sábado, 27 de julho de 2019

QUANDO O EVANGELHO É ESVAZIADO DE SUA JUSTIÇA


A Igreja perseguida é um elemento forte na cultura cristã. A perseguição fez parte da vida da Igreja e ainda ocorre em países em que não há liberdade para se pregar ou viver o evangelho. A forma direta ou clássica de cercear a liberdade se dá pela força, pela brutalidade, pela violência. A Igreja deseja jamais viver essa realidade, ainda que saiba que é possível que viva. Por ser concreta, é essa modalidade de repressão que sempre nos vem à mente, como se fosse a única forma de limitar a liberdade. Existe, porém, outra forma de se banir o Evangelho de uma sociedade.

A forma indireta ou sutil de banimento do Evangelho se dá pelo esvaziamento de todo o seu conteúdo que ameace o poder instituído. Quando isso ocorre, o Evangelho se transforma em uma grife e Jesus torna-se apenas um nome, esvaziado da sua pregação. Se, na perseguição direta, busca-se proibir o Evangelho, uma sociedade que esvazia esse mesmo Evangelho de todo o seu conteúdo de justiça não precisa se dar ao trabalho de proibi-lo. Insípida, a fé é permitida e até incentivada.

A grande ironia desse tema está em que, por termos muito medo da forma direta de perseguição, nos tornamos mais suscetíveis à sua forma indireta. A perseguição brutal se dá em lugares em que a religião cristã não é a hegemônica (dominante) e, por isso, sofre perseguição do poder dominante. Já a perseguição sutil é quase sedutora, porque se dá em um ambiente em que a nossa religião é a hegemônica. Afinal, pensamos erroneamente, que maneira mais fácil de impedir que o poder nos atinja, se não aliando-nos a ele? Mas larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição (Mt. 7:13-14).

Aliados ao poder, temos a impressão de que o Cristianismo está no controle. Mas, quando o poder é injusto, o que, para dizer o mínimo, não é pouco frequente, a fé, para se aliar ou se submeter a ele, precisa se esvaziar da justiça, pois é esta que ameaça os poderes injustos (Mt. 5:10). Se a fé se abstém da justiça, ela deixa de ser ameaça, tornando-se até uma boa ferramenta para os poderes do mundo. E é essa a forma indireta de se banir o Evangelho de uma sociedade: exaltando-o formalmente, mas esvaziando o seu conteúdo de justiça.

Esse banimento do Evangelho é invisível, pois não é realizado por inimigos abertos da fé, mas pelos próprios religiosos. É um processo sutil, silencioso, quase imperceptível, e por isso é muito mais eficiente do que a repressão pela força. Não pode sequer ser chamado de proibição: abrimos mão voluntariamente dos conteúdos e princípios do Evangelho, para que ele seja aceito por patrocinadores em potencial.

Nesse contexto, não sentimos a dor da perseguição, pois estamos anestesiados. Não sentimos tampouco a dor daqueles que são vítimas do poder a que nos aliamos. Descumprimos, assim, o maior dos mandamentos (Mc 12:30-31, Lc 10:25-37). E, se essa possibilidade ainda parece irreal, lembremos alguns exemplos, a começar pelo próprio Cristo.

Jesus não propôs uma nova religião. Sua pregação resgatava o conteúdo de justiça da religião já existente (Ex. 22:22, Dt 24:17, Dt 25:15,16, Sl 5:6). Mas, em seu tempo, os próprios líderes dos filhos de Israel haviam abandonado o conteúdo de justiça da fé. Para sua sobrevivência, haviam se aliado ao poder Romano, injusto por natureza e que explorava o próprio povo judeu até a miséria.

O retorno aos valores de justiça, de que eles mesmos abriram mão, representava um risco para suas alianças com o poder secular. O Evangelho de Jesus implicava a busca pela justiça, sendo incompatível com a adesão a poderes injustos. A pregação de Jesus era, assim, incômoda (Mt. 23), porque desestabilizava as estruturas de dominação política e religiosa. E foi isso que levou à crucificação, em seu sentido humano.

No século XVI, homens como Lutero também não desejaram fundar uma nova religião, mas apontar as práticas de sua própria Igreja que pervertiam a justiça do Cristianismo. Os reformadores denunciaram o comércio da fé e exploração do povo. Por essa razão, a Igreja oficial expeliu-os de seu meio e, a partir daí, surgiram igrejas reformadas, protestantes contra as injustiças de seu próprio meio religioso original.

Já no século XX, a ascensão do Nazi-Fascismo e sua escalada brutal se deu no seio de sociedades cristãs. O regime nazista perseguia judeus, homossexuais, marxistas, eslavos, negros e deficientes físicos, mas não tinha, a princípio, nada contra o cristianismo, religião majoritária da Alemanha. Seria muito fácil para um cristão se adaptar ao regime, desde que ele ignorasse a dor do próximo e os mandamentos de Cristo. E a maior parte das autoridades cristãs fechou os olhos à opressão que ocorria ao seu lado.

Mas Dietrich Bonhoeffer, um dos maiores teóliogos de nosso tempo, escolheu seguir os passos de Jesus e não compactuar com a injustiça. Foi preso por ajudar judeus em fuga, e morreu em um campo de concentração em 1945, compartilhando o destino dos povos perseguidos pelo nazismo.

Nos Estados Unidos dos anos 1960, o reverendo Martin Luther King lutou contra aquilo que, dentro de uma sociedade cristã, ofendia a Deus: a injustiça contra povo negro. Ele foi perseguido e morto em uma sociedade fortemente religiosa, por aqueles que diziam amar sua tradição cristã, mas que tiveram ignorar o conteúdo de justiça do Evangelho para poder viver seu ódio racial.

Chegamos aos dias de hoje e, se a perseguição direta está distante de nós, histórica ou geograficamente, constatamos que o outro tipo de banimento do Evangelho, o sutil, está muito próximo. A Igreja se aproxima do poder e se afasta de Jesus.

Neste tempo e lugar, certo liberalismo conservador individualista (também este depurado de possíveis conteúdos libertários) nos diz que a miséria do próximo é problema do próximo e de ninguém mais. Os próprios conceitos de injustiça social, exploração e opressão se tornam incômodos, como um elefante na sala. Incômodos como as vozes de Jeremias, Elias e João Batista no deserto. E, ao acharmos normal a brutal desigualdade econômica, abrimos mão de nossa fome e sede de justiça (Mt. 5:6).

Para surfar a onda do consumismo individualista anestesiante, a Igreja tem ignorar que o Evangelho nos ensina que “tive fome, e me deste de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso e fostes ver-me (...)” e que “sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt. 24:35-40). De igual modo, para naturalizar a inserção dos crentes na lógica do lucro econômico, a igreja deve também ignorar as palavras de Jesus que afirma não podermos servir a Deus e às riquezas (Mt. 6:24).

Neste tempo e lugar certa teologia prega também a dominação cristã sobre o mundo. Somos convencidos de que o povo de Deus deve ocupar todos os espaços estratégicos na sociedade. Mantemos assim relações promíscuas com o poder secular, e para isso precisamos esquecer a afirmação de Jesus de que seu Reino não é deste mundo (Jo 18:36).

Neste tempo e lugar, ouvimos que “bandido bom é bandido morto”, e queremos repetir acriticamente o mesmo brado. Para isso, temos de esquecer que Jesus, porém, nos diz: “não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt. 5:38-39). E que também nos diz: “amai os vossos inimigos” (Mt 5:43-46, Lc. 6:32-36). Precisamos, igualmente, tapar os ouvidos às recomendações apostólicas de que a ninguém paguemos mal por mal, que não nos vinguemos e que vençamos o mal com o bem (Rm 12:17-21). Mas na esteira do ódio que de todos esses mandamentos esquece, nos esvaziamos, desafortunadamente, de toda mansidão, toda misericórdia e todo caráter pacificador (Mt 5: 5-9).

Por fim, neste tempo e lugar, certa ideologia disfarçada de fé associa o nome de Jesus ao símbolo do lobby armamentista. É a cereja do bolo, o ápice do desrespeito ao Evangelho e da negligência a seu conteúdo.

Ao associarmos Jesus à arma de fogo, invalidamos o fato de ele não ter vindo como líder militar que comandaria exércitos (Mt 26:52-53), frustrando a expectativa de muitos. Temos de esquecer também que ele nos diz: “embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão” (Mt 26:52). Para ostentarmos o nosso “dedinho-arma” e ainda pensarmos que seguimos Jesus, temos de esquecer essas palavras, ou fingir que espada e arma de fogo são coisas completamente diferentes. Estaremos enganando, no máximo, a nós mesmo.

Assim, somente editado de todas as suas “cenas perigosas”, o Evangelho está pronto para ser transmitido em TV aberta, com os bons índices de audiência garantidos. Submissa e atrelada às elites econômica, política e militar, a elite religiosa pode até colher os frutos materiais de seu trabalho (a qual dos senhores teriam servido?). E a igreja, esvaziada de todo o seu conteúdo de justiça, torna-se insípida. Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens (Mt . 5:13, Mc. 9:49-50, Lc 14:34-35).

Assim, ser discípulo de Jesus é muito mais do que seguir cegamente aqueles que põem Deus acima de todos, mas apenas da boca pra fora. Porque Jesus nos diz que, se a nossa justiça não exceder a de muitos líderes religiosos, não viveremos, de fato, o Reino de Deus (Mt. 5:20). E, a muitos dos que julgam que em seu nome profetizam, expulsam demônios e realizam muitos milagres, Jesus diz claramente: “nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:22-23).