quinta-feira, 14 de maio de 2020

FALSÁRIOS QUE MATAM


O sistema econômico como hoje conhecemos se baseia na confiança no valor dos meios de pagamento. O atestado do valor do dinheiro é decorrência da soberania do rei ou da nação, e é por isso que a falsificação de dinheiro é considerada um crime de lesa-majestade ou lesa-pátria.

Ora, a crença na autenticidade do dinheiro é para a economia tão fundamental quanto é a crença da autenticidade da informação para o funcionamento da democracia. Uma democracia consiste em que as pessoas decidam o que é melhor para si. E só se pode decidir o que é melhor para si quando bem informado sobre as consequências de uma decisão. Se o cidadão se baseia em informações falsas, sua decisão, possivelmente, fará mal a ele mesmo.

A presente pandemia mostra isso claramente. As pessoas estão soterradas por 
informação de má qualidade, e isso as leva a ter comportamentos que atentam contra si mesmas, quebrando a quarentena. As informações embasadas podem até chegar a elas, mas se perdem em um mar de desinformação que impede a média da população de discernir o real do imaginário. Por fim, própria consciência geral da existência de fake news é usada pelos difusores das mesmas, na medida em que completam sua enxurrada de mentiras com mais esta: a de que a verdade é fake news.

Não é por acaso que esse esgoto de informação inunda a intimidade das pessoas, a ponto de impedir a busca pela verdade de alcançar o mais remoto sucesso. Na fábrica de mentiras foi investido muito dinheiro e avançadas técnicas de propaganda, garantindo que a mensagem chegue a seu público-alvo e atinja os objetivos desejados pelos seus formuladores.

Quem planta a ignorância não o faz por ignorância. O mentiroso não mente por acreditar na mentira, mas porque ela lhe é conveniente. Já quem repassa a informação falsa nas redes sociais, por sua vez, tem muitas vezes a mesma inocência de quem repassa dinheiro falso por não conseguir distingui-lo do dinheiro autêntico.

O justo zelo pela liberdade de expressão e o exagero relativista fez com que postergássemos em demasiado o remédio institucional para a falsificação de informação. Em outras palavras, não punimos com o rigor da lei os que difundem deliberadamente a mentira, e essa mentira agora nos está matando. O combate ao vírus não dá margem a que relativizemos consensos científicos sólidos.

A civilização precisa urgentemente se tornar imune à falsificação de informação. Cabe às instituições reprimir essa prática que, a cada dia, parece fazer mais mal à sociedade. Quem difunde conscientemente a mentira deve, no mínimo, ser punido com o mesmo rigor destinado a quem falsifica dinheiro. Ou com um rigor até maior, visto que suas mentiras estão tirando vidas humanas. É preciso, sim, ter cautela para não ferir a liberdade de expressão. Mas uma solução institucional nesse sentido há de ser possível, tanto quanto a opinião se distancia da mentira deslavada.

terça-feira, 5 de maio de 2020

INDIVIDUAL E COLETIVO: REPENSANDO SMITH


A realidade desta quarentena lança luz sobre um debate filosófico antigo: a relação inseparável entre o interesse individual e o coletivo. Afinal, neste momento, quem cuida de si, evitando o próprio adoecimento, está necessariamente beneficiando a coletividade, ao interromper a cadeia de contágio e não sobrecarregar o sistema público.

Isso pode nos fazer recordar Adam Smith. Em 1776, o autor afirmou que, dada a divisão social do trabalho, fazer a sua parte, cuidando do próprio interesse, é a melhor forma de promover o bem geral. Smith tonar-se-ia a base da ciência econômica liberal e o autor preferido dos defensores do individualismo.

Mas, com fina ironia, este tempo de pandemia nos aponta também a limitação do pensamento individualista. Sim, porque, de visão interessante sobre uma sociedade complexa, a ideia básica de Smith tem servido de salvo conduto ao egoísmo. E, no atual contexto, os mais egoístas, que ignoram o bem geral, mostram-se verdadeiras ameaças à saúde pública.

Desde Smith, fomos condicionados a pensar a realidade social apenas do ponto de vista individual. E, nessa busca cega pelo próprio interesse, sequer avaliamos se o interesse coletivo estava de fato sendo atingido. Pois bem, não estava, e isso agora é evidente.

Com a desculpa de incentivar investimentos privados, cortamos o investimento público em saúde, educação, ciência e tecnologia (interesse coletivo). A busca do interesse individual não levou ao bem estar geral, e a pandemia nos pegou desprevenidos.

Smith acertou ao postular que, cuidando-se de si, cuida-se do próximo. O que seus seguidors ignoraram é que há aí um necessário complemento: cuidando-se do próximo, cuida-se de si. Ao evidenciar a inexistência de contradição entre as duas afirmações e, mais do que isso, a sua complementaridade, a pandemia pode nos legar uma síntese do que há de melhor nos pensamentos de direita e de esquerda.