segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A TRILOGIA DA AMEAÇA CRESCENTE E O BRASIL DOS ANOS 10


Filme brasileiro de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, "Bacurau" estreou este ano impactando plateias, aqui e mundo afora. Muitas análises têm sido feitas, e também comparações com os dois longas anteriores de Mendonça Filho (de que Dornelles participou como diretor de arte). São comuns, afinal, comparações entre um filme e as obras anteriores de diretor. Mas não me lembro de ter lido ou ouvido a palavra "trilogia" para descrever a sequência "O Som ao Redor" (2012), "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (2019). No entanto, ainda que suas histórias sejam independentes, há algo que une os três filmes, além dos realizadores.

Essa unidade talvez esteja no sentimento do espectador das três histórias. Para quem as assistiu no cinema, elas são mais do que apenas elas mesmas. São, além de três grandes filmes, experiências de presença em um momento histórico. E, levando isso em conta, podemos entendê-los como uma unidade, que diz muito sobre a nossa relação com os rumos da política e da sociedade brasileira entre 2012 e 2019.

Dificilmente essa foi a intenção primeira dos autores. Provavelmente, a cada produção, o objetivo era apenas realizar um filme. Mas quis o cosmos que eles formassem uma trilogia, ainda por ser nomeada, que retrata em forma de crônica este Brasil dos anos 10. Nesse sentido, o que une essas três obras é uma relação de cumplicidade com o seu público. Em geral, quem os assiste faz parte da parcela da população que percebe algo de muito errado, de muito incômodo, em seu contexto social. Algo que surge como uma ameaça pouco nítida, talvez um imaginária, e vai se concretizando e se revelando irrefutavelmente real.

- 2012

É 2012, e assistimos a "O Som ao Redor". A vida parece tranquila, mas há uma violência presente. Uma violência que parece paralela à nossa vida, não a invade. Mas uma violência histórica e mal resolvida, que preferimos não confrontar. E, conforme essa violência se "formaliza", fingimos que isso é o suficiente para mantê-la sob controle. A ameaça aparente não parece nos afetar diretamente. Pode ser que ela seja apenas imaginária: o barulho de uma máquina de lavar na vizinhança, o latidos dos cachorros, o som ao redor. Talvez seja só paranoia.

Ainda assim, ela incomoda, e desconfiamos que isso pode não terminar bem. Mas, fazer o quê? Somos apenas indivíduos bem-intecionados, não há como evitar a ação do submundo da violência. Tampouco podemos impedir as pequenas crueldades que a proto-burguesia imprime, todos os dias, aos que para ela trabalham. Apenas protestamos um pouco e, por fim, abandonamos a reunião de condomínio, pois não somos obrigados a conviver com aquilo. Deixa pra lá, vida que segue.

- 2016

Em 2016, a situação já é outra. Um filme é visto em Cannes, e lá sua equipe protesta: "parem o golpe no Brasil". O filme estreia nos cinemas do Brasil no dia seguinte à concretização desse mesmo golpe. E quem se incomodou com ele, a ponto de chamá-lo de golpe, vai assistir ao filme, e encontra Clara. A personagem de Sônia Braga é também as muitas claras que cada um de nós admirou na vida. As que nos ensinaram a amar filmes e livros, e também a amar a democracia por que lutaram. E, novamente, o filme estabelece com o espectador um laço afetivo, uma identificação imediata.

Na trama, Clara não pode mais simplesmente deixar a reunião de condomínio e, dizendo "não sou obrigada", retornar à sua rotina. Aqui, a ação da grande e da proto burguesia afetam diretamente a sua vida. Pela força do dinheiro, fazem o mal que a força sempre faz, e Clara é "convidada" a ceder, deixando sua casa. Porque podem, pelo direito do mais forte, expulsam-na de seu lugar de direito. Aqui, Clara não pode  mais ignorar: seu direito foi roubado. Como foi roubado o voto de quem elegeu o governo deposto no dia anterior.

Clara, como as muitos Claras de nossas vidas, dificilmente aceitaria engolir tão indigesto sapo em silêncio. Mas, aqui, ainda lhe é dada uma opção. "Conforme-se, e evite se aborrecer. Abra mão de seu direito, e você terá mais paz. Finja que foi só um impeachment, foi dentro da lei. E siga a vida".

- 2019

Por fim, chegamos a 2019. Aqui, a ameaça não pode mais ser ignorada. E, definitivamente, não é só imaginária. Parecia um disco voador, mas era mesmo um drone. O inimigo invisível que inflige a ameaça não se contentará com menos do que a nossa destruição. Neste ano, adentramos Bacurau, e a opção de fuga não nos é mais dada. É preciso resistir, lutar pela vida, lutar pela nossa história.

Aos que, em 2019, são chamados a lutar pela civilização brasileira, "Bacurau" traz uma lição preciosa: a resistência só é possível porque é organizada. A sobrevivência à ameaça não vem das mãos de um herói messiânico. Ela vem de uma coletividade que, unida, torna-se mais forte. E não é a raiva ou a vingança que os move. Ainda que sua postura seja firme, ela é consciente, racional, razoável. Nunca mais do que proporcional à ameaça infligida.

E assim é a nossa luta. Nos atos, nas praças, nas conversas, nos textos, nas instituições. Agora não podemos mais ter aquela postura individualista de 2012, quando éramos apenas indivíduos bem-intencionados. E, para o nosso bem, despimo-nos também da justa raiva que nos dominava em 2016. Não é possível mais adiar o momento de encarar e vencer nossos fantasmas e a nossa maldade. De, como a população de Bacurau, lidarmos com terna firmeza com os que desejam nossa morte. De estarmos muito calmos e descansados, para que a racionalidade prevaleça. E, principalmente, de estarmos juntos e organizados, pois essa é a única forma de superar a barbárie.

Afinal, por tudo isso termos aprendido nestes tão poucos anos, podemos até ser gratos a este Brasil dos anos 10. E que venham os anos 20.

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