Nos últimos tempos, uma
tendência dominou o meu pensamento. Essa tendência caminhava no
sentido de legitimar e tentar compreender o pensamento do meu
contrário. No pouco que cabe ao indivíduo, o objetivo era a
fortalecer convivência democrática e a conciliação, através do
respeito à opinião alheia. Buscava-se a criação de consensos,
construídos pela da negociação e com a participação de todos. A
autocrítica à negação do outro era, ainda, um convite à
aceitação de si.
Muito desse enfoque pode
ser percebido em textos meus anteriores (ver, por exemplo,
“Stalinismo Virtual”, aqui neste blog) e, não me entendam mal,
creio que permanece válido. Mas essa tendência, que me trouxe
crescimento intelectual e humano, talvez tenha se esgotado, ao menos
provisoriamente.
Os eventos no Brasil e no
mundo têm desafiado, no limite do imaginável, nossa capacidade de
respeitar o outro e a opinião alheia. Afinal, como respeitar o
desrespeito? É perceptível ao nosso redor um embate de valores. Há
conjuntos de ideias e projetos de civilização não mais
conciliáveis, o que leva, quando não a uma guerra civil (Deus nos
livre), ao estado de conflito permanente.
No Brasil, um projeto
perdeu a eleição e não se conformou. Através de um golpe,
“corrigiu-se” o resultado dessa eleição. Pouco importa aqui o
pretexto jurídico para a deposição da presidenta. O acordo
democrático foi quebrado. O golpe inviabilizou a negociação, a
conciliação. O lado que sofreu o golpe certamente não se
conformará (como pedem, de forma cínica, os setores antes
incendiários e que agora pregam a pacificação e a união
nacional). Ainda que o jogo vire novamente, o setor perdedor também
não se conformará. Os quereres são inconciliáveis e qualquer
decisão coletiva que contrarie um desses quereres será sentida pelo
querer contrariado como uma ação autoritária.
Nos Estados Unidos dos
anos 1860, dois modelos civilizatórios não mais podiam conviver.
Uma guerra civil colocou o país escravista contra o país do
trabalho assalariado. A civilização baseada no trabalho escravo
perdeu a guerra civil e seu projeto de sociedade foi destruído. O
querer do Sul sentiu-se oprimido. Lincoln foi morto e seu assassino o
chamou de tirano. Para ele, Lincoln era um tirano, pois lhe impusera
um valor. Destruíra o seu modelo de sociedade. Ele se sentia
sinceramente oprimido, pois lhe fora tirado o direito de oprimir.
O opressor sempre se
sentirá oprimido ao ser-lhe tirado o direito de oprimir. Isso não
deve frear nosso ímpeto civilizatório. A direção da boa luta
política é esta: a inclusão de cada vez mais indivíduos no nosso
grupo de empatia. A cautela em relação a essa meta deve ser apenas
estratégica (avançar o mais rápido possível na medida em que a
pressa não nos faça retroceder, dada a relação social de forças
naquele momento). Entender o outro, compreender o que ele sente não
implica necessariamente respeitar e legitimar seu pensamento. Os
limites que separam o “compreender e legitimar” do “compreender
e não conseguir legitimar” são justamente esses valores
civilizatórios inegociáveis. Em outras palavrar, respeitar você,
outro, só será possível até o ponto em que o seu querer não seja
o desrespeitar o seu outro, seja ele eu, seja um terceiro. Caso
contrário, o ceder a esse querer só se dará pela força, pelo
domínio. Pela opressão, pois se trata de um território
inegociável.
É em torno desse
território, desse conjunto de valores, que nossa ação e pensamento
político se constituem. É por isso que não nos abstemos de ser
parciais (e passo a usar a primeira pessoa do plural porque sei que
não estou sozinho). É imperativo avançar no sentido de uma
sociedade menos escravocrata. A de hoje é menos escravocrata que a
do século XIX. É, porém, chegada a hora de buscar uma sociedade
ainda menos escravocrata. O momento de eliminar as hierarquias até
agora naturalizadas e incluir, de forma igualitária, negros,
mulheres, homossexuais, latino-americanos, árabes, judeus, índios e
pobres no nosso grupo de empatia. Se você se sente ameaçado por
essa perspectiva, saiba que não nos é mais permitido retroceder.
Mas, se desejar juntar-se a nós nesta luta, tenha a certeza de que a
sua contribuição, por menor que seja, tornará a vida mais fácil e
o mundo mais belo, inclusive no sentido do que prega o melhor do
pensamento religioso. Por fim, garantido esse território (a
democracia, a liberdade, o rompimento dos grilhões escravizadores),
no mais, podemos voltar a negociar.