domingo, 3 de agosto de 2014

JOIO E TRIGO - UMA LEITURA PROGRESSISTA

A metáfora do joio e do trigo e de “separar o joio e o trigo” costuma frequentar um certo tipo discurso, aquele que separa umas pessoas das outras e estabelece hierarquias entre elas. Tal discurso é contrário às melhores noções de civilização, e que eu evito aqui chamá-lo de reacionário apenas para não soar repetitivo.

Mas voltando ao joio, vem-me à cabeça a fala, anos atrás, da mãe de um suposto criminoso de classe média ou alta. Ela, indignada por seu filho ser tratado igualmente a supostos criminosos pobres, dizia que era preciso separar “o joio do trigo”. E não é de se espantar que o joio, tal qual o inferno, seja sempre o outro.

Tão bem a imagem foi apropriada pelo pensamento conservador, que nos esquecemos que o seu criador foi Jesus. Jesus é a parte mais progressista da Bíblia, se destacando, pelo discurso, da forte tendência conservadora que a religião teve antes e depois dele. Quem conhece a teologia de Jesus pode estranhar que ele tenha dado origem a tal pensamento separador e hierarquizante, suspeitando logo de que se trata de uma interpretação errada da metáfora.

E a suspeita é correta. A parábola do joio e do trigo é breve. Um agricultor plantou o trigo em seu campo e, à noite, seu inimigo contaminou a plantação com joio. Quando um empregado vê o joio crescendo junto ao trigo, indaga ao agricultor se ele quer que o joio seja arrancado. O dono da plantação diz que não, que, por hora, é preciso deixá-los crescer juntos até a colheita, para que, ao separar o joio, não se arranque com ele também o trigo.

Ao explicar a parábola aos seus discípulos, Jesus diz explicitamente que a colheita é a consumação deste século (ou seja, uma realidade fora do mundo material como conhecemos). Jesus não nos mandou separar o joio do trigo. E, não só não mandou, como disse que era preciso deixá-los crescer juntos, para que, ao cortar o joio, não se corte junto com ele o trigo.

Detenhamo-nos, portanto, na esfera secular, em que ainda viveremos por prazo indeterminado (e isso quer se creia, quer se descreia em qualquer horizonte metafísico). Segundo a parábola original, neste mundo, neste século, o mal não poderá ser extirpado da sociedade sem altos custos. Joio e trigo, bem e mal, inocentes e culpados, não poderão ser separados de forma que não seja traumática. Assim, ainda que trabalhemos com a ideia de inocentes e culpados como pessoas distintas, elas não seriam infalivelmente separáveis.

Ao estabelecermos, por exemplo, a pena de morte, sempre estaremos correndo um sério risco de executar inocentes por erro no processo (que ocorrem com mais frequência do que gostaríamos, em qualquer sistema jurídico). Separar o joio do trigo de forma tão irreversível exigiria a infalibilidade dos julgadores (e quiçá a onisciência).

Essa reflexão já dá uma perspectiva diferente da do senso comum à metáfora de Jesus. Mas podemos ainda ir além do maniqueísmo. Joio e o trigo, inocentes e culpados, bem e mal não são pessoas separadas. Estão dentro de cada um de nós. O mal cresce em nós junto com o bem, de modo que não há ninguém totalmente mal nem ninguém totalmente bom. Desse modo, ao eliminarmos um “mau” (por exemplo, pela pena de morte), matamos também o “bom” que existe dentro dele.

Claro que (novamente, quer se creia, quer se descreia) o mal (o que é errado, nocivo, injusto) não é algo com que se deva acostumar passivamente. Mas, aos ávidos por eliminar o joio, fica a sugestão de começar por separá-lo dentro de si mesmos. E com muito cuidado.