabendo a mais ninguém dizer o que é bom para mim.

O discurso de alguém que sabe que fala para pessoas com essa visão de mundo destaca, demagogicamente, o caráter “não obrigatório” da vacina. Como se houvesse mesmo alguém propondo que soldados armados conduzam as pessoas aos postos de vacinação.

Não cabe a um governante se gabar de uma “não obrigatoriedade” que nunca foi questionada. É óbvio que se vacinar não é obrigatório. Mas escolher não se vacinar é um atitude de descaso e desrespeito com a saúde do próximo, e isso deveria ser sempre lembrado pelas autoridades.

Portanto, o que cabe ao governante e, mais do que isso, é seu dever, é informar à população que o risco de uma vacina é incomparavelmente menor que o risco de não tomá-la. Como é dever de um governo destacar que, se ele mesmo aprovou uma vacina, ela é segura. Porque, se não fosse segura, não deveria ter sido aprovada. Essa é uma responsabilidade de que o Estado não pode eximir-se. Se um governo tivesse a opção de abster-se suas responsabilidades e delegá-las aos indivíduos, ele não precisaria existir.

Mas, se as coisas não são como gostaríamos que fossem, fica mesmo a cargo da própria sociedade lembrar que a vacina é muito mais que um direito. É um dever cidadão, tanto quanto não jogar lixo na rua, não andar pelado na praça ou não depredar patrimônio público. A minha saúde é também a sua saúde, e vice-versa. Não há como dividir a saúde pública em pedaços e vendê-la para consumo individual.

sábado, 17 de julho de 2021

O PROBLEMA DA PROSPERIDADE NO MEIO CRISTÃO

O problema não é a prosperidade, mas o que se entende por prosperidade. Para o discípulo de Jesus, prosperidade não significa ter muito, mas precisar de pouco. O cristão que adota a prosperidade como valor e a entende como acúmulo de bens de luxo não está observando com cuidado o ensino de Cristo.

domingo, 4 de abril de 2021

OS PASTORES E OS LOBOS


"O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas." João 10:10-13

O mercenário não tem cuidado com as ovelhas. Lideranças religiosas que, em plena pandemia, conduzem os fiéis para aglomeração, sob pretexto do culto, não têm cuidado com as ovelhas. Estão condenando muitas delas à morte com isso. Não são pastores.

Estes tempos tão dolorosos nos deram pelo menos isto: a oportunidade de enxergar claramente quem são os verdadeiros pastores e quem são os lobos. São pastores aqueles que orientam seus liderados aos cuidados necessários, consigo e com o próximo. Os que entendem que as atividades religiosas devem continuar de forma não presencial. Os que não reivindicam na justiça o "direito" de colocar sua igreja em risco.

Porque o culto que é atividade essencial para o crente não se dá em construções, mas dentro do coração. Não é preciso sair de casa para que ele aconteça: seu corpo é o templo.

"Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores." João 4:21, 23

Figuras religiosas falam muito em jejum, mas não percebem o óbvio: o jejum que nos é proposto agora não é de comida, mas de sair de casa sem necessidade. Não é sacrifício sem sentido, mas para salvar vidas. Porque, como escrito em Eclesiastes 3, há tempo para tudo nesta vida.

No entanto, desaprendemos a nos adaptar às circunstâncias, não sabemos mais parar. Não conseguimos mais ficar em casa olhando para dentro de si. Somos viciados na agitação da vida que não para, naturalizamos esse estado de coisas e, pior, achamos que temos direito a ele.

Isso é fruto de nosso sistema viciado, em que as pessoas servem à economia, e não o contrário. Em que a sociedade serve o mercado, e não o contrário. Ora, esse modelo de sociedade não funciona mais, se é que já funcionou. Não dará conta do desafio presente, nem dos futuros. O planeta não vai aguentar o ritmo de uma civilização que não sabe parar.

Quanto ao Brasil... Bom, um dos grandes problemas é que aqui há muita gente dizendo "Senhor, Senhor!" e poucos fazendo a vontade do Pai.

"Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus." Mateus 7:21

Fazer a vontade de Jesus é amar o próximo, e amar o próximo é preocupar-se com a sua saúde E com seu sustento. É preciso garantir o isolamento para conter o vírus e suas intermináveis variantes. É preciso que as atividades não essenciais que geram aglomeração sejam interrompidas. É preciso socorrer as pessoas que não puderem trabalhar e também os negócios que não puderem se manter. É necessário auxílio emergencial de 600 reais até o fim da pandemia. É preciso, portanto, que os setores mais ricos da sociedade garantam o financiamento do Estado de forma sustentável. Para isso, faz-se mister uma reforma tributária justa, que resulte em um sistema que transfira recursos dos abastados para os necessitados, e não o contrário, como acontece no atual.

Menos do que isso não vai evitar que a presente calamidade continue e se torne ainda pior.