segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A TRILOGIA DA AMEAÇA CRESCENTE E O BRASIL DOS ANOS 10


Filme brasileiro de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, "Bacurau" estreou este ano impactando plateias, aqui e mundo afora. Muitas análises têm sido feitas, e também comparações com os dois longas anteriores de Mendonça Filho (de que Dornelles participou como diretor de arte). São comuns, afinal, comparações entre um filme e as obras anteriores de diretor. Mas não me lembro de ter lido ou ouvido a palavra "trilogia" para descrever a sequência "O Som ao Redor" (2012), "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (2019). No entanto, ainda que suas histórias sejam independentes, há algo que une os três filmes, além dos realizadores.

Essa unidade talvez esteja no sentimento do espectador das três histórias. Para quem as assistiu no cinema, elas são mais do que apenas elas mesmas. São, além de três grandes filmes, experiências de presença em um momento histórico. E, levando isso em conta, podemos entendê-los como uma unidade, que diz muito sobre a nossa relação com os rumos da política e da sociedade brasileira entre 2012 e 2019.

Dificilmente essa foi a intenção primeira dos autores. Provavelmente, a cada produção, o objetivo era apenas realizar um filme. Mas quis o cosmos que eles formassem uma trilogia, ainda por ser nomeada, que retrata em forma de crônica este Brasil dos anos 10. Nesse sentido, o que une essas três obras é uma relação de cumplicidade com o seu público. Em geral, quem os assiste faz parte da parcela da população que percebe algo de muito errado, de muito incômodo, em seu contexto social. Algo que surge como uma ameaça pouco nítida, talvez um imaginária, e vai se concretizando e se revelando irrefutavelmente real.

- 2012

É 2012, e assistimos a "O Som ao Redor". A vida parece tranquila, mas há uma violência presente. Uma violência que parece paralela à nossa vida, não a invade. Mas uma violência histórica e mal resolvida, que preferimos não confrontar. E, conforme essa violência se "formaliza", fingimos que isso é o suficiente para mantê-la sob controle. A ameaça aparente não parece nos afetar diretamente. Pode ser que ela seja apenas imaginária: o barulho de uma máquina de lavar na vizinhança, o latidos dos cachorros, o som ao redor. Talvez seja só paranoia.

Ainda assim, ela incomoda, e desconfiamos que isso pode não terminar bem. Mas, fazer o quê? Somos apenas indivíduos bem-intecionados, não há como evitar a ação do submundo da violência. Tampouco podemos impedir as pequenas crueldades que a proto-burguesia imprime, todos os dias, aos que para ela trabalham. Apenas protestamos um pouco e, por fim, abandonamos a reunião de condomínio, pois não somos obrigados a conviver com aquilo. Deixa pra lá, vida que segue.

- 2016

Em 2016, a situação já é outra. Um filme é visto em Cannes, e lá sua equipe protesta: "parem o golpe no Brasil". O filme estreia nos cinemas do Brasil no dia seguinte à concretização desse mesmo golpe. E quem se incomodou com ele, a ponto de chamá-lo de golpe, vai assistir ao filme, e encontra Clara. A personagem de Sônia Braga é também as muitas claras que cada um de nós admirou na vida. As que nos ensinaram a amar filmes e livros, e também a amar a democracia por que lutaram. E, novamente, o filme estabelece com o espectador um laço afetivo, uma identificação imediata.

Na trama, Clara não pode mais simplesmente deixar a reunião de condomínio e, dizendo "não sou obrigada", retornar à sua rotina. Aqui, a ação da grande e da proto burguesia afetam diretamente a sua vida. Pela força do dinheiro, fazem o mal que a força sempre faz, e Clara é "convidada" a ceder, deixando sua casa. Porque podem, pelo direito do mais forte, expulsam-na de seu lugar de direito. Aqui, Clara não pode  mais ignorar: seu direito foi roubado. Como foi roubado o voto de quem elegeu o governo deposto no dia anterior.

Clara, como as muitos Claras de nossas vidas, dificilmente aceitaria engolir tão indigesto sapo em silêncio. Mas, aqui, ainda lhe é dada uma opção. "Conforme-se, e evite se aborrecer. Abra mão de seu direito, e você terá mais paz. Finja que foi só um impeachment, foi dentro da lei. E siga a vida".

- 2019

Por fim, chegamos a 2019. Aqui, a ameaça não pode mais ser ignorada. E, definitivamente, não é só imaginária. Parecia um disco voador, mas era mesmo um drone. O inimigo invisível que inflige a ameaça não se contentará com menos do que a nossa destruição. Neste ano, adentramos Bacurau, e a opção de fuga não nos é mais dada. É preciso resistir, lutar pela vida, lutar pela nossa história.

Aos que, em 2019, são chamados a lutar pela civilização brasileira, "Bacurau" traz uma lição preciosa: a resistência só é possível porque é organizada. A sobrevivência à ameaça não vem das mãos de um herói messiânico. Ela vem de uma coletividade que, unida, torna-se mais forte. E não é a raiva ou a vingança que os move. Ainda que sua postura seja firme, ela é consciente, racional, razoável. Nunca mais do que proporcional à ameaça infligida.

E assim é a nossa luta. Nos atos, nas praças, nas conversas, nos textos, nas instituições. Agora não podemos mais ter aquela postura individualista de 2012, quando éramos apenas indivíduos bem-intencionados. E, para o nosso bem, despimo-nos também da justa raiva que nos dominava em 2016. Não é possível mais adiar o momento de encarar e vencer nossos fantasmas e a nossa maldade. De, como a população de Bacurau, lidarmos com terna firmeza com os que desejam nossa morte. De estarmos muito calmos e descansados, para que a racionalidade prevaleça. E, principalmente, de estarmos juntos e organizados, pois essa é a única forma de superar a barbárie.

Afinal, por tudo isso termos aprendido nestes tão poucos anos, podemos até ser gratos a este Brasil dos anos 10. E que venham os anos 20.

sábado, 14 de setembro de 2019

CONVITE A NASCER DE NOVO


Uma Canção

Era esse o nome da música que me chamou a atenção, enquanto eu olhava despretensiosamente os vídeos sugeridos no celular. “Convite para Nascer de Novo”. Eu estava, então, fazendo carinho na gatinha da minha mãe, enquanto ela comia. Ela sempre gosta que lhe façam carinho na hora da ração. Enquanto ela comia, eu fazia carinho com uma mão e olhava o celular com a outra. E foi assim que eu me deparei com o título da música nova do Erasmo Carlos.

Título inspirador, como inspiradora é a vida do roqueiro brasileiro que melhor conservou o espírito jovem que se espera do rock and roll, na melhor acepção do termo. Com 60 anos de carreira, Erasmo mantém uma ativa produção de músicas novas que merecem ser ouvidas. A mencionada acima, com título tão convidativo, eu não poderia deixar de ouvir. E a Cecy também ouviu, enquanto comia e recebia carinho.

A letra era sobre alguém que andava morto em vida, conformado com a estagnação, até que um novo amor o convida a nascer de novo, e os dias ganham nova cor. Na canção, a origem da “vida nova” era, presumivelmente, um novo relacionamento amoroso. Mas a maioria dos versos poderia ser dirigida a qualquer pessoa, ser, ação ou ideia que apaixone, que desperte vida. O fato gerador do novo nascimento poderia ser a chegada de um filho, ou mesmo de um animal, como demonstrava aquele serzinho ronronante aos meus pés, transbordando sentimentos puros.

Mas, para além da constatação da infalível competência daquele artista, para além da análise da letra e da melodia, senti certa conexão cósmica nesse título. A sintonia com um inconsciente coletivo pareceu clara, pois, naquela mesma semana, eu já havia ouvido outro “convite a nascer de novo”.

Um Índio

Foi em uma entrevista do líder indígena Ailton Krenak. Em dado momento, o entrevistador pergunta o que ele teria a dizer a uma pessoa que repete discursos como o de que “índio não gosta de trabalhar”. Certamente tanto o entrevistador quanto os espectadores se prepararam para argumentos didáticos e irrefutáveis contra o preconceito. Mas a resposta de Krenak foi curta como um soco de Muhammad Ali.

- Eu quero dizer que essa pessoa precisava nascer de novo.

Seguiu-se um interminável segundo de silêncio em que o entrevistador parecia não acreditar que não haveria mesmo nenhum complemento, nenhuma explicação a mais. E, depois disso, apenas o barulho das engrenagens de nossa mente, posta para refletir.

Quando uma pessoa comum diz que “fulano, só nascendo de novo”, certamente está afirmando que para essa pessoa não existe salvação, que não há jeito de mudá-la ou que com ela não há negociação possível. E há, de fato, esse significado na fala de Krenak.

E como não haveria? O entrevistador pede para o indígena mandar uma mensagem para os que, na melhor das hipóteses, defendem a morte de todo o modo de vida dele e dos seus e, na pior delas, defende a morte do próprio Ailton. Essa tem sido nossa História: homem branco mata índio. Isso não aconteceu séculos atrás: isso acontece continuamente, desde há séculos atrás. Não caberia, portanto, qualquer tom de simpatia e camaradagem na fala do indígena. Essa justa indignação seria o único conteúdo da frase, se estivéssemos falando de uma pessoa normal.

Mas Ailton não é uma pessoa normal, como bem o sabem os que conhecem certo episódio de 1987, em que esse mesmo líder pintou o próprio rosto enquanto discursava na assembleia constituinte, em defesa do povo indígena. Para quem já assistiu as imagens dessa manifestação política, uma das mais emocionantes do século passado, não é delírio supor que a sua fala presente é mais profunda do que um mero “não tem jeito”.

Sim, ainda que Ailton Krenak não goste nem seja obrigado a gostar de quem transmite adiante o velho e insalubre “índio não gosta de trabalhar”, há amor em sua fala. O amor que assume a forma de um convite, evidente para quem se dispuser a olhar a frase para além do soco verbal que ela também é.

Portanto, a você, brasileiro-branco-médio-que-odeia-índio, Krenek diz: “Tem jeito, há salvação, a negociação é possível. Mas, para isso, você precisa se tornar alguém para quem a minha morte e a destruição da natureza não seja a única solução possível. Você precisa nascer de novo”.

E esse é o outro convite a nascer de novo, a que a canção me remeteu. E que, por sua vez, me lembrou de ainda outro convite a nascer de novo, relatado há muitos séculos.

Nicodemos

“Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse:

– Rabi, sabemos que és mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.

A isto, respondeu Jesus:

– Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

Perguntou-lhe Nicodemos:
– Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?

Respondeu Jesus:

– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo” (Evangelho de João, 3:1-7, tradução: Almeida Revista e Atualizada).

Nicodemos se dirigiu a Jesus com toda a cortesia e erudição de quem ocupa uma alta posição social e religiosa. E, com toda a calma e autoridade de quem ama seu interlocutor, Jesus mandou a real: Nicodemos, você não está entendendo. Você precisa nascer de novo.

Esse era o primeiro convite a nascer de novo em minha memória, a que me remeteu o segundo convite, na entrevista de Ailton Krenak, a que me remeteu, por sua vez, o terceiro convite, na letra do Tremendão.

E vinha de Jesus, aquele mesmo que, sem nunca ter dito que ninguém era obrigado a gostar de ninguém, mandou que apenas nos amássemos. O mesmo que, no mínimo, não era uma pessoa comum. E, no máximo, como ensina a teologia cristã, é quem veio ao mundo para resgatar a “primeira identidade” do homem. O que nos leva a um relato ainda mais antigo, sobre um sujeito que em dado momento parou de gostar de trabalhar.

Adão Pisou na Bola

Adão pisou na bola, e teve de sofrer as consequências. Com a queda, perdeu sua primeira identidade, sentindo-se completamente nu. Por ter comido do fruto da única árvore proibida, Deus o lançou fora do jardim do Éden. E, ao fazê-lo, disse: “maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida (...) no suor do rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:17-19).

A nossa cultura ocidental, que herdou a crença da Bíblia, enxerga aqui a origem do trabalho. E o fato de vermos aqui a origem do trabalho diz muito sobre a forma como enxergamos o próprio trabalho: como um castigo, ou até uma tortura. Tão forte é em nós essa abordagem que deixamos passar algo muito significativo, contido no mesmo relato de origem.

Neste mesmo livro de Gênese, antes de Adão ser castigado, antes de ele ter caído, antes mesmo de ele ter pisado na bola, diz o texto que:

“Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis, 2:15).

Isso quer dizer que antes da queda o homem já trabalhava. E essa ação era tão espontânea que não era preciso nem lhe dar um nome. Ele vivia em harmonia com a natureza, servindo ao jardim tanto quanto o jardim o servia. Bendita era a terra, e o homem a cultivava, e não a destruía.

A vida do Adão pré-queda era tão plena que ele teria paciência até mesmo para mandar uma mensagem a quem, hoje, se acha no direito de dizer quem gosta e quem não gosta de trabalhar. Diria ele à sua contraparte pós-queda do século XXI:

– Na verdade é você que não gosta de trabalhar. Tanto não gosta de trabalhar, que só consegue ver no trabalho algo que alguém tenha de obrigar outro alguém a fazer. Tanto não gosta de trabalhar que quer que outros trabalhem para si, ou sonha com o dia em que isso aconteça. Tanto não gosta de trabalhar, que sequer percebe a diferença entre exploração do trabalho e exploração do trabalhador.

Exploração do Trabalho e Exploração do Trabalhador

Dizer que um bem ou um serviço foi produzido sem exploração do trabalhador não quer dizer que ele tenha sido feito por robôs. Há uma diferença entre exploração da força de trabalho (emprego da ação do trabalhador na produção) de exploração do dono da força de trabalho (emprego de um trabalhador subpago na produção para outrem).

Há exploração do trabalhador quando o que ele recebe pelo uso de sua força de trabalho é inferior ao que vale essa força de trabalho. Em uma explicação bem simplificada, essa diferença é a mais-valia, teorizada por Marx.

Karl Marx foi autor da mais notória teoria sobre a exploração do trabalhador. Em sua obra máxima, “O Capital”, de 1867, ele diferencia muito claramente os conceitos de processo de produção da mais valia e processo de trabalho. Para ocorrer mais-valia, é preciso haver trabalho, mas o trabalho pode ocorrer sem que se gere a mais valia. E, enquanto a produção de mais valia é típica do capitalismo, o trabalho é inerente à humanidade, em todos os seus sistemas sociais e modos de produção. Está lá no capítulo 5, pode conferir.

Mas “O Capital” é um livro muuuuito grande e, além disso, incômodo. Assim, sequer nos demos ao trabalho de folheá-lo (nem que fosse para criticar). E seguimos hoje acreditando que trabalho é algo indissociável da exploração do trabalhador, crença que está entranhada no coração do brasileiro médio.

E, aqui, o índio volta à nossa história, dizendo ao brasileiro branco médio: disso que eu não gosto mesmo. Não gosto de ser explorado, ganhando menos do que o valor do meu trabalho. Ganhando apenas o necessário para continuar vivo, para trabalhar mais, até o fim da vida, para o conforto de poucos abastados. Não gosto de tratar a natureza como objeto a ser dominado e consumido até a exaustão. É esse o tipo de trabalho que você tenta me impor, e dele eu realmente não gosto, nem deveria.

Bem Viver

Mas esse, felizmente, não é o único modo de vida, de trabalho e de relação com a natureza possível. Não é o único e muito menos é o melhor. Os povos indígenas, agora, como desde sempre, nos apresentam o seu “bem viver”.

Bem viver é um conceito simples e, ao mesmo tempo, ampliador de horizontes. É um princípio tão antigo quanto os povos tradicionais que estabeleceram suas bases. Ao mesmo tempo, abre portas para o futuro da civilização, ao atribuir um novo significado ao desenvolvimento. Este, no bem viver, está baseado na harmonia do homem com a natureza e com seus semelhantes, na busca pela equidade social e pela justiça ambiental.

O bem viver esteve sempre à nossa disposição. Mas para que nós, homens brancos do ocidente, levássemos essa ideia a sério, foi preciso que atingíssemos o limite do modo de vida a que nos acostumamos. Foi necessário que nos víssemos perigosamente próximos da própria destruição para pensarmos a respeito. E só aí, finalmente, desconfiamos que essa prática, a de homens explorarem outros homens e submetem a natureza ao lucro imediato, talvez não seja algo “da natureza humana”, eterna e imutável. Como um viciado ao constatar que sua trilha só pode levar à morte, nossa civilização não pode mais deixar de refletir sobre a necessidade de mudar de vida. Sobre a possibilidade de bem viver.

A decisão de viver bem, de viver em harmonia com a natureza e com o próximo, pode não apenas nos salvar da morte, mas trazer vida em abundância. Pode nos permitir orbitar “o infinito de uma coisa boa” e trazer “primaveras de estações sem dor”. E o bem viver é, sim, possível. É preciso, apenas, nascermos de novo.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

IGUALDADE, IDENTIDADE, DIVERSIDADE...


Poucos notam, mas há dois relatos da criação na Bíblia, no início do livro de Gênese. A narrativa mais antiga e conhecida está em Gênesis 2 (4 a 24) . Antes dele, em Gênesis 1 e 2 (1 a 3), encontramos o relato que foi escrito depois. É um poema sobre a criação do mundo, escrito durante o exílio dos judeus na Babilônia. Nesse relato, o homem não foi criado antes da mulher. Não há costela de Adão e nem domínio de um gênero sobre outro. Ali, o texto simplesmente diz:

“Criou Deus, pois, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27).

Enquanto o primeiro relato (que, na Bíblia, vem em segundo lugar) foi registrado em papel no auge da glória do reino de Salomão, este segundo, o poema, foi escrito durante a escravidão. Ali, nivelados pela pobreza, os homens despiram-se das lentes de riqueza e poder. Essas lentes que distorcem nosso olhar, fazendo com que creiamos na ilusão de hierarquia entre uns e outros. Ali, a dominação a todos atingia. Ali, os do povo judeu, homens ou mulheres, eram todos iguais.

Mas, nesse poema da criação, também não eram iguais. Eram diferentes. “Homem e mulher os criou”. Aí há diversidade. Duas pessoas foram criadas, e uma era diferente da outra. Não havia hierarquia entre elas, mas não eram iguais.

Aqui cabe um esclarecimento semântico: precisamos saber a diferença entre igualdade e igualdade. Sim, são dois conceitos completamente diferentes! Podemos ser iguais quando não há diferença entre nós, mas também podemos ser iguais quando, com toda a nossa diferença, não há hierarquia entre nós. Quando pregamos a igualdade entre as pessoas, não estamos querendo que elas sejam todas iguais. Em primeiro lugar, porque seria, de fato, impossível. E, em segundo, porque a grande riqueza humana é a sua diversidade. Quando louvamos a igualdade entre as pessoas, não desejamos que todas sejam iguais, o que seria uma causa perdida e burra. Queremos que não haja hierarquia entre elas.

Essa diferença é óbvia, se explicada. Mas, antes disso, pode causar muita confusão. A propaganda a favor da hierarquia social se utiliza fartamente, e com muito sucesso, dessa confusão conceitual. A igualdade entre as pessoas, dizem, jamais irá acontecer, pois elas são muito diferentes entre si. Atrás desse argumento, ajuntam um sem número de seguidores, porque a diferença entre as pessoas é, de fato, mais do que desejável. Mas disso não decorre que deva haver hierarquia entre elas: que uma possa tenha poder para dominar a outra, para escravizá-la, para submetê-la à própria vontade.

Dito isso, podemos voltar ao poema e entender que Deus os criou como iguais. Mas, atenção: homem e mulher os criou. São duas pessoas, têm identidades distintas. E, porque são diferentes, o texto nos diz “homem e mulher os criou”. E chegamos ao triste engano que afeta até mesmo este século.

Não são poucos da fé que usam esse verso para dar o significado exatamente contrário. Não enxergam que Deus criou duas pessoas, e uma era diferente da outra. Veem, antes, duas categorias a que todos devem se enquadrar. Como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. E o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo binário, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

*

Somente neste século XXI, para melhor entender as identidades de gênero e a sexualidade humana, o modelo binário é incrementado. Assim, a segundo a sua identidade de gênero, uma pessoa pode ser homem ou mulher. Segundo sua preferência sexual, pode ser gay ou hétero. E, de acordo com o alinhamento de sua identidade de gênero ao sexo biológico, pode ser cis ou trans. Combinando as três variáveis no modelo, existem 8 possibilidades.

Uma pessoa toma conhecimento desse modelo. Vamos chamá-la, hipoteticamente, de Sônia. Por ser uma pessoas aberta ao novo, Sônia acha o modelo bastante interessante e esclarecedor. Ela vai, então, apresentá-lo a um amigo, a quem atribuiremos o nome de Tarcísio.

Tarcísio, diferentemente de Sônia, é avesso ao novo. Ele logo entende que, no modelo que Sônia lhe apresenta, seu papel é de homem cis hétero. Isso lhe parece bom, soando mesmo como um título nobiliárquico. Mas, quando Sônia explica as inovações que o modelo comporta, ele recua.

– Quer dizer que alguém com cromossomos XX pode ser um homem trans gay e se relacionar com um homem cis gay?

– Sim!

– Quer dizer que um homem cis pode namorar uma mulher trans, e ambos serem héteros?

– Sim!

– Iiiiiih... Pra mim, isso ficou muito difícil de entender.

Sônia sabe que Tarcísio é pós-graduado em Finanças nos EUA, e que sabe muito bem explicar a diferença entre posição comprada numa opção de venda e posição vendida numa opção de compra. Como não poderia entender um modelo simples com três variáveis binárias? Ela tenta novamente:

– Não é difícil não. Espere, vou fazer um diagrama de árvore para você ver.

– Ah, não, por favor, não precisa. Eu não dou conta disso não – diz Tarcísio, por fim, fechando-se para qualquer apelo.

Certamente, pensa Sônia, não é por falta de inteligência que Tarcísio não entende o modelo. Talvez seja por acreditar, erradamente, que a afirmação da identidade do outro ameaça a sua. Talvez seja porque está muito confortável no modelo mais simples, tendo tido sucesso em adequar-se a ele, e sentindo vertigem diante de uma mudança no status quo. Ou, vai saber, talvez tenha mesmo cansado muito a mente no seu MBA no exterior.

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Assim, como o modelo que empolgou Sônia e assustou Tarcísio, a sigla LGBT procura incluir, generosamente, as diferenças e minorias sexuais e de gênero. Busca contemplar, ainda, os que não se enquadram na classificação binária, como bissexuais. Conforme mais especificidades sejam integradas à bandeira da diversidade, a sigla pode aumentar, incluindo um “I” (intersexuais), um “Q” (queer), um “A” (assexuais), um + (quem mais chegar)...

A expressão dessas identidades ajuda, e muito, os que nelas encontram lugar. Ajuda-os a cultivar o amor próprio, compreendendo-se como parte do mundo e não como algo estranho a ele. Mas, talvez acima de tudo, esses modelos e siglas servem aos Tarcísios da vida. A eles, é oferecida a oportunidade de entender um pouco melhor a diferença entre si e o outro. De perceber que o outro não é uma ameaça a si. E, assim, superado o medo, ter o caminho livre de desculpas para respeitar o diferente.

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Mas e se nós, como Sônia, somos abertos ao novo e conseguimos identificar cada letra de tão cara sopa? Bom, nesse caso, estamos de parabéns, mas não livres de risco. Risco de, como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. De, tornando-nos ortodoxos, acharmos que a realidade deve refletir o modelo, e não o contrário. De, como um fundamentalista diz que “homem é homem e mulher é mulher”, acharmos que “L é L, G é G, B é B, T é T...”. E assim, o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo complexo, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

Nosso pensar pequeno a tudo quer dar fim, definir, enquadrar em categorias de que possamos dar conta. E, ao menos nisso, Tarcísio está certo. A gente não dá conta. E não precisamos dar conta. Porque se, como dito acima, o entendimento pode ajudar muitos a respeitar o diferente, muito melhor do que isso é respeitar e amar independente de entendimento. Aliás, quando entendemos que não entendemos ficamos um pouco mais próximos de entender. No limite, a diversidade é tão vasta quanto a própria humanidade. Ela é infinita, como infinito é o autor da criação. E podemos deixá-la fluir, como um rio que não precisa ser controlado.

sábado, 27 de julho de 2019

QUANDO O EVANGELHO É ESVAZIADO DE SUA JUSTIÇA


A Igreja perseguida é um elemento forte na cultura cristã. A perseguição fez parte da vida da Igreja e ainda ocorre em países em que não há liberdade para se pregar ou viver o evangelho. A forma direta ou clássica de cercear a liberdade se dá pela força, pela brutalidade, pela violência. A Igreja deseja jamais viver essa realidade, ainda que saiba que é possível que viva. Por ser concreta, é essa modalidade de repressão que sempre nos vem à mente, como se fosse a única forma de limitar a liberdade. Existe, porém, outra forma de se banir o Evangelho de uma sociedade.

A forma indireta ou sutil de banimento do Evangelho se dá pelo esvaziamento de todo o seu conteúdo que ameace o poder instituído. Quando isso ocorre, o Evangelho se transforma em uma grife e Jesus torna-se apenas um nome, esvaziado da sua pregação. Se, na perseguição direta, busca-se proibir o Evangelho, uma sociedade que esvazia esse mesmo Evangelho de todo o seu conteúdo de justiça não precisa se dar ao trabalho de proibi-lo. Insípida, a fé é permitida e até incentivada.

A grande ironia desse tema está em que, por termos muito medo da forma direta de perseguição, nos tornamos mais suscetíveis à sua forma indireta. A perseguição brutal se dá em lugares em que a religião cristã não é a hegemônica (dominante) e, por isso, sofre perseguição do poder dominante. Já a perseguição sutil é quase sedutora, porque se dá em um ambiente em que a nossa religião é a hegemônica. Afinal, pensamos erroneamente, que maneira mais fácil de impedir que o poder nos atinja, se não aliando-nos a ele? Mas larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição (Mt. 7:13-14).

Aliados ao poder, temos a impressão de que o Cristianismo está no controle. Mas, quando o poder é injusto, o que, para dizer o mínimo, não é pouco frequente, a fé, para se aliar ou se submeter a ele, precisa se esvaziar da justiça, pois é esta que ameaça os poderes injustos (Mt. 5:10). Se a fé se abstém da justiça, ela deixa de ser ameaça, tornando-se até uma boa ferramenta para os poderes do mundo. E é essa a forma indireta de se banir o Evangelho de uma sociedade: exaltando-o formalmente, mas esvaziando o seu conteúdo de justiça.

Esse banimento do Evangelho é invisível, pois não é realizado por inimigos abertos da fé, mas pelos próprios religiosos. É um processo sutil, silencioso, quase imperceptível, e por isso é muito mais eficiente do que a repressão pela força. Não pode sequer ser chamado de proibição: abrimos mão voluntariamente dos conteúdos e princípios do Evangelho, para que ele seja aceito por patrocinadores em potencial.

Nesse contexto, não sentimos a dor da perseguição, pois estamos anestesiados. Não sentimos tampouco a dor daqueles que são vítimas do poder a que nos aliamos. Descumprimos, assim, o maior dos mandamentos (Mc 12:30-31, Lc 10:25-37). E, se essa possibilidade ainda parece irreal, lembremos alguns exemplos, a começar pelo próprio Cristo.

Jesus não propôs uma nova religião. Sua pregação resgatava o conteúdo de justiça da religião já existente (Ex. 22:22, Dt 24:17, Dt 25:15,16, Sl 5:6). Mas, em seu tempo, os próprios líderes dos filhos de Israel haviam abandonado o conteúdo de justiça da fé. Para sua sobrevivência, haviam se aliado ao poder Romano, injusto por natureza e que explorava o próprio povo judeu até a miséria.

O retorno aos valores de justiça, de que eles mesmos abriram mão, representava um risco para suas alianças com o poder secular. O Evangelho de Jesus implicava a busca pela justiça, sendo incompatível com a adesão a poderes injustos. A pregação de Jesus era, assim, incômoda (Mt. 23), porque desestabilizava as estruturas de dominação política e religiosa. E foi isso que levou à crucificação, em seu sentido humano.

No século XVI, homens como Lutero também não desejaram fundar uma nova religião, mas apontar as práticas de sua própria Igreja que pervertiam a justiça do Cristianismo. Os reformadores denunciaram o comércio da fé e exploração do povo. Por essa razão, a Igreja oficial expeliu-os de seu meio e, a partir daí, surgiram igrejas reformadas, protestantes contra as injustiças de seu próprio meio religioso original.

Já no século XX, a ascensão do Nazi-Fascismo e sua escalada brutal se deu no seio de sociedades cristãs. O regime nazista perseguia judeus, homossexuais, marxistas, eslavos, negros e deficientes físicos, mas não tinha, a princípio, nada contra o cristianismo, religião majoritária da Alemanha. Seria muito fácil para um cristão se adaptar ao regime, desde que ele ignorasse a dor do próximo e os mandamentos de Cristo. E a maior parte das autoridades cristãs fechou os olhos à opressão que ocorria ao seu lado.

Mas Dietrich Bonhoeffer, um dos maiores teóliogos de nosso tempo, escolheu seguir os passos de Jesus e não compactuar com a injustiça. Foi preso por ajudar judeus em fuga, e morreu em um campo de concentração em 1945, compartilhando o destino dos povos perseguidos pelo nazismo.

Nos Estados Unidos dos anos 1960, o reverendo Martin Luther King lutou contra aquilo que, dentro de uma sociedade cristã, ofendia a Deus: a injustiça contra povo negro. Ele foi perseguido e morto em uma sociedade fortemente religiosa, por aqueles que diziam amar sua tradição cristã, mas que tiveram ignorar o conteúdo de justiça do Evangelho para poder viver seu ódio racial.

Chegamos aos dias de hoje e, se a perseguição direta está distante de nós, histórica ou geograficamente, constatamos que o outro tipo de banimento do Evangelho, o sutil, está muito próximo. A Igreja se aproxima do poder e se afasta de Jesus.

Neste tempo e lugar, certo liberalismo conservador individualista (também este depurado de possíveis conteúdos libertários) nos diz que a miséria do próximo é problema do próximo e de ninguém mais. Os próprios conceitos de injustiça social, exploração e opressão se tornam incômodos, como um elefante na sala. Incômodos como as vozes de Jeremias, Elias e João Batista no deserto. E, ao acharmos normal a brutal desigualdade econômica, abrimos mão de nossa fome e sede de justiça (Mt. 5:6).

Para surfar a onda do consumismo individualista anestesiante, a Igreja tem ignorar que o Evangelho nos ensina que “tive fome, e me deste de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso e fostes ver-me (...)” e que “sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt. 24:35-40). De igual modo, para naturalizar a inserção dos crentes na lógica do lucro econômico, a igreja deve também ignorar as palavras de Jesus que afirma não podermos servir a Deus e às riquezas (Mt. 6:24).

Neste tempo e lugar certa teologia prega também a dominação cristã sobre o mundo. Somos convencidos de que o povo de Deus deve ocupar todos os espaços estratégicos na sociedade. Mantemos assim relações promíscuas com o poder secular, e para isso precisamos esquecer a afirmação de Jesus de que seu Reino não é deste mundo (Jo 18:36).

Neste tempo e lugar, ouvimos que “bandido bom é bandido morto”, e queremos repetir acriticamente o mesmo brado. Para isso, temos de esquecer que Jesus, porém, nos diz: “não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt. 5:38-39). E que também nos diz: “amai os vossos inimigos” (Mt 5:43-46, Lc. 6:32-36). Precisamos, igualmente, tapar os ouvidos às recomendações apostólicas de que a ninguém paguemos mal por mal, que não nos vinguemos e que vençamos o mal com o bem (Rm 12:17-21). Mas na esteira do ódio que de todos esses mandamentos esquece, nos esvaziamos, desafortunadamente, de toda mansidão, toda misericórdia e todo caráter pacificador (Mt 5: 5-9).

Por fim, neste tempo e lugar, certa ideologia disfarçada de fé associa o nome de Jesus ao símbolo do lobby armamentista. É a cereja do bolo, o ápice do desrespeito ao Evangelho e da negligência a seu conteúdo.

Ao associarmos Jesus à arma de fogo, invalidamos o fato de ele não ter vindo como líder militar que comandaria exércitos (Mt 26:52-53), frustrando a expectativa de muitos. Temos de esquecer também que ele nos diz: “embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão” (Mt 26:52). Para ostentarmos o nosso “dedinho-arma” e ainda pensarmos que seguimos Jesus, temos de esquecer essas palavras, ou fingir que espada e arma de fogo são coisas completamente diferentes. Estaremos enganando, no máximo, a nós mesmo.

Assim, somente editado de todas as suas “cenas perigosas”, o Evangelho está pronto para ser transmitido em TV aberta, com os bons índices de audiência garantidos. Submissa e atrelada às elites econômica, política e militar, a elite religiosa pode até colher os frutos materiais de seu trabalho (a qual dos senhores teriam servido?). E a igreja, esvaziada de todo o seu conteúdo de justiça, torna-se insípida. Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens (Mt . 5:13, Mc. 9:49-50, Lc 14:34-35).

Assim, ser discípulo de Jesus é muito mais do que seguir cegamente aqueles que põem Deus acima de todos, mas apenas da boca pra fora. Porque Jesus nos diz que, se a nossa justiça não exceder a de muitos líderes religiosos, não viveremos, de fato, o Reino de Deus (Mt. 5:20). E, a muitos dos que julgam que em seu nome profetizam, expulsam demônios e realizam muitos milagres, Jesus diz claramente: “nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:22-23).

sábado, 16 de março de 2019

O FIM DO MUNDO NÃO É O FIM DO MUNDO


A ideia de fim do mundo desperta medo no coração das pessoas. É natural que seja assim, mas, para aqueles que associam a consumação dos séculos à volta de Cristo, não deveria tal acontecimento trazer conforto? E, no entanto, o pavor do fim dos tempos é ainda mais agudo entre os crentes. Nesse meio, o que se observa muitas vezes é um alarmismo, como se uma árdua “preparação” fosse necessária. A partir daí, o risco de se adotar uma postura neurótica em relação à vida é enorme. Ou seja, por mais que se faça, a pessoa pode sempre se achar em dívida diante do Juízo Final.

Para saber se tanto desespero se justifica à luz das escrituras, vamos examinar o que o próprio Jesus disse sobre o assunto, no Evangelho segundo Mateus. Este estudo não se propõe a analisar toda a riqueza do sermão profético. Nosso foco é o ensinamento sobre a postura prática desejável ao cristãos, com vistas à volta de Cristo.

1- Não se deixe enganar.

Em Mateus 24, os discípulos perguntaram a Jesus sobre sua vinda e o fim dos tempos. Ao responder, sua primeira preocupação foi preveni-los quanto à ação de enganadores.

4. E ele lhes respondeu: Vede que ninguém vos engane.
5. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo, e enganarão a muitos.
(...)
11. levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos;
(...)
23. Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo Ali! Não acrediteis;
24. porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos.
(...)
26. Portanto, se vos disserem: Eis que ele está no deserto!, não saiais. Ou: Ei-lo no interior da casa!, não acrediteis.

De fato, o medo excessivo do fim do mundo expõe o crente a ser enganado por falsos profetas. Não cair no charlatanismo é a primeira lição do Sermão Profético. “Eis que de antemão vo-lo tenho dito”, completa Jesus. Não temos, pois, desculpa para nos deixar prejudicar por aproveitadores da fé.

2- Desgraça e caos não necessariamente significa fim dos tempos.

Em segundo lugar, Jesus nos acalma em reação a acontecimentos caóticos à nossa volta. Quem nunca ouviu algo como “tem tanta coisa ruim acontecendo, será o fim do mundo”? Não, diz Jesus, não será o fim do mundo, apenas o princípio das dores. Olhai não vos perturbeis; porque forçoso é que assim aconteça; mas ainda não é o fim.

6. E, certamente, ouvireis falar de guerras e rumores de guerras; vede, não vos assusteis, porque é necessário assim acontecer, mas ainda não é o fim.
7. Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino, e haverá fomes e terremotos em vários lugares,
8. porém tudo isto é o princípio das dores.

3- O bom proceder em meio ao princípio das dores

12. e, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos.
13. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo.

Iniquidade é injustiça, maldade. O que, de fato, assistimos o tempo todo no mundo contemporâneo, ainda que não seja novidade de nossa época. Viver neste mundo é viver em meio à dor.
E temos a tendência natural de reagir à dor com agressividade, a responder à violência com violência. A dor da iniquidade, da injustiça, faz com que o amor se esfrie em nós. Mas quem perseverar no amor, apesar de toda a iniquidade, será salvo.
A salvação é justamente essa: que a chama do amor permaneça acesa em nós. E para que o amor não se esfrie, é preciso manter-se calmo, mesmo diante da iniquidade.
Como disse Jesus, os revezes da existência, mesmo os grandes, não são o fim. Então, temos de aprender a conviver com eles pelo tempo que for necessário. Quanto ao fim...

4- Nem perca tempo tentando descobrir quando, porque ninguém sabe.

36. Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão o Pai.
(...)
42. Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor.
43. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa.
44. Por isso ficai também vós apercebidos; porque à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá.

Se soubéssemos a hora, era só ficaríamos esperando. Mas não sabemos, então temos de vigiar. Isso quer dizer que ficar em estado de alerta o tempo todo? Não, porque...

5- Vigilância não é falta de descanso.

Na parábola sobre o pai de família, Jesus deixa claro que este não sabe a que horas o ladrão vai chegar. Ora, sendo assim, melhor faz ele em ir dormir. Mas como? A parábola, afinal, é uma exortação à vigilância!
Disso, então, só podemos inferir que vigiar não é ficar alerta o tempo todo, algo humanamente impossível. Lutar contra nossas limitações, descuidando da própria saúde física e mental, é uma forma de errar o alvo.
Vigiar não é querer controlar tudo, mas entregar o controle a Deus. Desse modo, o dono da casa poderá dormir tranquilo e, quando Jesus chegar (aqui o ladrão é Jesus) encontrá-lo-á vigilante, mesmo que esteja dormindo.

6- O bom proceder com vistas ao fim do mundo.

No final de Mateus 24 e em todo capítulo 25, Jesus contrapõe o bom e o mau proceder diante de sua volta. São quatro passagens: as parábolas do bom servo e do mau, das dez virgens e dos talentos e a descrição do Grande Julgamento.

Fiel e prudente x Mau e hipócrita

Na parábola dos dois servos, o bom servo é aquele que, mesmo na ausência de seu senhor, faz o que este lhe confiou: dar a seus conservos o sustento a seu tempo.
Assim, pois, o somos, conforme praticamos espontaneamente o amor, dividimos o pão, o material e o espiritual, a comida e o conhecimento. “A seu tempo” também deve ser destacado: é uma medida de equilíbrio, pois ninguém pode nem deve trabalhar o tempo todo. O jugo deve ser suave, e o fardo, leve.
O mau servo é aquele que espanca os seus companheiros e passa a comer e beber com ébrios. Podemos entender por embriaguez tudo aquilo que consome tanto nossa atenção e nossas energias a ponto de nos desviar do que é mais importante (dar ao próximo o sustento a seu tempo).
O servo mau é descrito como hipócrita, pois possivelmente faria o bem aos olhos do senhor, mas na ausência dele, se inclina para o mau e para o próprio ego.

45. Quem é, pois, o servo fiel e prudente, a quem o senhor confiou os seus conservos, para dar-lhes o sustento a seu tempo?
46. Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim.
47. Em verdade vos digo que lhe confiará todos os seus bens.
48. Mas se aquele servo, sendo mau, disser consigo mesmo: Meu senhor demora-se,
19. e passar a espancar os seus companheiros e a comer e beber com ébrios,
50. virá o senhor daquele servo em dia em que não o espera e em hora que não sabe
51. E castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes.

Sábias x Néscias

Na parábola das dez virgens, estas esperam o noivo, que tarda a chegar. Ao final, Jesus (aqui, o noivo) leva consigo apenas cinco delas, as prudentes.


1. Então, o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se com o noivo.
2. Cinco dentre elas eram néscias, e cinco, prudentes.
3. As néscias, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo;
4. no entanto, as prudentes, além das lâmpadas, levaram azeite nas vasilhas.
5. E, tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e adormeceram.
6. Mas, à meia-noite, ouviu-se um grito: Eis o noivo! Saí ao seu encontro!
7. Então, se levantaram todas aquelas virgens e prepararam as suas lâmpadas.
8. E as néscias disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão-se apagando.
9. Mas as prudentes responderam: Não, para que não nos falte a nós e a vós outras! Ide, antes, aos que o vendem e comprai-o.
10. E, saindo elas para comprar, chegou o noivo, e as que estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta.
11. Mais tarde, chegaram as virgens néscias, clamando: Senhor, senhor, abre-nos a porta!
12. Mas ele respondeu: Em verdade vos digo que não vos conheço.

13. Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora.

O texto mostra mais uma vez que o conceito de vigilância não é ficar alerta o tempo todo. Repare que as prudentes também dormiram! O que as diferencia não é o dormir ou não dormir, mas o azeite nas vasilhas, para manter as lâmpadas acesas. O que é o azeite?

O temor de Deus

O temor de Deus não é ter medo de Deus. É ter intimidade com Deus, entregar a ele o controle. Vigiar é estar na presença de Deus. Esse é o azeite para nossas lâmpadas, combustível que garante que nossa luz não se apague. Vigiar é viver em oração, é estar com o coração perto de Deus. Isso é o que nos faz proceder bem, ajudando nosso próximo, mesmo quando estamos descansando ou distraídos, mesmo sem perceber ou se preocupar em fazer o bem por estar sendo observado. O temor é uma postura de respeito e de consideração: considerar Deus enquanto Deus, amor e sabedoria absolutos. A relação que se estabelece a partir dessa consciência é de carinho, amparo e confiança, e não de medo.

Compartilhar x Enterrar talentos

1. Pois será como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens.
2. A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu.
3. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco.
4. Do mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois.
5. Mas o que recebera um, saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor.
6. Depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles.
7. Então, aproximando-se o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei.
8. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.
9. E, aproximando-se também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, dois talentos me confiaste; aqui tens outros dois que ganhei.
10. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.
11. Chegando, por fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste,
12. receoso, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu.
13. Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei?
14. Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu.
15. Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez.

Aqui, há novamente duas atitudes contrapostas: compartilhar os talentos que nos foram dados, multiplicando-os, ou enterrar o nosso talento.
É Deus quem dá o talento, a capacidade e as condições para trabalhar. O talento é conferido a cada um em única medida. E Deus pede a cada um somente segundo as suas possibilidades. É possível e desejável exercer esse talento de forma espontânea, natural, sem medo e nem sacrifício, antes, na medida do prazer. Entre os três servos a quem foram confiados talentos, aquele que se alarmou e teve medo de Deus foi justamente o que acabou não utilizando seu talento.

Enxergar x Ignorar o próximo

Por fim, Jesus descreve o grande julgamento em que, novamente, o bom e o mau proceder são contrapostos. As palavras da passagem são mais que conhecidas. Em suma, terão procedido bem com Jesus aqueles que fizeram bem ao seu próximo. Igualmente, a seguir, o mau proceder diante de Jesus é explicitado como o ter ignorado o próximo.

34. Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.
35. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes;
36. estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.
37. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber?
38. E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos?
39. E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar?
40. O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.

Aqui, deve ser destacado o fato de que aqueles que fizeram bem ao próximo e, consequentemente, a Jesus, não o fizeram com o objetivo de receber recompensa. Aliás, como vemos nos versículos 37 e 38, eles nem perceberam que fizeram o bem, pois fizeram espontaneamente. Não fizeram o bem por medo do juízo final, mas porque era bom fazê-lo.

Conclusão:

Vigiar é estar na presença de Deus. A partir daí, espontaneamente, daremos ao nosso próximo, a seu tempo, o sustento. Utilizaremos nossos talentos de forma sábia, na medida de nossas possibilidades. Repartiremos o pão material e o espiritual com quem tem fome e sede, seja de comida, de bebida, de amor ou e de conhecimento. E descansaremos tranquilos, sabendo que Deus está no controle.
O bom proceder com vistas ao fim do mundo é, afinal, o mesmo bom proceder com vistas à continuidade da vida. Porque o porvir é apenas a continuação do que começa aqui, do governo de Deus que está no meio de nós.
Sem necessidade de ter medo, vivamos pois em alegria. Pelo tempo que só a Deus sabe, pois só a Ele cabe saber.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

CRISE, FASCISMO E O SUPER-HOMEM


Afinal, o Super-Homem é fascista? Esta pergunta surge estimulada pela recente obra  “Super-Homem e o Romantismo de Aço”, de Rogério de Campos. A resposta deste historiador e leitor de quadrinhos é simples: depende.

Sim, pois, ao contrário do Lula, que deixou de ser pessoa e se tornou uma ideia, o Super-Homem nasceu como uma ideia e se tornou uma pessoa, ou ao menos um personagem. E este, o nosso velho conhecido, o repórter Clark Kent, não é fascista.

Com seus super-poderes, Clark poderia dominar o mundo, mas, tendo sido muito bem educado pelo casal Kent, prefere manter uma postura legalista. O Super-Homem escoteiro que conhecemos hoje está muito mais para constitucionalista liberal. Pode até ter votado alguma vez em Ronald Reagan, mas jamais ajudaria a eleger Trump (este muito mais próximo da versão magnata do Lex Luthor, dos anos 80).

Grande Depressão e o Sonho de Superpotência

Mas não é a “pessoa” que importa aqui, mas a ideia do Super-Homem, e esta é de fato muito próxima à essência do fascismo. O contexto histórico em que o super-herói é criado é o mesmo que gerou o nazi-fascismo. Diga-se de passagem, a inspiração filosófica para ambos também é compartilhada, tenha ela sido deturpada ou não.

O Super-Homem dos quadrinhos é fruto da grande depressão. Naquele contexto social, as pessoas estavam completamente impotentes e sonhavam com a superpotência. Quem já leu as primeiras histórias do herói sabe que o que o personagem inicialmente era muito diferente do que se estabeleceu depois, com sua mitologia bem detalhada construída ao longo das décadas.

O Super primordial, basicamente, é um homem que consegue fazer tudo o que quer, e assim “dá um jeito” em tudo que está errado. Isso é fruto direto do sentimento de impotência da população americana nos anos 30, durante a Grande Depressão.

O Super-Homem primordial era um justiceiro. Assim como os anos 30, ele se confundia entre os radicalismos de esquerda de direita. Nesta sua primeira fase, era comum vê-lo torturando um mafioso: levava o bandido para as alturas, até que este, morrendo de medo, pedisse clemência.

Igualmente, o proto-Super era muito sensível às questões sociais. Em sua terceira história, a missão dele é se infiltrar em uma mina, onde trabalhadores estão sendo explorados. Nessa história o vilão é o patrão que explora os mineiros, e o super-homem sequer veste sua roupa colorida, permanecendo a ação toda com seu disfarce: roupa e capacete de operário.

Aquele impressionante personagens inspirou dezenas de outras criações dos anos 30 e 40, que formaram a  “Era de Ouro ” dos quadrinhos. Mas, de fato, a essência do Super-Homem e dos demais super-heróis é a mesma do fascismo: a ideia que todos os problemas podem ser resolvidos pela força.

Os Super-Heróis Vão à Guerra

E aí chegam os anos 40. Os EUA entram na Segunda Guerra e o Super-Homem, assim como todos os super-heróis norte-americanos passam a lutar contra o nazi-fascismo.

Os historiadores do quadrinhos mais atentos notam aí um paradoxo: o Super-Homem luta contra o fascismo mas sua ideia base, da resolução dos conflitos pela força, é essencialmente fascista. Ao final da Guerra, a exemplo do Estado Novo varguista, o Super-Homem tem de resolver esse paradoxo. A partir de então, o personagem é “encaretado”. Não perde a força, mas abandona em grande medida a violência.

A versão do Super-Homem mundialmente difundida pelas décadas seguintes é a do “legalista”, aquele Superman ético, que não mata. É muito mais próxima de uma imagem de Jesus do que do valentão justo e indignado, que é o que ele era no início da carreira.

E, de fato, se não fosse por sua integridade, o Super-Homem não seria mais do que um General Zod ou um Super-Mussolini.

Cinema de Super-Heróis e o Novo Fascismo?

Tirando novamente o foco do velho Clark de Pequenópolis, tomemos, mais amplamente, o conceito de super-herói, o heroísmo que está vinculado a ao super-poder. Se o condicionamento da virtude ao poder é tipicamente fascista, como dissemos acima, estaria o recente boom do cinema de super-herói relacionado à acensão do novo fascismo em escala mundial?

Talvez não, mas só essa indagação nos convida a ter um olhar crítico sobre os produtos culturais de ação e aventura. Para além das explosivas cenas de ação, é em pequenos detalhes, como na postura do suposto herói diante de um inimigo caído, que descobriremos a mensagem implícita daquela obra.