Receber a notícia de que pessoas protestam contra o passaporte sanitário não é uma maneira agradável de começar o dia. É então tentador o caminho de amenizar essa realidade, supondo tratar-se de gente ignorante e sem estudos. Mas não: há cidadãos de países com invejáveis índices educacionais lutando para que a liberdade de escolha sobre tomar ou não vacina seja ainda acompanhada do direito de espalhar a doença.
A partir dessa constatação, poderia surgir facilmente um
texto-desabafo permeado de descrença no ser humano, que levaria qualquer leitor
à depressão. Mas quem não acredita na humanidade não precisa se dar ao trabalho
de escrever um texto. Ideias saudáveis são a única vacina conhecida contra
ideias doentias e, se plantamos aqui alguma ideia que se propõe positiva, é na esperança
de que ela encontre terreno fértil para se reproduzir.
A propósito, a memética afirma que as ideias se propagam
como vírus (daí vem a palavra “meme”). Nesse sentido, o individualismo é uma
das ideias que mais hospedeiros angariou nos últimos dois séculos e meio. Está
tão arraigado na mente de tantas pessoas que chega a causar uma interdição
ideológica coletiva que parece imune ao próprio conhecimento objetivo.
Quando Adam Smith revolucionou o pensamento moral, em 1776,
propondo que a busca pelo interesse individual é o melhor motor para o bem-estar
coletivo, vivia-se um tempo em que o conhecimento, necessário à promoção do bem
geral pelo governo, era muito escasso. Nesse contexto, era possível mesmo que
melhor fosse, para o corpo social, deixar cada um cuidar de seus próprios
problemas, comparado a confiar o destino de todos nas mãos de um monarca, com
seus caprichos e mudanças de humor.
Mas hoje a informação é incomparavelmente mais abundante, e
segue aumentando exponencialmente. Os governos, além de mais descentralizados,
investem bilhões na produção de conhecimento que embase suas decisões. E a
própria evolução da ciência econômica, que nasceu com Smith, deu à luz
conceitos que desmontam a ideia-base daquele autor, a saber, a de que a busca pelo
próprio interesse gera automaticamente o bem coletivo.
Adam, Adam, meu querido Adam, talvez sua afirmação ainda fosse
válida se cada decisão individual não tivesse consequências para outas pessoas.
Vivemos, porém, em sociedade, os seres humanos não são ilhas. Mercados podem
falhar, entre outros motivos, porque uma decisão de consumo, tomada por um agente,
comumente influencia, para o bem ou para o mal, aqueles que estão à sua volta. O
nome disso é externalidade, uma das chamadas falhas de mercado.
São inúmeros os exemplos de externalidades positivas e
negativas, mas vamos nos ater ao mais importante neste 2021, utilizando uma questão
de concurso público para economista (Cesgranrio, 2008).
Ela dizia: “Uma das razões importantes para a presença do
estado na economia é a existência de externalidades negativas e positivas. A
esse respeito, pode-se afirmar que:”. O gabarito era a letra E: “quando uma
pessoa não se vacina contra uma doença infecciosa está impondo aos demais uma
externalidade negativa.”
Um negacionista poderá dizer “eu não concordo”, mas isso não
o impediria de errar a questão se não marcasse a letra E. Da mesma forma, a sua
discordância não o impedirá de fazer mal a si e aos outros tomando a decisão de
não se vacinar.
Nesse sentido, é doentia a ideia que promove o direito de
não se vacinar como “liberdade inalienável sobre o próprio corpo”. Isso não é apenas
lutar pelo direito de ser imbecil, não cuidando da própria saúde. É também fazer
questão de ser uma pessoa ruim e prejudicial à saúde coletiva. É não tomar
conhecimento deliberadamente da existência de outras pessoas em volta.
Na verdade, não se trata nem mesmo da escolha de fazer mal
ao próximo, mas da prerrogativa de que isso sequer é problema seu. E é aí que
mora a interdição ideológica. Tão infectados estamos pelo individualismo, que
perdemos a capacidade de raciocinar coletivamente. Esse bloqueio impede a
passagem da consciência de que eu sou responsável pelo bem do outro. Conheço apenas
o meu próprio interesse, território de que sou soberano, não cabendo a mais
ninguém dizer o que é bom para mim.
O discurso de alguém que sabe que fala para pessoas com essa
visão de mundo destaca, demagogicamente, o caráter “não obrigatório” da vacina.
Como se houvesse mesmo alguém propondo que soldados armados conduzam as pessoas
aos postos de vacinação.
Não cabe a um governante se gabar de uma “não
obrigatoriedade” que nunca foi questionada. É óbvio que se vacinar não é
obrigatório. Mas escolher não se vacinar é um atitude de descaso e desrespeito
com a saúde do próximo, e isso deveria ser sempre lembrado pelas autoridades.
Portanto, o que cabe ao governante e, mais do que isso, é
seu dever, é informar à população que o risco de uma vacina é incomparavelmente
menor que o risco de não tomá-la. Como é dever de um governo destacar que, se ele
mesmo aprovou uma vacina, ela é segura. Porque, se não fosse segura, não
deveria ter sido aprovada. Essa é uma responsabilidade de que o Estado não pode
eximir-se. Se um governo tivesse a opção de abster-se suas responsabilidades e
delegá-las aos indivíduos, ele não precisaria existir.
Mas, se as coisas não são como gostaríamos que fossem, fica
mesmo a cargo da própria sociedade lembrar que a vacina é muito mais que um
direito. É um dever cidadão, tanto quanto não jogar lixo na rua, não andar
pelado na praça ou não depredar patrimônio público. A minha saúde é também a
sua saúde, e vice-versa. Não há como dividir a saúde pública em pedaços e
vendê-la para consumo individual.
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