sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

CRISE, FASCISMO E O SUPER-HOMEM


Afinal, o Super-Homem é fascista? Esta pergunta surge estimulada pela recente obra  “Super-Homem e o Romantismo de Aço”, de Rogério de Campos. A resposta deste historiador e leitor de quadrinhos é simples: depende.

Sim, pois, ao contrário do Lula, que deixou de ser pessoa e se tornou uma ideia, o Super-Homem nasceu como uma ideia e se tornou uma pessoa, ou ao menos um personagem. E este, o nosso velho conhecido, o repórter Clark Kent, não é fascista.

Com seus super-poderes, Clark poderia dominar o mundo, mas, tendo sido muito bem educado pelo casal Kent, prefere manter uma postura legalista. O Super-Homem escoteiro que conhecemos hoje está muito mais para constitucionalista liberal. Pode até ter votado alguma vez em Ronald Reagan, mas jamais ajudaria a eleger Trump (este muito mais próximo da versão magnata do Lex Luthor, dos anos 80).

Grande Depressão e o Sonho de Superpotência

Mas não é a “pessoa” que importa aqui, mas a ideia do Super-Homem, e esta é de fato muito próxima à essência do fascismo. O contexto histórico em que o super-herói é criado é o mesmo que gerou o nazi-fascismo. Diga-se de passagem, a inspiração filosófica para ambos também é compartilhada, tenha ela sido deturpada ou não.

O Super-Homem dos quadrinhos é fruto da grande depressão. Naquele contexto social, as pessoas estavam completamente impotentes e sonhavam com a superpotência. Quem já leu as primeiras histórias do herói sabe que o que o personagem inicialmente era muito diferente do que se estabeleceu depois, com sua mitologia bem detalhada construída ao longo das décadas.

O Super primordial, basicamente, é um homem que consegue fazer tudo o que quer, e assim “dá um jeito” em tudo que está errado. Isso é fruto direto do sentimento de impotência da população americana nos anos 30, durante a Grande Depressão.

O Super-Homem primordial era um justiceiro. Assim como os anos 30, ele se confundia entre os radicalismos de esquerda de direita. Nesta sua primeira fase, era comum vê-lo torturando um mafioso: levava o bandido para as alturas, até que este, morrendo de medo, pedisse clemência.

Igualmente, o proto-Super era muito sensível às questões sociais. Em sua terceira história, a missão dele é se infiltrar em uma mina, onde trabalhadores estão sendo explorados. Nessa história o vilão é o patrão que explora os mineiros, e o super-homem sequer veste sua roupa colorida, permanecendo a ação toda com seu disfarce: roupa e capacete de operário.

Aquele impressionante personagens inspirou dezenas de outras criações dos anos 30 e 40, que formaram a  “Era de Ouro ” dos quadrinhos. Mas, de fato, a essência do Super-Homem e dos demais super-heróis é a mesma do fascismo: a ideia que todos os problemas podem ser resolvidos pela força.

Os Super-Heróis Vão à Guerra

E aí chegam os anos 40. Os EUA entram na Segunda Guerra e o Super-Homem, assim como todos os super-heróis norte-americanos passam a lutar contra o nazi-fascismo.

Os historiadores do quadrinhos mais atentos notam aí um paradoxo: o Super-Homem luta contra o fascismo mas sua ideia base, da resolução dos conflitos pela força, é essencialmente fascista. Ao final da Guerra, a exemplo do Estado Novo varguista, o Super-Homem tem de resolver esse paradoxo. A partir de então, o personagem é “encaretado”. Não perde a força, mas abandona em grande medida a violência.

A versão do Super-Homem mundialmente difundida pelas décadas seguintes é a do “legalista”, aquele Superman ético, que não mata. É muito mais próxima de uma imagem de Jesus do que do valentão justo e indignado, que é o que ele era no início da carreira.

E, de fato, se não fosse por sua integridade, o Super-Homem não seria mais do que um General Zod ou um Super-Mussolini.

Cinema de Super-Heróis e o Novo Fascismo?

Tirando novamente o foco do velho Clark de Pequenópolis, tomemos, mais amplamente, o conceito de super-herói, o heroísmo que está vinculado a ao super-poder. Se o condicionamento da virtude ao poder é tipicamente fascista, como dissemos acima, estaria o recente boom do cinema de super-herói relacionado à acensão do novo fascismo em escala mundial?

Talvez não, mas só essa indagação nos convida a ter um olhar crítico sobre os produtos culturais de ação e aventura. Para além das explosivas cenas de ação, é em pequenos detalhes, como na postura do suposto herói diante de um inimigo caído, que descobriremos a mensagem implícita daquela obra.

sábado, 5 de janeiro de 2019

ESTRUTURAS DE MERCADO E LUTA DE CLASSES (UMA TRANSA CONCEITUAL PARA O SÉCULO XXI)


João, marxista, e Marcelo, liberal, estavam conversando sobre o contexto político e social, quando João educadamente criticou o olhar de seu amigo: “Está faltando luta de classes nessa sua análise”. Marcelo torceu o nariz para a sugestão: “Eu realmente não gosto desse conceito. Para mim, inclusive, ele estimula o ódio”.

Tal contragosto não é apenas de Marcelo. Hoje, muitos veem a luta de classes como um conceito antigo, antiquado e talvez muito dramático para os humores individualistas destes 2000 e poucos. Marcelo não enxerga a sociedade capitalista como uma luta de classes, mas como uma competição entre indivíduos. E nesta, aparentemente, ele não enxerga estímulo ao ódio.

Estruturas de Mercado

Mas o que Marcelo e muitos outros talvez não se lembrem, é que a teoria que embasa a competição entre indivíduos é tão antiga quanto a marxista. Foi no século XIX que a teoria econômica neoclássica modelou a competição capitalista, elaborando suas leis a partir de uma suposta competição perfeita. E, acreditem, a premissa básica dessa estrutura de mercado é a igualdade.

A competição perfeita é a primeira estrutura de mercado apresentada em qualquer manual de economia. Nela, todas as firmas competem em pé de igualdade. Não há barreiras à entrada de novas firmas e nenhuma empresa tem individualmente o poder de influenciar o preço. Assim, no longo prazo, as firmas não têm lucro econômico, ganhando apenas o suficiente para manter-se funcionando.

Saindo da teoria, já no século XIX ficou claro que a tendência natural das sociedades industriais não era essa. A realidade econômica não se dava em uma estrutura de competição perfeita, pois as firmas tinham poder de mercado diferenciado. Assim, passaram a ser estudadas estruturas em que, diferentemente da  competição perfeita, havia concentração de mercado: o monopólio (apenas uma firma) e o oligopólio (poucas firmas).

Monopolistas e oligopolistas apresentam comportamento peculiar. Uma prática comum quando poucas empresas têm muito poder de mercado é a formação de cartel ou conluio. Nesse caso, as firmas dominantes, ao invés de concorrer entre si, fazem acordos para potencializar seus lucros, sacrificando a eficiência econômica. Também é comum que as firmas com alto poder de mercado se utilizem dessa vantagem para impedir a entrada de novas empresas. Assim, o poder de mercado é usado para criar barreiras à entrada, e essas barreiras à entrada aumentam o poder de mercado.

Como a concentração de poder de mercado impedia os ganhos de eficiência prometidos pela teoria liberal da competição perfeita, abriu-se o espaço para a intervenção governamental. Assim, para garantir que a competição fosse justa, até mesmo o estado liberal deveria intervir no mercado, impedindo que a concentração monopolística ou oligopolística destruísse a concorrência. A lei de Sherman, de 1897, é um marco da política antitruste norte-americana.

Luta de Classes

Mas o que isso tem a ver com luta de classes? Ora, partindo dessa análise liberal do mercado, propomos retomar a análise dos indivíduos na sociedade. Assim como firmas acumulam naturalmente poder de mercado, indivíduos acumulam riquezas ao longo da história, passando a seus sucessores.

Ora, o capitalismo real, diferentemente do modelo teórico da competição perfeita, não partiu de uma alocação inicial igualitária. Ele acumulou as desigualdades dos modos de produção anteriores, que continuaram influenciando a distribuição de poder no mundo contemporâneo, ainda que modificadas. E, depois de dois séculos de desenvolvimento desse sistema, a média dos indivíduos mais ricos já nasce com “poder de mercado” previamente adquirido (riqueza e influência), usando-o para impedir que os indivíduos com menos poder de mercado ascendam e compitam com eles.

Esses privilegiados tampouco competem entre si. Assim como muitos oligopolistas, os indivíduos com mais “poder de mercado” se unem em conluio, em cartel, para maximizar seus ganhos e impedir que os de fora do cartel ascendam. E assim, dirá João Marxista a Marcelo Liberal, a luta de classes está posta, independente de os estratos de baixo a enxergarem.

Nessa luta, a principal arma da elite do dinheiro é a ilusão de que estamos em uma competição perfeita. Os ricos têm consciência de classe e agem como um cartel. As classes de baixo (incluindo a classe média), tendo abandonado o conceito de luta de classe, se enxergam como indivíduos, em uma competição homogênea e sem barreiras à ascensão.

Essa ilusão facilita poderosamente a dominação. Se parte da sociedade exigir que o Estado intervenha para criar condições de igualdade, a elite condenará essa atitude, alegando que se está impedindo a competição. Na verdade, tudo que os que estão no topo não querem é concorrência.

A competição entre os indivíduos, assim como aquela entre as firmas, não se dá em condições iguais. Nossa estrutura de mercado não é a competição perfeita, mas o oligopólio. Quando a sociedade decide coibir o abuso do seu poder de mercado das classes mais altas, criando condições para que os indivíduos de baixo possam competir, ele não está interferindo na concorrência. Ela está interferindo naquilo que impede a concorrência.

Portando, a intervenção governamental é necessária não apenas para garantir a concorrência entre firmas, mas também entre indivíduos. Nesse sentido, assim como política antitruste, as políticas de redistribuição de renda e a universalização dos serviços públicos são dever do estado.
Se Marcelo Liberal Capitalista acredita no desenvolvimento da civilização pela competição, ele não apenas não deve criticar as proposições acima. Ele tem a obrigação de endossá-las, para que a competição justa seja garantida. Caso contrário, o abuso do poder das elites gerará o mesmo tipo de ineficiência que sabidamente é gerado pela concentração de mercado.

Uma Síntese Possível

Então João Marxista também acredita na virtude da competição? Na verdade, nem tanto. Ele crê que uma sociedade baseada na cooperação será muito mais próspera e feliz do que aquela baseada na competição. As gerações que acreditaram naquela velha ideia da luta de classes não necessariamente tiveram seu ódio potencializado. Pelo contrário, com a consciência de classe e de pertencimento a uma coletividade, muitas vezes experimentaram os milagres que a solidariedade pode realizar.

Mas mesmo que Marcelo Liberal esteja certo, e a competição seja um motor civilizatório mais eficiente que a cooperação, ele e João estarão de acordo sobre não poucas questões. Ambos reconhecerão como óbvia a necessidade de se promover políticas afirmativas, sistema tributário progressivo, educação e saúde universais, políticas de segurança alimentar. Se não apenas por humanismo (que seria motivo suficiente), pelo bem da competição. E esse consenso entre Marcelo e João já será um enorme avanço para a civilização.