A Igreja perseguida é um elemento forte na cultura cristã. A
perseguição fez parte da vida da Igreja e ainda ocorre em países em que não há
liberdade para se pregar ou viver o evangelho. A forma direta ou clássica de
cercear a liberdade se dá pela força, pela brutalidade, pela violência.
A Igreja deseja jamais viver essa realidade, ainda que saiba que é
possível que viva. Por ser concreta, é essa modalidade de repressão que sempre
nos vem à mente, como se fosse a única forma de limitar a liberdade. Existe,
porém, outra forma de se banir o Evangelho de uma sociedade.
A forma indireta ou sutil de banimento do Evangelho se dá pelo
esvaziamento de todo o seu conteúdo que ameace o poder instituído. Quando isso
ocorre, o Evangelho se transforma em uma grife e Jesus torna-se apenas um nome,
esvaziado da sua pregação. Se, na perseguição direta, busca-se proibir o
Evangelho, uma sociedade que esvazia esse mesmo Evangelho de todo o seu conteúdo
de justiça não precisa se dar ao trabalho de proibi-lo. Insípida, a fé é
permitida e até incentivada.
A grande ironia desse tema está em que, por termos muito medo da
forma direta de perseguição, nos tornamos mais suscetíveis à sua forma
indireta. A perseguição brutal se dá em lugares em que a religião cristã não é
a hegemônica (dominante) e, por isso, sofre perseguição do poder dominante. Já
a perseguição sutil é quase sedutora, porque se dá em um ambiente em que a
nossa religião é a hegemônica. Afinal, pensamos erroneamente, que maneira mais
fácil de impedir que o poder nos atinja, se não aliando-nos a ele? Mas larga é
a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição (Mt. 7:13-14).
Aliados ao poder, temos a impressão de que o Cristianismo está
no controle. Mas, quando o poder é injusto, o que, para dizer o mínimo, não é
pouco frequente, a fé, para se aliar ou se submeter a ele, precisa se esvaziar da
justiça, pois é esta que ameaça os poderes injustos (Mt. 5:10). Se a fé se abstém
da justiça, ela deixa de ser ameaça, tornando-se até uma boa ferramenta para os
poderes do mundo. E é essa a forma indireta de se banir o Evangelho de uma
sociedade: exaltando-o formalmente, mas esvaziando o seu conteúdo de justiça.
Esse banimento do Evangelho é invisível, pois não é realizado
por inimigos abertos da fé, mas pelos próprios religiosos. É um processo sutil,
silencioso, quase imperceptível, e por isso é muito mais eficiente do que a
repressão pela força. Não pode sequer ser chamado de proibição: abrimos
mão voluntariamente dos conteúdos e princípios do Evangelho, para que ele seja aceito
por patrocinadores em potencial.
Nesse contexto, não sentimos a dor da perseguição, pois estamos
anestesiados. Não sentimos tampouco a dor daqueles que são vítimas do poder a
que nos aliamos. Descumprimos, assim, o maior dos mandamentos (Mc 12:30-31, Lc
10:25-37). E, se essa possibilidade ainda parece irreal, lembremos alguns
exemplos, a começar pelo próprio Cristo.
Jesus não propôs uma nova religião. Sua pregação resgatava o
conteúdo de justiça da religião já existente (Ex. 22:22, Dt 24:17, Dt 25:15,16,
Sl 5:6). Mas, em seu tempo, os próprios líderes dos filhos de Israel haviam
abandonado o conteúdo de justiça da fé. Para sua sobrevivência, haviam se
aliado ao poder Romano, injusto por natureza e que explorava o próprio povo
judeu até a miséria.
O retorno aos valores de justiça, de que eles mesmos abriram
mão, representava um risco para suas alianças com o poder secular. O Evangelho
de Jesus implicava a busca pela justiça, sendo incompatível com a adesão a
poderes injustos. A pregação de Jesus era, assim, incômoda (Mt. 23), porque
desestabilizava as estruturas de dominação política e religiosa. E foi isso que
levou à crucificação, em seu sentido humano.
No século XVI, homens como Lutero também não desejaram fundar
uma nova religião, mas apontar as práticas de sua própria Igreja que pervertiam
a justiça do Cristianismo. Os reformadores denunciaram o comércio da fé e
exploração do povo. Por essa razão, a Igreja oficial expeliu-os de seu meio e,
a partir daí, surgiram igrejas reformadas, protestantes contra as injustiças de
seu próprio meio religioso original.
Já no século XX, a ascensão do Nazi-Fascismo e sua escalada
brutal se deu no seio de sociedades cristãs.
O regime
nazista perseguia judeus, homossexuais, marxistas, eslavos, negros e
deficientes físicos, mas não tinha, a princípio, nada contra o cristianismo,
religião majoritária da Alemanha. Seria muito fácil para um cristão se adaptar
ao regime, desde que ele ignorasse a dor do próximo e os mandamentos de Cristo.
E a maior parte das autoridades cristãs fechou os olhos à opressão que ocorria
ao seu lado.
Mas Dietrich Bonhoeffer, um dos maiores teóliogos de nosso
tempo, escolheu seguir os passos de Jesus e não compactuar com a injustiça. Foi
preso por ajudar judeus em fuga, e morreu em um campo de concentração em 1945,
compartilhando o destino dos povos perseguidos pelo nazismo.
Nos Estados Unidos dos anos 1960, o reverendo Martin
Luther King lutou contra aquilo que, dentro de uma sociedade cristã,
ofendia a Deus: a injustiça contra povo negro. Ele foi perseguido e morto em
uma sociedade fortemente religiosa, por aqueles que diziam amar sua tradição
cristã, mas que tiveram ignorar o conteúdo de justiça do Evangelho para poder
viver seu ódio racial.
Chegamos aos dias de hoje e, se a perseguição direta está
distante de nós, histórica ou geograficamente, constatamos que o outro tipo de
banimento do Evangelho, o sutil, está muito próximo. A Igreja se aproxima
do poder e se afasta de Jesus.
Neste tempo e lugar, certo liberalismo conservador
individualista (também este depurado de possíveis conteúdos libertários) nos
diz que a miséria do próximo é problema do próximo e de ninguém mais. Os
próprios conceitos de injustiça social, exploração e opressão se tornam
incômodos, como um elefante na sala. Incômodos como as vozes de Jeremias, Elias
e João Batista no deserto. E, ao acharmos normal a brutal desigualdade
econômica, abrimos mão de nossa fome e sede de justiça (Mt. 5:6).
Para surfar a onda do consumismo individualista anestesiante, a
Igreja tem ignorar que o Evangelho nos ensina que “tive fome, e me deste de
comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes estava
nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso e fostes ver-me (...)” e
que “sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o
fizestes” (Mt. 24:35-40). De igual modo, para naturalizar a inserção dos
crentes na lógica do lucro econômico, a igreja deve também ignorar as palavras
de Jesus que afirma não podermos servir a Deus e às riquezas (Mt. 6:24).
Neste tempo e lugar certa teologia prega também a dominação
cristã sobre o mundo. Somos convencidos de que o povo de Deus deve ocupar todos
os espaços estratégicos na sociedade. Mantemos assim relações promíscuas com o
poder secular, e para isso precisamos esquecer a afirmação de Jesus de que seu
Reino não é deste mundo (Jo 18:36).
Neste tempo e lugar, ouvimos que “bandido bom é bandido morto”,
e queremos repetir acriticamente o mesmo brado. Para isso, temos de esquecer que
Jesus, porém, nos diz: “não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita,
oferece-lhe também a outra” (Mt. 5:38-39). E que também nos diz: “amai os vossos inimigos” (Mt 5:43-46,
Lc. 6:32-36). Precisamos, igualmente, tapar os ouvidos às recomendações
apostólicas de que a ninguém paguemos mal por mal, que não nos vinguemos e que
vençamos o mal com o bem (Rm 12:17-21). Mas na esteira do ódio que de todos
esses mandamentos esquece, nos esvaziamos, desafortunadamente, de toda mansidão,
toda misericórdia e todo caráter pacificador (Mt 5: 5-9).
Por fim, neste tempo e lugar, certa ideologia disfarçada de fé
associa o nome de Jesus ao símbolo do lobby armamentista. É a cereja do bolo, o
ápice do desrespeito ao Evangelho e da negligência a seu conteúdo.
Ao associarmos Jesus à arma de fogo, invalidamos o fato de ele
não ter vindo como líder militar que comandaria exércitos (Mt 26:52-53),
frustrando a expectativa de muitos. Temos de esquecer também que ele nos
diz: “embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da
espada pela espada morrerão” (Mt 26:52). Para ostentarmos o nosso “dedinho-arma”
e ainda pensarmos que seguimos Jesus, temos de esquecer essas palavras, ou
fingir que espada e arma de fogo são coisas completamente diferentes. Estaremos
enganando, no máximo, a nós mesmo.
Assim, somente editado de todas as suas “cenas perigosas”, o
Evangelho está pronto para ser transmitido em TV aberta, com os bons índices de
audiência garantidos. Submissa e atrelada às elites econômica, política e
militar, a elite religiosa pode até colher os frutos materiais de seu trabalho
(a qual dos senhores teriam servido?). E a igreja, esvaziada de todo o seu
conteúdo de justiça, torna-se insípida. Bom é o sal; mas, se o sal vier a
tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão
para, lançado fora, ser pisado pelos homens (Mt . 5:13, Mc. 9:49-50, Lc
14:34-35).
Assim, ser discípulo de Jesus é muito mais do que seguir cegamente
aqueles que põem Deus acima de todos, mas apenas da boca pra fora. Porque Jesus
nos diz que, se a nossa justiça não exceder a de muitos líderes religiosos, não
viveremos, de fato, o Reino de Deus (Mt. 5:20). E, a muitos dos que julgam que
em seu nome profetizam, expulsam demônios e realizam muitos milagres, Jesus diz
claramente: “nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a
iniquidade” (Mt 7:22-23).