quinta-feira, 23 de junho de 2016

TERRITÓRIO INEGOCIÁVEL

Nos últimos tempos, uma tendência dominou o meu pensamento. Essa tendência caminhava no sentido de legitimar e tentar compreender o pensamento do meu contrário. No pouco que cabe ao indivíduo, o objetivo era a fortalecer convivência democrática e a conciliação, através do respeito à opinião alheia. Buscava-se a criação de consensos, construídos pela da negociação e com a participação de todos. A autocrítica à negação do outro era, ainda, um convite à aceitação de si.

Muito desse enfoque pode ser percebido em textos meus anteriores (ver, por exemplo, “Stalinismo Virtual”, aqui neste blog) e, não me entendam mal, creio que permanece válido. Mas essa tendência, que me trouxe crescimento intelectual e humano, talvez tenha se esgotado, ao menos provisoriamente.

Os eventos no Brasil e no mundo têm desafiado, no limite do imaginável, nossa capacidade de respeitar o outro e a opinião alheia. Afinal, como respeitar o desrespeito? É perceptível ao nosso redor um embate de valores. Há conjuntos de ideias e projetos de civilização não mais conciliáveis, o que leva, quando não a uma guerra civil (Deus nos livre), ao estado de conflito permanente.

No Brasil, um projeto perdeu a eleição e não se conformou. Através de um golpe, “corrigiu-se” o resultado dessa eleição. Pouco importa aqui o pretexto jurídico para a deposição da presidenta. O acordo democrático foi quebrado. O golpe inviabilizou a negociação, a conciliação. O lado que sofreu o golpe certamente não se conformará (como pedem, de forma cínica, os setores antes incendiários e que agora pregam a pacificação e a união nacional). Ainda que o jogo vire novamente, o setor perdedor também não se conformará. Os quereres são inconciliáveis e qualquer decisão coletiva que contrarie um desses quereres será sentida pelo querer contrariado como uma ação autoritária.

Nos Estados Unidos dos anos 1860, dois modelos civilizatórios não mais podiam conviver. Uma guerra civil colocou o país escravista contra o país do trabalho assalariado. A civilização baseada no trabalho escravo perdeu a guerra civil e seu projeto de sociedade foi destruído. O querer do Sul sentiu-se oprimido. Lincoln foi morto e seu assassino o chamou de tirano. Para ele, Lincoln era um tirano, pois lhe impusera um valor. Destruíra o seu modelo de sociedade. Ele se sentia sinceramente oprimido, pois lhe fora tirado o direito de oprimir.

O opressor sempre se sentirá oprimido ao ser-lhe tirado o direito de oprimir. Isso não deve frear nosso ímpeto civilizatório. A direção da boa luta política é esta: a inclusão de cada vez mais indivíduos no nosso grupo de empatia. A cautela em relação a essa meta deve ser apenas estratégica (avançar o mais rápido possível na medida em que a pressa não nos faça retroceder, dada a relação social de forças naquele momento). Entender o outro, compreender o que ele sente não implica necessariamente respeitar e legitimar seu pensamento. Os limites que separam o “compreender e legitimar” do “compreender e não conseguir legitimar” são justamente esses valores civilizatórios inegociáveis. Em outras palavrar, respeitar você, outro, só será possível até o ponto em que o seu querer não seja o desrespeitar o seu outro, seja ele eu, seja um terceiro. Caso contrário, o ceder a esse querer só se dará pela força, pelo domínio. Pela opressão, pois se trata de um território inegociável.

É em torno desse território, desse conjunto de valores, que nossa ação e pensamento político se constituem. É por isso que não nos abstemos de ser parciais (e passo a usar a primeira pessoa do plural porque sei que não estou sozinho). É imperativo avançar no sentido de uma sociedade menos escravocrata. A de hoje é menos escravocrata que a do século XIX. É, porém, chegada a hora de buscar uma sociedade ainda menos escravocrata. O momento de eliminar as hierarquias até agora naturalizadas e incluir, de forma igualitária, negros, mulheres, homossexuais, latino-americanos, árabes, judeus, índios e pobres no nosso grupo de empatia. Se você se sente ameaçado por essa perspectiva, saiba que não nos é mais permitido retroceder. Mas, se desejar juntar-se a nós nesta luta, tenha a certeza de que a sua contribuição, por menor que seja, tornará a vida mais fácil e o mundo mais belo, inclusive no sentido do que prega o melhor do pensamento religioso. Por fim, garantido esse território (a democracia, a liberdade, o rompimento dos grilhões escravizadores), no mais, podemos voltar a negociar.