domingo, 22 de agosto de 2021

O ANJINHO DO AMOR

Hoje ela faria três anos, mas não deu tempo. De repente, não quis mais comer, nem brincar. Preocupação, dúvida, emergência veterinária, internação, desespero... Não resistiu. Em apenas um dia, uma doença silenciosa havia levado nossa anjinha de amor para ser um anjinho no Céu. Ficamos de coração partido.

Nesses quase três anos, Cecy foi a companheirinha da minha mãe em tempo integral. Com a pandemia, também pudemos passar bem mais tempo com ela.

A coisa que ela mais amava na vida era comer com companhia. Vinha ao nosso encontro, e imediatamente tentava nos conduzir para o cantinho da ração. Se alguém se sentava ali, ao seu lado, ela comia, pedia carinho, esfregava o focinho no móvel, ronronava, se refestelava no chão... Satisfeita, ia brincar ou dormir, mas daí a pouco estava chamando de novo para a ração. Se dependesse dela, a gente passava o dia todo indo lá, para vê-la comer.

Sempre que podia, eu me sentava ali com ela, em um banquinho. E ficava. Às vezes olhava, lá de baixo, para o relógio na parede. 8 horas... Às 9 eu estava lá de novo, e às 11. Meia-noite, e eu pensava: por que afinal estou passando tanto tempo sentado neste banquinho? E o olhar da Cecy, transbordando amor, dava-me a resposta. Aquele era o sentido da vida.

sábado, 14 de agosto de 2021

O PAI NOSSO É NO PLURAL

É impressionante que uma sociedade que se orgulha de seu caráter cristão não aprenda a raciocinar coletivamente, mesmo quando sua oração mais conhecida dá todas as pistas para esse aprendizado. O Pai Nosso é todo no plural, e harmoniza didaticamente o indivíduo ao seu entorno.

Se não, vejamos. O Pai do céu não é só meu, é nosso. O pão da terra também é nosso, não é meu. Não basta que o pão esteja no meu carrinho de compras, é preciso que ele seja dividido, ou melhor, multiplicado... O pão do outro não se difere do meu pão. Da mesma forma, a necessidade do outro é também a minha necessidade.

O Pai Nosso intercede por nós, e não por mim. Pede-se que Ele nos proteja, e não que me proteja deles. Assim, quando eu digo “não nos deixes cair em tentação”, peço, ao mesmo tempo, que eu não erre contra o outro e que o outro não erre contra mim. Em consequência, o outro será livre do mal que eu fizer a ele, e eu serei livre do mal que ele fizer a mim. Antes de pedir livramento do mal, tenho que eu também estou sujeito a criá-lo.

Pelo Pai Nosso, oramos pelos que nos fazem mal, imitando e obedecendo Jesus. Imitando, pois assim ele o fez na cruz, e obedecendo, porque ele nos disse que orássemos pelos nossos inimigos. Igualmente, o Pai Nosso só nos permite pedir perdão pelos erros depois que já temos a capacidade de perdoar o erro alheio.

A princípio, nossa tendência é pensar em separado as “nossas ofensas” das ofensas cometidas por outros a nós. Esse verso pode soar até como barganha: perdoa-nos, porque, afinal, perdoamos também aqueles desgraçados que nos prejudicaram tão aviltantemente que se eu pudesse... Muito antes do amém, o pensamento encheu-se de ofensa, e o coração, de julgamento.

Julgar é parte do aprendizado da vida, e até mesmo inevitável em certas circunstâncias. Mas o julgamento também tem seu preço espiritual, pois cada sentença é uma espada que apontamos para nossa própria cabeça. Portanto, não é sábio julgar além do que nos cabe.

Pois bem, sabemos que enfim estamos aprendendo a pensar coletivamente quando não separamos mais as nossas ofensas das ofensas alheias. Somente ao entender que em “as nossas ofensas” estão também incluídas as ofensas dos outros dirigidas a nós, o nosso “assim como nós perdoamos aos nossos devedores” passa a ser realmente sincero.

Com esse exercício de empatia, esvaziamos o coração do julgamento que não nos cabe e nos envenena. E isso é apenas o princípio do que uma fé altruísta pode fazer, quando deixamos que ela nos ensine a sair do raciocínio puramente individualista, para onde o mundo inteiro, incluindo o mundo da fé, parece apontar.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

NATURALIZAR A MORTE

Um dos nossos maiores problemas enquanto sociedade é a incapacidade de raciocinarmos coletivamente. A dimensão coletiva do ser humano é tão importante quanto a individual, ambas se complementam e uma não substitui a outra. Uma postura pode ser, do ponto de vista individual, desejável, mas detestável do ponto de vista coletivo. O contrário também pode acontecer. Se raciocinamos como indivíduos sobre aquilo que é coletivo, erramos. E a incapacidade de pensar como sociedade tem nos distanciado de qualquer ideal de desenvolvimento.

Do ponto de vista individual, a naturalização da morte não é reprovável. Quando alguém morre, tendemos mesmo a buscar consolação e significado no aspecto natural do evento: “ele já estava bem velhinho”, “parou de sofrer”, “viveu muito bem”, “está melhor do que nós”. Essa postura, ainda que nunca chegue a ser fácil, é necessária, e mesmo sábia, diante do inevitável.

Não há nenhuma sabedoria, porém, na naturalização da morte pela ótica coletiva. Quando, coletivamente, naturalizamos a morte, a consequência é a perda daquele que talvez seja nosso único valor comum ainda sólido: a preservação da vida. Esse valor é o que nos mantém civilizados. Se naturalizamos a morte coletivamente, banalizamos o mal. E, a partir daí, o que há é o fascismo.

sábado, 7 de agosto de 2021

PRÓS E CONTRAS DO FIM DO MUNDO

É uma tendência natural, o ser otimista. Ainda mais nos otimistas. Sim, é uma forma de amortizar a realidade, mas não me venham dizer que é irracional. A força que uma perspectiva positiva traz ajuda a seguir em frente e aumenta as chances de fazer da própria realidade a melhor possível. Claro, às vezes ela é indomável, e se impõe, acima das nossas expectativas. A realidade, digo. E se impôs. O meteoro estava chegando, e não era possível mais se enganar.

O que fazer diante disso? O otimismo ilusório só nos traria a negação, e com ela a morte. O pessimismo niilista, de modo ironicamente semelhante, nos tornaria insensíveis à morte, que abraçaríamos, fingindo ser coragem a nossa covardia. O realismo, desse modo, tornou-se um imperativo, para podermos nos adaptar ao inesperado. Subitamente, surgiram novas necessidades práticas, que não nos davam tempo para lamentação. Havia uma nova vida a ser vivida, e ela não parecia ser fácil, nem agradável.

Por quanto tempo? Não sabíamos. Sairíamos dessa com vida? Tampouco se sabia. Quando? Não existia mais quando. Talvez sobrevivêssemos, mas era preciso, antes, negar a própria vida.

Não, não se tratava de negar a vida em seu sentido amplo. Esta ainda existia, e permanecerá. A vida, a mesma que agora nos atordoava, não poderia ser negada, nem ignorada, ainda que quiséssemos. O que se apresentava como solução era negar aquilo que nossa psiquê se acostumara a entender por vida. A ideia, na verdade, é mais leve do que a palavra “negar” sugere. O termo mais correto seria “desprender-se”.

O desprendimento mostrou que aquilo que a nossa psiquê se acostumara a chamar de vida era muito menos que a nossa vida. Era apenas uma vida entre muitas possíveis. Era, na verdade, a nossa rotina. Ela nos trouxe segurança por muito tempo, mas deixou de fazer sentido. Dela, nos desprendemos. A vida passou a ser aqui e agora. E o que tinha ficado lá fora ficou para depois, ou para nunca mais.

O desprendimento tem o poder de nos libertar de pesos excessivos e desnecessários. Essa foi a primeira grande lição do fim do mundo, e dela nos beneficiaremos para além desse evento.

A propósito, a essa altura, o meteoro já havia caído, e o mundo como conhecêramos não existia mais. Entre os sobreviventes, alguns tentavam reduzir os danos, enquanto outros se entregavam à ilusão, à embriaguez ou a ambas. O primeiro caminho era árduo.

Logo ficou claro que a nossa psiquê precisava também de cuidados. O realismo, seco, puro, leva à depressão, a morte em vida. Disso já sabíamos. O que se assemelhava a um desafio era conciliar o desprendimento realista, que mantínhamos debaixo do braço, com a esperança, que, por receio, tínhamos desligado. Reativá-la parecia agora questão de sobrevivência.

Então tivemos procuramos uma velha ferramenta, a fé. Tiveram motivo para se sentir gratos aqueles que a tinham guardado, por via das dúvidas, em algum canto empoeirado da bagagem que restou.

Fé não é necessariamente sinônimo de crença, apesar de ambas muitas vezes caminharem juntas. Mas esta última pode ter muitas faces. Se a crença na força superior que nos protege traz fé, a crença na força superior que nos castiga traz medo. São dois caminhos opostos e inconciliáveis. Pode mesmo haver fé independente de crença, a fé na vida, que não pede maiores explicações. Basta saber que se está vivo para ter fé na vida. A fé simplesmente é uma luz verde que acendemos no peito, e que torna o caminho à frente mais bonito.

Somente ao religá-la, percebemos que não havia contradição entre o desprendimento e a esperança. Não precisávamos forçar respostas ou alimentar ilusões, mas, sempre que necessário, vislumbrávamos o horizonte mais bonito sob a luz verde, e isso nos dava mais prazer e saúde. Quando a vida nos pisava, pedíamos ao bom Deus que nos ajudasse, dizíamos à vida: “vida pisa devagar”, ouvíamos um pouco mais de Belchior.

E assim, os dias passaram. Pareciam muitos dias, sucessivos, por vezes iguais, quase sempre curtos. A esta altura, tudo indica que vamos continuar existindo. Será como antes do meteoro? Certamente que não e, no fim das contas, nem desejaríamos que fosse. Isso quer dizer que aprendemos lições que nos farão mais fortes, depois de tudo? Depende do cada um consegue ver.

Objetivamente, a morte, o caos e a desigualdade ainda ocupam o primeiro plano da realidade presente. Enquanto trapaceiros e iludidos chamam de fé o individualismo irresponsável, niilistas se apressam em decretar que, se aprendemos alguma coisa, é que, venha meteoro que vier, nunca aprenderemos nada mesmo. Paciência, dirão.

Ironicamente, é ela que os desdirá. Ela, a paciência, o último e inegável legado do fim do mundo. A paciência nos permite continuar plantando o bem independente de tudo à nossa volta, dos outros e até de nós mesmos. Sim, um pouco mais de paciência, afinal, essas lições preciosas foram guardadas por muitos, e é até possível enxergar, sob a tal luz verde, sua manifestação lá na frente, em um futuro melhor.