quarta-feira, 28 de novembro de 2018

6 DICAS PARA DISCUTIR POLÍTICA SEM ÓDIO (ESSA NECESSÁRIA ARTE)


Situação tão comum dos anos 2010: você está cansado e quer relaxar. Para descansar o cérebro, pega o seu celular e vai ver o whatzapp, ou entra no facebook. Quando de repente um monstro invade sua zona de conforto: uma ideia repulsiva, na forma de meme, texto, notícia compartilhada... Quem foi o responsável por isso? Como pode aquele seu parente ou amigo de longa data pensar assim? Compartilhar esse absurdo? Você deve responder à altura? Xingá-lo? Ou deixar para lá porque a discussão nem vale à pena?

Nos últimos anos, a sociedade brasileira tem se encalacrado em uma odienta polarização ideológica. Seja de que lado dela se esteja, há de se concordar: está difícil, doloroso mesmo. Diante de ideias que nos soam absurdas, distantes que estão de nossos base de valores, temos a tendência de tomar uma entre duas atitudes: conflito ou fuga. Ou nos esquivamos da discussão, ou entramos nela de sola. Nosso objetivo aqui é mostrar que ambos os caminhos estão errados, e dar algumas dicas de como debater sem brigar.

É óbvio o porquê do embate conflituoso ser indesejável: perde-se a racionalidade, com isso a razão e, ao final, os amigos. Sem falar que dificilmente se convence alguém na base do grito, caso o convencimento seja o objetivo da peleja (veremos abaixo que a chave para a serenidade no debate também passa por rever os objetivos do diálogo).

Fugir do debate, de forma definitiva, tampouco é desejável. Porque a fuga de hoje não impedirá que ele nos alcance amanhã. Eu posso não refutar as ideias absurdas que surgem ao meu redor, mas as consequências delas vão me atingir em algum momento. A radicalização não é de indivíduos, é um fenômeno social. E o diálogo entre opostos é a única cura para ela.

Muitas vezes o seu interlocutor se acomodou em ideias extremas porque elas são validadas por todo discurso que lhe chega. Seu tio fascista, por exemplo, não nasceu fascista. Mas nos últimos cinco anos, ele vem se alimentando quase que exclusivamente de conteúdo monofásico. Por falta de antítese, as teses dele se solidificaram na forma do que você chama de fascismo. A apresentação de uma antítese é fundamental para o amadurecimento intelectual de qualquer pessoa, não apenas do seu tio. No agregado, a troca é desejável e necessária para se sair da polarização e fortalecer intelectualmente a sociedade como um todo. Por isso, não se deve fugir do debate.

A esta altura, você já deve ter percebido que essa é uma via de mão dupla. Não é só o seu tio fascista que vai crescer intelectualmente com o diálogo: você também vai. Porque se você disser que a opinião dele está errada, ele vai querer saber por que. E você vai ter que se perguntar o porquê de algo que para você é óbvio. É aqui que ficamos nervosos, irritados, dizemos "não dá pra conversar com você" ou simplesmente agredimos com um palavrão. Porque nos sentimos ameaçados.

Nos sentimos ameaçados porque achamos que nossas crenças e valores são parte de nós, e não uma construção social. Assim como seu tio fascista é uma construção das influências que escolheu (JN, MBL, Jovem Pan), a minha e a sua opinião são construídas pelas influências que recebemos ao longo da vida, seja esse capital cultural escolhido ou não. Entendendo isso, percebemos que questionar nossas opiniões não um ataque pessoal.

E aí nos desarmamos. Questionamo-nos. Abrimos a guarda e, que surpresa boa, percebemos que pensamos o que pensamos por um bom motivo. Nossa opinião retornará à superfície muito mais fortalecida.

Claro, na teoria, tudo é muito bonito. Mas, "na prática", você há de me dizer, "não é bem assim". Por isso, seguem algumas dicas para não perder as estribeiras em uma discussão com seu oposto ideológico.

1- Não é pessoal: a minha ideia não sou eu.

A primeira dica já foi delineada acima. Para desconstruir o outro, é preciso abrir a guarda para ser desconstruído. E aí, temos medo de mudar de opinião e perder a identidade. De fato, o olhar do nosso oposto nos desconstrói, mas não devemos temer. Essa desconstrução é uma viagem de autoconhecimento que só pode fortalecer. Pegando emprestado o conceito que Schumpeter criou para descrever a competição capitalista, o que ocorre é uma "destruição criadora". Nem você nem seu adversário intelectual são destruídos em um debate, e ambos saem mais inteligentes dele. E, de quebra, a consciência de que nossas ideias são uma construção nos livra do fanatismo.

2- Leia sempre.

Somos construção, mas jamais acabada. Um livro, muito mais do que um vídeo no youtube, aprofunda o nosso raciocínio. Com a leitura, por fim, treinamos o distanciamento das ideias necessário à racionalidade, especialmente quando buscamos textos defendendo posições diversas.

3- Jogue fora a vaidade.

Conhecemos nossos limites intelectuais, os outros não. Nosso medo é de expor esses limites. Ser derrotado intelectualmente de forma humilhante. Mas esse medo só ocorre se nosso objetivo é vencer a discussão e, se esse é o objetivo, ela se torna fútil. Se o objetivo é convencer o outro (algo comum em período eleitoral), ela pode se tornar igualmente estressante. Não temos controle sobre o outro, apenas ilusão de controle, e a consciência dessa falta de controle é duplamente libertadora. Não, o objetivo do debate não é vencer nem convencer, é o debate em si. É a busca coletiva da verdade. É apresentar ao outro o seu olhar e conhecer o dele. Um sinal de que isso acontece é quando há pausa para refletir antes de se rebater uma ideia.

4- Consciência de que o debate não tem fim.
Vivemos em uma sociedade que está sempre com pressa. Quando uma ideia “absurda” invade nossa zona de conforto, queremos expulsá-la rápido. Só que o debate de qualidade não combina com ansiedade. A ansiedade manda a racionalidade para o ralo. Entra aqui a sabedoria de entender que o debate não tem fim. Se não tem fim, tampouco tem vencedores ou perdedores. O diálogo é para a vida inteira.

5- Nem todo o momento é propício.

Se o debate não tem fim, você não precisa responder imediatamente, correto? O diálogo de qualidade exige o momento cerebral propício. Dissemos que o debate é para a vida inteira, mas isso não quer dizer que ele tem de ocorrer o tempo todo. Se, ao entrar em uma discussão, você perceber que está com raiva, propenso à agressividade, é sinal que esse não é o momento de debater. Talvez você esteja cansado. Guarde essa discussão para o momento em que você esteja calmo e racional, mais propenso a ser respeitoso e também a dar as respostas mais inteligentes. Nosso cérebro precisa de descanso regular. Na maior parte do dia, é preciso descansar da guerra ideológica. Nessas horas é mais saudável ver vídeos de gatos fofos do que de política, assistir Ponte Preta x São Caetano do que noticiário.

6- Sem complexo de messias.

Você não é o Neo de Matrix, nem o Jaspion. Não precisa se obrigar a levar o debate nacional nas costas. O que defendemos aqui, ao postular que não é desejável fugir do debate, é muito mais uma mudança de postura do que um fardo individual. Portanto, respeitemos nossos limites individuais, aceitando nossa impotência em relação à maior parte da realidade. Isso nos acalma. Contente-se em fazer a sua parte para o amadurecimento intelectual da sociedade, sem ansiedade para ver os resultados. É no agregado que essa mudança de postura faz efeito.

***

Em algum momento destes anos loucos, tive a felicidade de conhecer um mantra que diz “expresso minha verdade com amor e coragem”. Expressar sua verdade é fundamental, e exige coragem. Mas o amor tem de vir antes da coragem, caso contrário, é melhor nem se expressar. É o amor que faz com que essa sua verdade seja expressa da melhor forma, contribuindo para a busca da verdade coletiva. E é esse amor, ao fim e ao cabo, a essência e finalidade de toda troca.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

A VIOLÊNCIA


Dizer que uma vítima de violência plantou o que colheu é quase dizer que bandido bom é bandido morto.


A violência pode dominar as redes sociais, e somos impotentes diante disso. A violência pode dominar a mídia, e somos impotentes diante disso. A violência pode dominar as ruas, e somos impotentes diante disso. A violência pode dominar a política, e somos impotentes diante disso. A violência pode dominar até a presidência da república, e somos impotentes diante disso.

A violência só não pode dominar o nosso coração, pois é o único território sobre o qual temos controle. As pessoas boas devem amar seus inimigos.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

O QUE O DISCURSO ANTICORRUPÇÃO PODE OCULTAR?


Todo mundo é contra a corrupção. Até o corrupto é contra a corrupção. Por isso, o discurso anticorrupção se pretende acima de críticas. Como se questioná-lo fizesse de alguém um defensor dos desvios de dinheiro público. Esse escudo moral faz com que ideias perigosas se difundam desapercebidamente na esteira segura da indignação popular. Seguem abaixo quatro desdobramentos desse discurso moralista que têm feito muito mal à sociedade brasileira.
  1. Discurso acima da Prática.
Nem todo aquele que brada contra a corrupção é honesto. Se nossa busca por salvação é cega, quanto mais raivoso for o discurso contra a corrupção, melhor. Assim, um político que se apresenta furiosamente como alternativa à “roubalheira” tende a ganhar popularidade, ainda que empregue toda a família na máquina pública ou use auxílio moradia para “comer gente”.
  1. Apologia às Privatizações.
As noções de que toda a corrupção é do Estado e de que o Estado é, por natureza, corrupto fazem com que encaremos a coisa pública como problema, e não como patrimônio. Por exemplo, difunde-se a lógica de que a Petrobrás é uma vergonha, pois lá houve roubo. Pode-se, assim, vendê-la barato. Ora, se a corrupção é a transferência do recurso público para o interesse privado, combatê-la pela privatização é como matar o doente para acabar com a doença.
  1. Desfavor à Democracia.
A associação da corrupção exclusivamente aos políticos faz com que busquemos soluções fora da política. Surgem as propostas de intervenção antidemocrática. O golpe de 1964 capitalizou fartamente em cima do discurso moral anticorrupção. A ideia era a de que os militares eram puros e incorruptíveis servidores, e os políticos, imorais e interesseiros. O que não falavam é que, assim que tomam o poder, militares, astronautas ou futebolistas se tornam, necessariamente, políticos.
  1. “Origem de todo o Mal”
A falsa noção de que TODAS as nossas mazelas têm origem na corrupção pública simplifica a realidade, escondendo muitos outros graves problemas. Esconde-se a corrupção privada da sonegação fiscal. Esconde-se o caráter regressivo do sistema tributário (mais pobres pagam mais). Esconde-se a retirada de verbas para serviços públicos que se dão dentro da lei. Escondem-se as disputas pelo orçamento. Escondem-se as contradições entre os interesses das diversas classes. Esconde-se nosso problema de endividamento, tendo este atingido o ponto em que o compromisso com a dívida, cuja função é financiar o investimento público, passa a impedi-lo.

De 2013 para cá, o discurso moralista anticorrupção voltou à moda com toda a força. A operação Lava-Jato iniciou sua cruzada, apresentando-se como salvação nacional. Se a vida de algum brasileiro melhorou desde então, favor me avisar.

terça-feira, 26 de junho de 2018

MUITO ALÉM DOS LIMITES DA TRADIÇÃO: O ELEMENTO FEMININO NOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO



O Cristianismo nasce, na Antiguidade Clássica, no encontro de culturas de diferentes povos: judeus, gregos e romanos. Essas culturas, dominantes nos primórdios da nova religião, eram diversas em vários pontos, mas muito semelhantes em seu patriarcalismo e machismo.

Situação Geral da Mulher na Antiguidade Clássica:
- O masculino era preponderante sobre o feminino;
- O espaço público era reservado aos homens e o mundo privado, da família e da casa, às mulheres;
- A mulher deveria pertencer a um homem que dela cuidasse e a protegesse: a seu pai, seu irmão, seu marido ou seu filho;
- A inferioridade intelectual era considerada como característica da natureza feminina;
- A maternidade era a finalidade primordial para a mulher, a única meta da sua vida;
- Fora do ambiente doméstico e da submissão ao homem, a mulher passava a ser uma prostituta;

Esses preconceitos eram verdades naturais para esses povos, gerando um ambiente de forte misoginia (aversão às mulheres). Fruto do judaísmo e propagado pelos romanos, o cristianismo não escapou dessa influência:

Pedro: I Pedro 3:1-7
Paulo: I Timóteo 2:8-15

Mesmo sob um olhar teológico, a Palavra de Deus é: Palavra de Deus para os homens, Palavra de homens para Deus e Palavra de homens para homens. É essas três coisas ao mesmo tempo e, entendendo isso, a nossa fé não será fundamentalista, mas tampouco esquizofrênica ou herege. Paulo e Pedro, ainda quando poderosamente guiados pelo Espírito Santo, eram homens, e, portanto, sujeitos à sua cultura e ao pensamento de seu tempo.

Seja como for, as breves palavras de Pedro e de Paulo foram utilizadas para perpetuar o pensamento misógino pelo ocidente cristão até os dias de hoje. Uma visão parcial e reducionista do capítulo 3 do gênese foi ainda fortemente difundida e aprofundada, para validar esse preconceito, ignorando os vastos exemplos bíblicos e da história cristã inconciliáveis com essa visão.
A tese aqui defendida é a de que a representação da mulher nos quatro evangelhos, bem como a atitude das primeiras mártires cristãs, é incompatível com a moral hegemônica vigente no que diz respeito ao comportamento ideal feminino. Em outras palavras, era impossível seguir Jesus ou difundir a fé cristã em seus primórdios sem extrapolar os estreitos limites que a tradição reservava às mulheres. Entendemos primórdios do Cristianismo como o período em que a nova religião não era hegemônica, até o século IV d.C.

- Rompendo a Barreira da Tradição: A Mulher nos Evangelhos
Os evangelhos mostram recorrentemente a cultura de silenciamento e descredito às mulheres e a necessidade de romper com essa barreira para seguir Jesus.

- Maria Madalena e as demais Apóstolas:
Ao longo dos séculos, o imaginário popular unificou a figura de Maria Madalena à de Maria Betânia à da mulher pecadora de Lucas 7. Nos evangelhos, porém, Madalena é identificada apenas como aquela de quem Jesus expelira sete demônios. Ainda assim, seu protagonismo vai muito além disso: ela é a representante de uma legião de mulheres que seguiam e assistiam Jesus, destacadas em Lc. 8:1-5 (ali são citadas Maria Madalena, Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana e “muitas outras”).
Para uma mulher, seguir Jesus não era algo trivial: “deixar tudo e o seguir” implicava negar corajosamente a estrutura patriarcal que normatizava seu comportamento: era preciso deixar a esfera de seu protetor (pai, irmão, filho ou marido) e, tomando uma decisão soberana, sair dos limites do espaço doméstico para o público. E para a mulher, nesse contexto, ocupar a esfera pública significava carregar o estigma da prostituição, dando a cara a tapa, ou melhor, a pedrada.

Relegadas a segundo plano pela cultura de seu tempo, foram essas mulheres as escolhidas para serem as primeiras a ver Jesus ressuscitado, simbolizando o nascimento da Igreja.

Mc 16: 1-11 – Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé.
Mt 28: 1-10 – Maria Madalena e a outra Maria.
Lc 24: 1-12 – Maria Madalena, Joana, Maria mãe de Tiago e as outras mulheres.
Jo 20: 1-18 – Maria Madalena.

As mulheres foram também as primeiras a anunciar a boa nova da ressurreição.

“E, partindo ela, foi anunciá-lo àqueles que, tendo sido companheiros de Jesus, se achavam tristes e choravam” (Mc. 16: 10).

Os discípulos, homens de um tempo machista, desacreditam a palavra das mulheres, postura natural em uma época em que se cria na inferioridade da mulher (mas que, infelizmente, ainda hoje é reproduzida).
“Eles, ouvindo que ele vivia, não acreditavam” (Mc 16: 11).
“Tais palavras lhes pareciam um como delírio, e não acreditaram nelas” (Lc 24: 11).

- Maria, Mãe de Jesus:
Os relatos da origem do menino Jesus vinham suprir questionamentos feitos à Igreja: como o Messias pode ser Nazareno se viria de Belém? Qual o misterioso segredo de sua concepção? Era ou não filho de José? Se não, isso não faria de Maria uma mulher adúltera?

A Genealogia de Jesus e a Prostituição (Mateus 1: 1-17)
Mateus escreve o seu evangelho por volta de 80 d.C. A Igreja já vive então um grande crescimento pelo mundo ocidental. Dentro do judaísmo mais conservador, os adversários da nova doutrina tentavam difamar Jesus associando-o a uma origem de prostituição, fazendo circular a versão de que seu pai teria sido um soldado romano. Mateus responde a esses questionamentos com a revelação da concepção pelo Espírito Santo. E, na genealogia de Jesus, sutilmente, o evangelista desconstrói o preconceito machista que embasava tais acusações.
Ali, em meio a dezenas de nomes de homens, de Abraão a José, quatro mulheres são citadas, além de Maria: Tamar, Rahab, Rute e a que fora mulher de Urias. Todas elas, mulheres destacadas da história de Israel. As quatro têm ainda em comum histórico sexual desviante de algum modo do rígido patrão comportamental que a tradição impunha à mulher e, por isso, carregam o estigma da prostituição. Trazendo isso à luz, um judeu cristão respondia ao preconceito de alguns judeus não cristãos, como se dissesse: antes de jogarem pedras no Nazareno e em sua mãe, vamos examinar se a ação de Deus na nossa história valida tal prejulgamento. A história de heroínas da fé, como Rute, não deixa dúvidas de que não. Indubitavelmente virtuosa, Rute esbanjava elementos femininos que o pensamento misógino continuaria temendo e combatendo por séculos: voz ativa, postura soberana, sedução.

Lucas 1,2: O Nascimento de Jesus sob a Ótica da Mulher
Há na Bíblia dois relatos do nascimento de Jesus. Se em Mateus 1-2, José é o protagonista da história, em Lucas 1-2, Maria assume o centro da narrativa. Em Marcos, o primeiro dos evangelhos canônicos a ser escrito, encontramos João Batista e Jesus de Nazaré já como homens feitos. Lucas, o mais feminino dos evangelhos, nos lembra que todo homem nasce de um ventre de mulher. Conhecemos ali intimamente Isabel, mãe do Batista, e Maria, mãe de Jesus. Os dois primeiros capítulos de Lucas foram fundamentais para que o Cristianismo penetrasse, mais tarde, em povos pagãos cuja simbologia dava grande importância ao feminino, à maternidade e à fertilidade. Maria foi a grande embaixadora do Cristianismo nessas culturas, em que um patriarcalismo rígido encontraria maior dificuldade de aceitação.

A Profetisa Ana (Lc 2: 36-38)
Se, ainda hoje, nossos ouvidos estranham as palavras “pastora” ou “reverenda”, Lucas não via hierarquia de gêneros no que diz respeito às coisas de Deus. À idosa que anuncia publicamente a glória de Jesus, o evangelista dá o título de profetiza, algo único na Bíblia.

Marta e Maria (Lc 10. 38-42)
A breve passagem que contrapõe Marta e Maria é riquíssima. Podemos ver essas duas mulheres como símbolos de dimensões da Igreja e da sociedade: do serviço e da palavra; do trabalho braçal e do intelectual; do espaço doméstico e do espaço público. Assim como Marta e Maria, todas essas dimensões têm valor e importância. Marta servia Jesus e os convidados da casa, enquanto Maria ouvia os ensinamentos de Jesus. Aquela ocupava o espaço reservado às mulheres, esta, invadia o terreno dos homens. Jesus elogia a escolha de Maria e deixa claro que não somente a ela era permitido estar ali, como sua escolha era digna de elogio. Sem desmerecer o serviço de Marta, Jesus relembra a importância central do alimento do espírito, derrubando qualquer barreira que o reservasse exclusivamente a um único gênero, supostamente mais capacitado para tal.

Jesus ungido em Betânia (Mt 26 6-13, Mc 14. 3-9, Jo 12. 1-8)
A mulher que ungiu os pés de Jesus é identificada por João como Maria, irmã de Marta e Lázaro.

Uma mulher, por iniciativa própria, empreende uma manifestação pública. Isso, por si só, era um escândalo, um incômodo para os homens naquele contexto. Os discípulos repreendem a mulher, desautorizam-na, deslegitimam e ridicularizam sua atuação. É preciso notar aqui que isso ainda é algo comum em nossa sociedade: a mulher ser desautorizada pelos homens em sua iniciativa própria, sempre com um bela desculpa, mas carregando em si a essência da ideia da inferioridade e submissão feminina. Mas Jesus, imediatamente, desautorizou a desautorização.

Por que molestais esta mulher? Ela praticou boa ação para comigo” (Mt 26:10).

Nesta passagem, Jesus empodera uma mulher diante dos homens de seu tempo e de todas as gerações futuras que receberiam o evangelho.

- A Mulher Adúltera (Jo 8:1-11)
A breve passagem da mulher adúltera sintetiza o rompimento de Jesus com o paradigma machista. Para realizar seu julgamento sádico, os preconceituosos, naquele tempo como hoje, apresentam pretextos muito nobres: a lei, a moral, os bons costumes. À mulher pecadora, exigiam todo o castigo e rigor da lei. Não olhavam antes, para seus próprios pecados. Sem nenhuma acusação, Jesus traz à tona o caráter pecador de todo homem. Reconhecendo nossa própria humanidade, somos impedidos de ser intolerantes com o outro. E Jesus, ele próprio, escolhe não condenar a mulher adúltera, pois não há lei maior que a lei do amor.

- A Mulher Samaritana (Jo 4: 1-30, 39-42)
E era-lhes necessário atravessar a província de Samaria” (Jo 4:4)
João descreve um belíssimo encontro entre Jesus e a Mulher Samaritana. Quando o evangelista informa que era necessário passar por Samaria, isso significa que era preciso romper barreiras, ir ao encontro do outro, daquele que incomoda. Visto que judeus e samaritanos não se davam há séculos, era compreensível que os discípulos achassem muito estranho que Jesus falasse com uma pessoa daquela província. E, no entanto:

Neste ponto, chegaram seus discípulos e se admiraram de que ele estivesse falando com uma mulher” (Jo 4: 27)

Para Jesus, além das barreiras das rivalidades nacionais e religiosas, era preciso romper a barreira de gênero.

A mulher samaritana estava muito longe do restrito lugar da mulher na sociedade antiga: tinha livre trânsito entre os homens e no espaço público, características automaticamente associadas à prostituição. Por fim, o próprio caráter escandaloso da vida pregressa da mulher samaritana possibilitou que ela fosse uma grande anunciadora do evangelho em Samaria (Jo 4:39).

- A Mulher de Pilatos (Mt 27: 19)
No julgamento de Jesus, Pilatos, sabendo da inocência do acusado, sentiu-se de mãos atadas, diante da pressão das autoridades locais (principais sacerdotes e anciãos) e da opinião pública (a turba de linchadores que, atuando como massa de manobra acéfala dos poderosos, arvorou-se de representante do “sentimento social”). Pensando em conciliar os interesses, o governador procurou dar ouvidos a todos, menos à sua própria mulher, a única que lhe deu o conselho correto.

Não te envolvas com esse justo” (Mt 27:19)

- A Mulher Pecadora (Lc 7:37-47)
Em casa de Simão, o Fariseu, uma mulher unge os pés de Jesus e os enxuga com os cabelos. O ato traz à tona todo o complexo de superioridade dos respeitáveis homens da cidade, bem como seu escândalo por ter Jesus deixado que uma pecadora o tocasse. Após enaltecer a atitude da mulher em relação ao descaso do próprio anfitrião, Jesus nos lembra que, diante do amor, qualquer preconceito se quebra.

Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.” (Lucas 7:47)

As Primeiras Mártires
Ao longo de todo o período do cristianismo não hegemônico, ser cristã representava necessariamente romper as barreiras da tradição. A própria confissão de fé era uma manifestação pública e independente da aprovação de pais ou esposos. O exercício do protesto, ao abraçar uma causa marginal, quebrava também os moldes em que elas estavam imersas: matrimônio, cuidado dos filhos, submissão ao marido, ausência de vida pública e de iniciativa que ultrapassem os limites do lar. As mártires exerciam seu direito a ser autônomas, negando-se a cumprir atividades contrárias à sua fé. São exemplos dessa postura mártires valorosas, como Tecla (séc. I), Perpétua e Felicidade (século II-203 d.C.), Crispina (século III-IV d.C), Balbina (século II d.C-132 d.C).

Conclusão: Antes de o cristianismo ser hegemônico, não era possível seguir Jesus ou confessar a fé cristã dentro dos limites reservados à mulher nas culturas clássica e judaica. Percebendo isso, passa a ser um equívoco histórico e teológico a defesa da imutabilidade da ideologia patriarcal e machista em que a mulher é submissa ao homem e limitada ao ambiente doméstico.

Bibliografia:
CAMARA, Yls Rabelo; CÂMARA, Yzy Maria Rabelo; LINHARES NETO, Guilherme; SOUTULLO; Melina Raja. El Elemento Femenino en el Principio de la Cristiandad. Em: Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG - v. 27, n. 1 - Jan/Jun. 2014 – ISSN online 1981-3082.
CHEVITARESE, André Leonardo; Cornelli, Gabriele; Selvatici, Mônica (orgs.). Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

IDOLATRIA ANTIGA E CONTEMPORÂNEA

“Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
Não te encurvarás a elas nem as servirás (...)”
(Ex 20: 2-6)

Mas...

Um ídolo não é necessariamente uma escultura, e uma escultura não é necessariamente um ídolo.

- Ídolo é tudo que ocupa o lugar de Deus

E qual é o lugar de Deus?

“É a sua preocupação última”. Paul Tillich
- A preocupação mais profunda, aquela que, retiradas todas as outras que estão mais à superfície, permanece.
- É onde você coloca: a sua felicidade, a sua confiança, a sua esperança. Esse é o seu Deus, o seu tesouro.
“Onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Mt 6:21).

Coisas que, em si, são boas (ou não são boas nem ruins) podem assumir o caráter de ídolo: pessoas, hábitos, valores, preocupações, dinheiro, trabalho, e até a religião. O problema não são as coisas, e sim a dimensão que elas tomam em nossas vidas: a sua devida dimensão ou a dimensão de deuses.

  1. Pessoas
Se amarmos ao próximo como a nós mesmo, Deus estará acima de todas as coisas. Se amarmos ao próximo mais do que a nós mesmos, ou estamos amando demais o próximo (e ele se torna nosso ídolo, sem o qual não podemos viver), ou amamos de menos a nós mesmo (déficit de autoestima). Se amarmos a nós mesmos mais que ao próximo, o nosso ídolo é o próprio ego.
  1. Dinheiro / Trabalho
O trabalho se torna um ídolo se deixamos de trabalhar para viver e passamos a viver para trabalhar. O dinheiro se torna um ídolo se deixamos de ganhar dinheiro para viver e passamos a viver para ganhar dinheiro. Não podeis servir a Deus e a Mamon (Mt 6:24).
  1. Hábitos
Nossos hobbies, paixões, prazeres, manias, coleções e consumo tomam a dimensão de ídolos a partir do momento em que assumem um caráter compulsivo. Um hábito não é algo ruim, o problema é não conseguir viver sem ele. A chave para sair da compulsão é entender que liberdade não é ter tudo. Liberdade é:
Pensamento -> Decisão -> Responsabilidade
Pensar é pesar. A cada escolha, pesamos as opções e decidimos: cindimos! Separamos o que é nosso do que não é. E nos responsabilizamos pela decisão: pelo que foi preferido e pelo que foi preterido. O antídoto para a compulsão é o foco no nosso caminho.
A compulsão existe quanto não conseguimos escolher. Queremos todas as roupas, todos os brinquedos, todos os amores. Queremos tudo, mais do que conseguimos lidar, e assim saímos dos nossos limites humanos, nos fazendo deuses. Também, aqui, o ego se torna um ídolo.
  1. Valores
Um ídolo é aquilo que tornamos absoluto. Apenas Deus é absoluto. Nossos valores são bons e importantes em nossas vidas, eles nos fazem pessoas íntegras. Mas eles não servem necessariamente para todas as pessoas em todas as épocas. Por vezes, eles podem estar equivocados, pois somos humanos e falhos. Se tornamos nossos valores absolutos, nos fazemos perfeitos, e nosso ego se torna um ídolo.
  1. Religião
Se nosso sonho é fazer que nossa religião domine o país ou o mundo, não importando o quanto de sua essência terá de ser abandonada pelo caminho, nossa religião se tornou nosso ídolo, e Deus ficou em segundo plano.
Nossos ritos religiosos, ainda que bons e edificantes em essência, também podem se tornar talismãs. Se eu leio a bíblia todos os dias antes de sair de casa, e um dia por um acaso eu não posso fazê-lo, isso não quer dizer que eu fiquei devendo uma leitura. Em Cristo não há nenhuma dívida.
  1. Preocupações
É saudável nos preocuparmos com o que está em nossas mãos. Aquilo com que podemos lidar, nossa parte no plano de Deus, isso fazemos. São os nossos velhos conhecidos, o jugo suave e o fardo leve. As preocupações que não estão em nossas mãos, essas devemos colocar no altar de Deus e descansar nosso coração. Esse altar é infinito, nele cabem todas as coisas.
Se assumimos preocupações que estão além das nossas forças, não respeitamos nossos limites humanos. Por mais nobres que sejam os motivos, estaremos aqui também querendo nos fazer deuses.
Em suma, o que está em suas mãos fazer, faça e descanse. O que não está em suas mãos, entregue a Deus e descanse.

Como escapar da idolatria?

“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento.
E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes”.
(Mc 12:30-31)

Para cumprir o Grande Mandamento, não é preciso fazer esforço nenhum, apenas abrir o coração para Deus. Ele, então, derrama sore nós o Seu amor (Rm 5:5), e esse amor ocupa todas as dimensões do nosso ser.

Coração – Dimensão Espiritual
Alma – Dimensão Psíquica
Entendimento – Dimensão Intelectual
Forças – Dimensão Física

Mesmo quando estamos fracos, em Deus, somos fortes.
Portanto, abandonemos a culpa e coloquemos em seu lugar um sentimento muito mais benéfico: a gratidão. Sejamos gratos a Deus por errar, porque Ele nos mostra nossos erros, por podermos aprender com eles e ensinar o próximo com a nossa experiência.

Em resumo, para não cair na idolatria, não é preciso fazer nada, apenas relaxar e confiar em Deus. Ele não permitirá que o teu pé vacile (Sl 121:3).

Por fim, a ideia de que mesmo um crente pode está sujeito à idolatria pode despertar em nós sentimentos como medo e culpa. Não caiamos nesses sentimentos negativos, pois o caminho é justamente o oposto.
Estamos sujeitos à compulsão e à idolatria porque somos humanos e, portanto, falhos. Todos temos nossos momentos de versículo 1 do salmo 121: estamos sujeitos a fraquejar. Querer não errar é querer ser Deus, é se colocar no lugar de Deus e, novamente, cair na idolatria.

quinta-feira, 31 de maio de 2018

DEMOCRACIA E RESPONSABILIDADE


O documentário “Noite e Neblina” (1956), do francês Alain Resnais, foi o primeiro produzido sobre o Holocausto. A obra teve como intuito manter viva a memória de todos os horrores do acontecido e sua interpretação não como acidente histórico, mas como consequência do perigo fascista que sempre pode voltar a acontecer, em qualquer época, em qualquer lugar.

Entre todos as impactantes cenas do filme, destacamos uma em que é mostrada uma sequência de guardas e autoridades do campo, recém-liberto. Todos eles dão a mesma resposta, a mesma desculpa para o horror ali desvelado: “não sou o responsável”. Essa frase sintetiza o fascismo.

Quando pensamos na essência do fascismo, talvez o que melhor o defina seja: “a ideia de que os problemas podem ser resolvidos pela força”. Mas o que permite isso? O que permite que um grande grupo dê força a um pequeno grupo, achando que esse pequeno grupo irá resolver todos os problemas pela força? O que permite que um grupo seja mais forte e domine os outros é o fato de as pessoas abrirem mão das suas responsabilidades e delegarem o poder de decisão a esse grupo.

A liberdade dá trabalho, porque traz responsabilidade. Quando temos liberdade e há alguma crise (e crises chegam, em qualquer sistema social), o cansaço trazido pela crise torna sedutora a ideia de “jogar a responsabilidade na máquina e poder finalmente relaxar”.
Seria bom ter uma máquina que resolvesse todos os nossos problemas. Seria confortável. Muitos economistas, ainda hoje, pregam que os mecanismos automáticos do mercado garantem o maior bem estar possível à população, não devendo haver intervenção nem crítica à ação desse mercado.

O problema de jogar as decisões na máquina é a desumanização dessas decisões. Os soldados dos campos de concentração jogaram a decisão no sistema. Apenas cumpriam ordens. Não questionavam suas ações. Não havia autocrítica. Viraram apenas peças da máquina. Não eram responsáveis.

Essa desumanização é um perigo em qualquer época, não apenas na Alemanha dos anos 30 e 40. Hoje, vivemos um período de crise. Crise econômica e crise política. Não por acaso, chegam até nós, como nunca, discursos saudosos dos tempos de ditadura. A ideia é que, cansadas da crise, as pessoas vão ceder à falsa promessa de que um regime de força irá solucionar todos os problemas, e cada um poderá descansar e simplesmente delegar a responsabilidade a outro.

É mentira: os problemas continuam existindo. Apenas fingimos que não é problema nosso, dando poder demais a outros humanos. E humanos são falhos.

No período militar houve tanta corrupção quanto fora dele. Ainda não temos acesso a toda verdade, pois em uma ditadura a informação não é aberta, e aqui não foi totalmente, mesmo hoje. Mas certo certo é que os problemas econômicos foram gigantescos na maior parte da ditadura.

Era um regime de força, força demais delegada a humanos que, pior do que tudo o mais citado, torturaram, perseguiram e mataram pessoas. Mas, na ditadura, era muito fácil fingir que tudo ia bem, que os militares trabalhavam para o bem do país. Poderíamos assim descansar e cuidar das nossas coisas. E apenas cumprir ordens.

A liberdade dá trabalho, nos obriga a tomar decisões, a arcar com os riscos dessas decisões, a ter de assumir eventualmente os erros. Muitos têm medo de escolher, de ter liberdade. Medo de conhecer a verdade de encarar todos os dias o fato de que temos problemas a resolver.

Viver em uma democracia é errar e aprender com o erro. É ter a integridade de assumir que errou, mas saber que é melhor escolher errado do que não escolher. Ou mesmo, se você achar que não errou, ter a liberdade de dizer: a situação está ruim, mas eu prefiro assim, porque eu acho que de outra forma é pior. Se o outro discorda, ele tem de tentar te convencer do contrário. A liberdade traz a possibilidade do diálogo, da tentativa de se encontrar consensos. Se os consensos não são possíveis, resolve-se no voto. Esquerda e direita erram, e cada uma tem a fundamental importância de apontar o erro da outra. Se eliminarmos um dos lados, se eliminarmos a diferença, vamos todos juntos para o buraco. E quando estivermos todos juntos no buraco, nossa única defesa será: “não sou responsável”.

O povo alemão delegou a responsabilidade a um regime de força. Delegou o poder de decisão a poucos, que, humanos, erram e, no limite, podem ser loucos genocidas, como eram os nazistas. Aquele povo apoiou ou fechou os olhos para a perseguição a inocentes.
Nós somos responsáveis. Não abra mão da democracia. Não abra mão da liberdade. Não abra mão de seu voto, e não deixe que joguem fora o seu voto, e não deixem que joguem fora o voto de seu próximo, mesmo que você discorde dele. Errar faz parte. Não abra mão da proteção às minorias, mesmo que você faça parte da maioria. Escolhamos nosso próprio caminhos e, certos ou errados, sejamos todos nós os responsáveis.

IMPOSTOS


Acaba de passar por aqui um carro de som convocando para uma manifestação contra impostos. “Deixe de ser escravo dos políticos” é o mote. É a velha e equivocada lógica “povo vs. políticos”, que esconde nossas contradições de classe e ainda planta a semente da falsa relação público viciado/privado virtuoso.

Eu pergunto para nossa boa gente: sem imposto, o dinheiro para a educação pública de qualidade e para a saúde pública de qualidade viria de onde? Meu povo, desconfiemos desse discurso de reduzir impostos sem especificar qual o imposto e de quem reduzir os impostos.

O problema do sistema tributário não é o tamanho da carga tributária. São dois os problemas: se sua distribuição é justa (quem paga mais e quem paga menos imposto) e para onde vai o imposto. Porque o imposto não atende às necessidades do povo? Muito mais do que pela corrupção, é pelas prioridades orçamentárias que o dinheiro público não atente às necessidades públicas. O orçamento público atende proritariamente aos mais ricos e, antes dos políticos, aos credores públicos, do setor privado.

Se não tomarmos consciência da necessidade de revermos as prioridades orçamentárias ao invés de simplesmente pedirmos menos impostos, os impostos que conseguirmos reduzir serão justamente os que ainda financiam o já fraco atendimento às necessidades da população. Estaremos jogando contra nossos próprios interesses e novamente sendo massa de manobra, como em 2016, 2015, 2013, 1964...

quarta-feira, 16 de maio de 2018

CONCEITOS DE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

Quase sempre que o termo “bárbaro” é usado, se refere a alguém que não é quem utiliza o termo. Bárbaro é o outro. Mas três visões sobre civilização e barbárie podem explicar posturas diversas, desejáveis ou não, em relação à alteridade.
1) “Civilização é a exterminação dos bárbaros”.

Esse é o conceito mais reacionário e ultrapassado de civilização, mas ainda forte no discurso de muita gente. Segundo ele, em suma, bárbaro é o outro, aquele que não sou eu. Eu posso eliminar o outro porque ele é bárbaro e eu sou civilizado. Tal postura resulta em um círculo vicioso, pois se o bárbaro também pensar assim, também vai me achar digno de ser exterminado. “Que barbaridade!”, direi eu, e então concluirei: “Estão vendo como eles eram bárbaros mesmo?” Essa lógica binária e burra acaba assim gerando conflitos intermináveis ou, quando uma parte é mais forte que a outra, massacres. Foi segundo esse princípio que as potências europeias empreenderam genocídios em suas colônias na África, incluindo o extermínio dos hererós (da Namíbia) pelos alemães, entre 1904 e 1907, que serviu de modelo para o genocídio dos judeus pelos nazistas.

2) “Bárbaro é aquele que acredita em barbárie”.
A definição do antropólogo Lévi-Strauss (1908-2009) é o extremo oposto da anterior, mas também é problemática. Se o conceito de bárbaro não existir, o que dizer de genocídios e campos de concentração?

3) “Bárbaro é aquele que crê que uma população ou um ser não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que eles mesmos recusariam firmemente aplicar a si mesmos”.

Por fim, uma terceira visão sobre civilização e barbárie, de Tzvetan Todorov, é a que defendemos aqui. Essa noção permite entender que a barbarização do outro: sua desumanização. Esta, por sua vez, permite que se cometam contra ele atos bárbaros. Permite, enfim, a aniquilação do outro. Permitiu o Holocausto e demais genocídios de nossa História.

Bibliografia:
GRESH, Alain. “Da Batalha de Termópolis ao 11 de Setembro”. Le Monde Diplomatique Brasil, janeiro de 2009.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

RAÍZES DO ÓDIO

Inimigo comum para expiação da culpa da crise: Períodos de mal-estar/crise produzem insatisfação geral em relação à coisa pública (política, economia, etc.). Diante desse mal-estar, os indivíduos podem ter três posturas:
- Assumir sua parte da responsabilidade e trabalhar para melhorar a sociedade e superar a crise;
- Escapar: fantasia, escapismo – prazer para aliviar a dor (não por acaso, o cinema escapista americano teve nos anos 30 um grande momento);
- Eleger um culpado e combatê-lo (colocar a culpa no outro).
A terceira opção é certamente a mais equivoca, a mais perigosa e, infelizmente, a mais popular. É aí que muitas vezes reside a raiz do ódio.
Estigma do Outro: eleger um “culpado” por todas as mazelas e a ele direcionar o seu ódio – Isso é uma forma de tirar de si a responsabilidade sobre a sociedade em que se vive. Uma democracia só é possível quando cada um é responsável pelo bem comum.
Quando se elege um “culpado”, passa-se a odiá-lo e querer destruí-lo. Isso, além de resultar em crimes contra a humanidade, como o holocausto e todos os demais extermínios da História, é uma ilusão.
É uma ilusão porque um único grupo de indivíduos, seja de judeus, homossexuais, comunistas, esquerdistas ou direitistas, não pode ser culpado por todas as mazelas. Logo, eliminar esse grupo não resolve crise nenhuma.
Em segundo lugar, todo extermínio é uma ilusão, porque nunca elimina de fato o outro. Por mais judeus, homossexuais, esquerdistas ou direitistas que se mate, novos nascerão. Sempre haverá uma minoria de homossexuais e uma maioria de heterossexuais, sempre haverá esquerdistas e direitistas, bem como judeus, cristãos, muçulmanos e umbandistas, bem como toda a sorte de raças e cores e pensamentos possíveis. Pelo simples fato que a pessoas são diferentes. E isso não só é bom, como é de fundamental importância. Os pensadores de esquerda têm a fundamental importância de apontar os erros da direita e os pensadores da direita têm a fundamental importância de apontar os erros da esquerda. Se caminharmos todos para o mesmo lado, o desequilíbrio político fará com que caiamos todos juntos no mesmo abismo.
Assumir uma posição no debate político, ou uma religião, ou uma condição sexual não implica deixar de reconhecer a importância da existência do outro, que não serve para te atrapalhar, mas para te colocar em perspectiva, como parte, e não essência, de um todo.
A postura hedionda do ódio erra, por fim, ao querer eliminar justamente o grande ativo da humanidade, que é a diversidade. É o medo que faz isso, o medo do que não compreendemos e que, portanto, queremos destruir. Assim, adquirir uma postura de respeito ao outro é uma postura libertadora na medida que compreendemos que a liberdade do outro não ameaça a nossa, muito pelo contrário, a liberdade do outro ser o que ele é é a mesma liberdade de eu ser o que eu sou.

3 RAZÕES POR QUE O LINCHAMENTO É NEFASTO

1- Condenar o inocente
Por melhor que seja o sistema jurídico, nunca haverá 100% de certeza de que decisão de um julgamento seja correta. Haverá sempre a possibilidade dois erros, que chamaremos de erro tipo 1 e erro tipo 2 (em analogia a um conceito da Estatística).
Erro tipo 1 – Condenar o réu, caso ele seja inocente.
Erro tipo 2 – Inocentar o réu, caso ele seja culpado.
O ideal seria que o devido processo legal não cometesse erro algum, mas o erro tipo 1 é pior, é mais inaceitável que o erro tipo 2. Para perceber isso basta nos colocarmos no lugar do inocente acusado. A vítima desse erro é você, inocente, não é o bandido!

Sob a possibilidade de pena de morte, isso fica ainda mais óbvio. Nesse caso, o erro tipo 1 é irreparável, sendo, em si, um crime hediondo.

Mas também quando inexiste a pena de morte, como no sistema brasileiro, o erro tipo 1 é pior que o erro tipo 2, ou seja, é preferível absolver um culpado a condenar um inocente.

Lembremos que, se o linchamento físico é a maior das barbáries, existe ainda o linchamento moral, que também causa danos irreparáveis às suas vítimas.

Para evitar a prática de qualquer tipo de linchamento, físico ou moral, as democracias adotam como princípio a presunção de inocência.
2- Contraditório e ampla defesa são pilares da democracia!
A máxima de que “todo cidadão é inocente até que se prove o contrário” é um princípio fundamental de qualquer democracia.
Contraditório e ampla defesa: Justiça garantista

O “garantismo” é uma forte característica da Constituição de 1988:

TÍTULO II
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
A Constituição de 88, a nossa vigente lei fundamental, também chamada de Constituição Cidadã, foi promulgada quando o país retornou à democracia após mais de 20 anos de ditadura militar.

A democracia é o regime que se caracteriza pelo governo do povo. Nele, as decisões são tomadas pelo voto da maioria, mas democracia não pode ser confundida com uma ditadura da maioria!
Democracia: vontade da maioria, dada a proteção das minorias.

Os direitos e garantias fundamentais, portanto, visam proteger as minorias da eventual fúria destruidora das maiorias.
O linchamento é evitado quando há o devido processo legal. O argumento dos linchadores quase sempre evoca a “lentidão” da justiça. Ora, assegurar que um inocente não seja condenado é algo que exige mesmo algum tempo. A justiça deve, portanto, procurar ser o mais rápida possível, mas sem que nenhum dos ritos necessários à sua assertividade se perca. Uma justiça rápida demais erra muito, e aumenta consideravelmente as chances de se cometer injustiça. Nenhuma alternativa à justiça lenta resolve seus problemas sem gerar outros maiores. Quando há pressa excessiva de se condenar o acusado, os fatos não são examinados com o devido cuidado.
3- Condenar o inocente TAMBÉM causa impunidade.
Pode-se argumentar que o erro tipo 2 (absolver o culpado) também é grave, pois causa impunidade. Sim, é grave mesmo, mas uma prova de que o erro tipo 1 (condenar o inocente) é ainda pior é o fato de que este erro (na hipótese de ter havido crime) também causa impunidade.

Se houver acontecido o crime em questão e inocentes forem condenados, o criminoso verdadeiro automaticamente estará solto e livre de qualquer acusação. Na hipótese de o crime ter de fato acontecido, condenar um inocente implica também absolver um culpado.

Por isso tudo, o contraditório e a ampla defesa são necessários. Por isso, nunca devemos nos esquecer de que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário. Há outros modos de tornar a justiça mais eficiente possível, mas SEM abrir mão das garantias que não servem para proteger bandidos, mas para proteger a todos nós.