sábado, 14 de setembro de 2019

CONVITE A NASCER DE NOVO


Uma Canção

Era esse o nome da música que me chamou a atenção, enquanto eu olhava despretensiosamente os vídeos sugeridos no celular. “Convite para Nascer de Novo”. Eu estava, então, fazendo carinho na gatinha da minha mãe, enquanto ela comia. Ela sempre gosta que lhe façam carinho na hora da ração. Enquanto ela comia, eu fazia carinho com uma mão e olhava o celular com a outra. E foi assim que eu me deparei com o título da música nova do Erasmo Carlos.

Título inspirador, como inspiradora é a vida do roqueiro brasileiro que melhor conservou o espírito jovem que se espera do rock and roll, na melhor acepção do termo. Com 60 anos de carreira, Erasmo mantém uma ativa produção de músicas novas que merecem ser ouvidas. A mencionada acima, com título tão convidativo, eu não poderia deixar de ouvir. E a Cecy também ouviu, enquanto comia e recebia carinho.

A letra era sobre alguém que andava morto em vida, conformado com a estagnação, até que um novo amor o convida a nascer de novo, e os dias ganham nova cor. Na canção, a origem da “vida nova” era, presumivelmente, um novo relacionamento amoroso. Mas a maioria dos versos poderia ser dirigida a qualquer pessoa, ser, ação ou ideia que apaixone, que desperte vida. O fato gerador do novo nascimento poderia ser a chegada de um filho, ou mesmo de um animal, como demonstrava aquele serzinho ronronante aos meus pés, transbordando sentimentos puros.

Mas, para além da constatação da infalível competência daquele artista, para além da análise da letra e da melodia, senti certa conexão cósmica nesse título. A sintonia com um inconsciente coletivo pareceu clara, pois, naquela mesma semana, eu já havia ouvido outro “convite a nascer de novo”.

Um Índio

Foi em uma entrevista do líder indígena Ailton Krenak. Em dado momento, o entrevistador pergunta o que ele teria a dizer a uma pessoa que repete discursos como o de que “índio não gosta de trabalhar”. Certamente tanto o entrevistador quanto os espectadores se prepararam para argumentos didáticos e irrefutáveis contra o preconceito. Mas a resposta de Krenak foi curta como um soco de Muhammad Ali.

- Eu quero dizer que essa pessoa precisava nascer de novo.

Seguiu-se um interminável segundo de silêncio em que o entrevistador parecia não acreditar que não haveria mesmo nenhum complemento, nenhuma explicação a mais. E, depois disso, apenas o barulho das engrenagens de nossa mente, posta para refletir.

Quando uma pessoa comum diz que “fulano, só nascendo de novo”, certamente está afirmando que para essa pessoa não existe salvação, que não há jeito de mudá-la ou que com ela não há negociação possível. E há, de fato, esse significado na fala de Krenak.

E como não haveria? O entrevistador pede para o indígena mandar uma mensagem para os que, na melhor das hipóteses, defendem a morte de todo o modo de vida dele e dos seus e, na pior delas, defende a morte do próprio Ailton. Essa tem sido nossa História: homem branco mata índio. Isso não aconteceu séculos atrás: isso acontece continuamente, desde há séculos atrás. Não caberia, portanto, qualquer tom de simpatia e camaradagem na fala do indígena. Essa justa indignação seria o único conteúdo da frase, se estivéssemos falando de uma pessoa normal.

Mas Ailton não é uma pessoa normal, como bem o sabem os que conhecem certo episódio de 1987, em que esse mesmo líder pintou o próprio rosto enquanto discursava na assembleia constituinte, em defesa do povo indígena. Para quem já assistiu as imagens dessa manifestação política, uma das mais emocionantes do século passado, não é delírio supor que a sua fala presente é mais profunda do que um mero “não tem jeito”.

Sim, ainda que Ailton Krenak não goste nem seja obrigado a gostar de quem transmite adiante o velho e insalubre “índio não gosta de trabalhar”, há amor em sua fala. O amor que assume a forma de um convite, evidente para quem se dispuser a olhar a frase para além do soco verbal que ela também é.

Portanto, a você, brasileiro-branco-médio-que-odeia-índio, Krenek diz: “Tem jeito, há salvação, a negociação é possível. Mas, para isso, você precisa se tornar alguém para quem a minha morte e a destruição da natureza não seja a única solução possível. Você precisa nascer de novo”.

E esse é o outro convite a nascer de novo, a que a canção me remeteu. E que, por sua vez, me lembrou de ainda outro convite a nascer de novo, relatado há muitos séculos.

Nicodemos

“Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse:

– Rabi, sabemos que és mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.

A isto, respondeu Jesus:

– Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

Perguntou-lhe Nicodemos:
– Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?

Respondeu Jesus:

– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo” (Evangelho de João, 3:1-7, tradução: Almeida Revista e Atualizada).

Nicodemos se dirigiu a Jesus com toda a cortesia e erudição de quem ocupa uma alta posição social e religiosa. E, com toda a calma e autoridade de quem ama seu interlocutor, Jesus mandou a real: Nicodemos, você não está entendendo. Você precisa nascer de novo.

Esse era o primeiro convite a nascer de novo em minha memória, a que me remeteu o segundo convite, na entrevista de Ailton Krenak, a que me remeteu, por sua vez, o terceiro convite, na letra do Tremendão.

E vinha de Jesus, aquele mesmo que, sem nunca ter dito que ninguém era obrigado a gostar de ninguém, mandou que apenas nos amássemos. O mesmo que, no mínimo, não era uma pessoa comum. E, no máximo, como ensina a teologia cristã, é quem veio ao mundo para resgatar a “primeira identidade” do homem. O que nos leva a um relato ainda mais antigo, sobre um sujeito que em dado momento parou de gostar de trabalhar.

Adão Pisou na Bola

Adão pisou na bola, e teve de sofrer as consequências. Com a queda, perdeu sua primeira identidade, sentindo-se completamente nu. Por ter comido do fruto da única árvore proibida, Deus o lançou fora do jardim do Éden. E, ao fazê-lo, disse: “maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida (...) no suor do rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:17-19).

A nossa cultura ocidental, que herdou a crença da Bíblia, enxerga aqui a origem do trabalho. E o fato de vermos aqui a origem do trabalho diz muito sobre a forma como enxergamos o próprio trabalho: como um castigo, ou até uma tortura. Tão forte é em nós essa abordagem que deixamos passar algo muito significativo, contido no mesmo relato de origem.

Neste mesmo livro de Gênese, antes de Adão ser castigado, antes de ele ter caído, antes mesmo de ele ter pisado na bola, diz o texto que:

“Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis, 2:15).

Isso quer dizer que antes da queda o homem já trabalhava. E essa ação era tão espontânea que não era preciso nem lhe dar um nome. Ele vivia em harmonia com a natureza, servindo ao jardim tanto quanto o jardim o servia. Bendita era a terra, e o homem a cultivava, e não a destruía.

A vida do Adão pré-queda era tão plena que ele teria paciência até mesmo para mandar uma mensagem a quem, hoje, se acha no direito de dizer quem gosta e quem não gosta de trabalhar. Diria ele à sua contraparte pós-queda do século XXI:

– Na verdade é você que não gosta de trabalhar. Tanto não gosta de trabalhar, que só consegue ver no trabalho algo que alguém tenha de obrigar outro alguém a fazer. Tanto não gosta de trabalhar que quer que outros trabalhem para si, ou sonha com o dia em que isso aconteça. Tanto não gosta de trabalhar, que sequer percebe a diferença entre exploração do trabalho e exploração do trabalhador.

Exploração do Trabalho e Exploração do Trabalhador

Dizer que um bem ou um serviço foi produzido sem exploração do trabalhador não quer dizer que ele tenha sido feito por robôs. Há uma diferença entre exploração da força de trabalho (emprego da ação do trabalhador na produção) de exploração do dono da força de trabalho (emprego de um trabalhador subpago na produção para outrem).

Há exploração do trabalhador quando o que ele recebe pelo uso de sua força de trabalho é inferior ao que vale essa força de trabalho. Em uma explicação bem simplificada, essa diferença é a mais-valia, teorizada por Marx.

Karl Marx foi autor da mais notória teoria sobre a exploração do trabalhador. Em sua obra máxima, “O Capital”, de 1867, ele diferencia muito claramente os conceitos de processo de produção da mais valia e processo de trabalho. Para ocorrer mais-valia, é preciso haver trabalho, mas o trabalho pode ocorrer sem que se gere a mais valia. E, enquanto a produção de mais valia é típica do capitalismo, o trabalho é inerente à humanidade, em todos os seus sistemas sociais e modos de produção. Está lá no capítulo 5, pode conferir.

Mas “O Capital” é um livro muuuuito grande e, além disso, incômodo. Assim, sequer nos demos ao trabalho de folheá-lo (nem que fosse para criticar). E seguimos hoje acreditando que trabalho é algo indissociável da exploração do trabalhador, crença que está entranhada no coração do brasileiro médio.

E, aqui, o índio volta à nossa história, dizendo ao brasileiro branco médio: disso que eu não gosto mesmo. Não gosto de ser explorado, ganhando menos do que o valor do meu trabalho. Ganhando apenas o necessário para continuar vivo, para trabalhar mais, até o fim da vida, para o conforto de poucos abastados. Não gosto de tratar a natureza como objeto a ser dominado e consumido até a exaustão. É esse o tipo de trabalho que você tenta me impor, e dele eu realmente não gosto, nem deveria.

Bem Viver

Mas esse, felizmente, não é o único modo de vida, de trabalho e de relação com a natureza possível. Não é o único e muito menos é o melhor. Os povos indígenas, agora, como desde sempre, nos apresentam o seu “bem viver”.

Bem viver é um conceito simples e, ao mesmo tempo, ampliador de horizontes. É um princípio tão antigo quanto os povos tradicionais que estabeleceram suas bases. Ao mesmo tempo, abre portas para o futuro da civilização, ao atribuir um novo significado ao desenvolvimento. Este, no bem viver, está baseado na harmonia do homem com a natureza e com seus semelhantes, na busca pela equidade social e pela justiça ambiental.

O bem viver esteve sempre à nossa disposição. Mas para que nós, homens brancos do ocidente, levássemos essa ideia a sério, foi preciso que atingíssemos o limite do modo de vida a que nos acostumamos. Foi necessário que nos víssemos perigosamente próximos da própria destruição para pensarmos a respeito. E só aí, finalmente, desconfiamos que essa prática, a de homens explorarem outros homens e submetem a natureza ao lucro imediato, talvez não seja algo “da natureza humana”, eterna e imutável. Como um viciado ao constatar que sua trilha só pode levar à morte, nossa civilização não pode mais deixar de refletir sobre a necessidade de mudar de vida. Sobre a possibilidade de bem viver.

A decisão de viver bem, de viver em harmonia com a natureza e com o próximo, pode não apenas nos salvar da morte, mas trazer vida em abundância. Pode nos permitir orbitar “o infinito de uma coisa boa” e trazer “primaveras de estações sem dor”. E o bem viver é, sim, possível. É preciso, apenas, nascermos de novo.

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