segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A TRILOGIA DA AMEAÇA CRESCENTE E O BRASIL DOS ANOS 10


Filme brasileiro de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, "Bacurau" estreou este ano impactando plateias, aqui e mundo afora. Muitas análises têm sido feitas, e também comparações com os dois longas anteriores de Mendonça Filho (de que Dornelles participou como diretor de arte). São comuns, afinal, comparações entre um filme e as obras anteriores de diretor. Mas não me lembro de ter lido ou ouvido a palavra "trilogia" para descrever a sequência "O Som ao Redor" (2012), "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (2019). No entanto, ainda que suas histórias sejam independentes, há algo que une os três filmes, além dos realizadores.

Essa unidade talvez esteja no sentimento do espectador das três histórias. Para quem as assistiu no cinema, elas são mais do que apenas elas mesmas. São, além de três grandes filmes, experiências de presença em um momento histórico. E, levando isso em conta, podemos entendê-los como uma unidade, que diz muito sobre a nossa relação com os rumos da política e da sociedade brasileira entre 2012 e 2019.

Dificilmente essa foi a intenção primeira dos autores. Provavelmente, a cada produção, o objetivo era apenas realizar um filme. Mas quis o cosmos que eles formassem uma trilogia, ainda por ser nomeada, que retrata em forma de crônica este Brasil dos anos 10. Nesse sentido, o que une essas três obras é uma relação de cumplicidade com o seu público. Em geral, quem os assiste faz parte da parcela da população que percebe algo de muito errado, de muito incômodo, em seu contexto social. Algo que surge como uma ameaça pouco nítida, talvez um imaginária, e vai se concretizando e se revelando irrefutavelmente real.

- 2012

É 2012, e assistimos a "O Som ao Redor". A vida parece tranquila, mas há uma violência presente. Uma violência que parece paralela à nossa vida, não a invade. Mas uma violência histórica e mal resolvida, que preferimos não confrontar. E, conforme essa violência se "formaliza", fingimos que isso é o suficiente para mantê-la sob controle. A ameaça aparente não parece nos afetar diretamente. Pode ser que ela seja apenas imaginária: o barulho de uma máquina de lavar na vizinhança, o latidos dos cachorros, o som ao redor. Talvez seja só paranoia.

Ainda assim, ela incomoda, e desconfiamos que isso pode não terminar bem. Mas, fazer o quê? Somos apenas indivíduos bem-intecionados, não há como evitar a ação do submundo da violência. Tampouco podemos impedir as pequenas crueldades que a proto-burguesia imprime, todos os dias, aos que para ela trabalham. Apenas protestamos um pouco e, por fim, abandonamos a reunião de condomínio, pois não somos obrigados a conviver com aquilo. Deixa pra lá, vida que segue.

- 2016

Em 2016, a situação já é outra. Um filme é visto em Cannes, e lá sua equipe protesta: "parem o golpe no Brasil". O filme estreia nos cinemas do Brasil no dia seguinte à concretização desse mesmo golpe. E quem se incomodou com ele, a ponto de chamá-lo de golpe, vai assistir ao filme, e encontra Clara. A personagem de Sônia Braga é também as muitas claras que cada um de nós admirou na vida. As que nos ensinaram a amar filmes e livros, e também a amar a democracia por que lutaram. E, novamente, o filme estabelece com o espectador um laço afetivo, uma identificação imediata.

Na trama, Clara não pode mais simplesmente deixar a reunião de condomínio e, dizendo "não sou obrigada", retornar à sua rotina. Aqui, a ação da grande e da proto burguesia afetam diretamente a sua vida. Pela força do dinheiro, fazem o mal que a força sempre faz, e Clara é "convidada" a ceder, deixando sua casa. Porque podem, pelo direito do mais forte, expulsam-na de seu lugar de direito. Aqui, Clara não pode  mais ignorar: seu direito foi roubado. Como foi roubado o voto de quem elegeu o governo deposto no dia anterior.

Clara, como as muitos Claras de nossas vidas, dificilmente aceitaria engolir tão indigesto sapo em silêncio. Mas, aqui, ainda lhe é dada uma opção. "Conforme-se, e evite se aborrecer. Abra mão de seu direito, e você terá mais paz. Finja que foi só um impeachment, foi dentro da lei. E siga a vida".

- 2019

Por fim, chegamos a 2019. Aqui, a ameaça não pode mais ser ignorada. E, definitivamente, não é só imaginária. Parecia um disco voador, mas era mesmo um drone. O inimigo invisível que inflige a ameaça não se contentará com menos do que a nossa destruição. Neste ano, adentramos Bacurau, e a opção de fuga não nos é mais dada. É preciso resistir, lutar pela vida, lutar pela nossa história.

Aos que, em 2019, são chamados a lutar pela civilização brasileira, "Bacurau" traz uma lição preciosa: a resistência só é possível porque é organizada. A sobrevivência à ameaça não vem das mãos de um herói messiânico. Ela vem de uma coletividade que, unida, torna-se mais forte. E não é a raiva ou a vingança que os move. Ainda que sua postura seja firme, ela é consciente, racional, razoável. Nunca mais do que proporcional à ameaça infligida.

E assim é a nossa luta. Nos atos, nas praças, nas conversas, nos textos, nas instituições. Agora não podemos mais ter aquela postura individualista de 2012, quando éramos apenas indivíduos bem-intencionados. E, para o nosso bem, despimo-nos também da justa raiva que nos dominava em 2016. Não é possível mais adiar o momento de encarar e vencer nossos fantasmas e a nossa maldade. De, como a população de Bacurau, lidarmos com terna firmeza com os que desejam nossa morte. De estarmos muito calmos e descansados, para que a racionalidade prevaleça. E, principalmente, de estarmos juntos e organizados, pois essa é a única forma de superar a barbárie.

Afinal, por tudo isso termos aprendido nestes tão poucos anos, podemos até ser gratos a este Brasil dos anos 10. E que venham os anos 20.

sábado, 14 de setembro de 2019

CONVITE A NASCER DE NOVO


Uma Canção

Era esse o nome da música que me chamou a atenção, enquanto eu olhava despretensiosamente os vídeos sugeridos no celular. “Convite para Nascer de Novo”. Eu estava, então, fazendo carinho na gatinha da minha mãe, enquanto ela comia. Ela sempre gosta que lhe façam carinho na hora da ração. Enquanto ela comia, eu fazia carinho com uma mão e olhava o celular com a outra. E foi assim que eu me deparei com o título da música nova do Erasmo Carlos.

Título inspirador, como inspiradora é a vida do roqueiro brasileiro que melhor conservou o espírito jovem que se espera do rock and roll, na melhor acepção do termo. Com 60 anos de carreira, Erasmo mantém uma ativa produção de músicas novas que merecem ser ouvidas. A mencionada acima, com título tão convidativo, eu não poderia deixar de ouvir. E a Cecy também ouviu, enquanto comia e recebia carinho.

A letra era sobre alguém que andava morto em vida, conformado com a estagnação, até que um novo amor o convida a nascer de novo, e os dias ganham nova cor. Na canção, a origem da “vida nova” era, presumivelmente, um novo relacionamento amoroso. Mas a maioria dos versos poderia ser dirigida a qualquer pessoa, ser, ação ou ideia que apaixone, que desperte vida. O fato gerador do novo nascimento poderia ser a chegada de um filho, ou mesmo de um animal, como demonstrava aquele serzinho ronronante aos meus pés, transbordando sentimentos puros.

Mas, para além da constatação da infalível competência daquele artista, para além da análise da letra e da melodia, senti certa conexão cósmica nesse título. A sintonia com um inconsciente coletivo pareceu clara, pois, naquela mesma semana, eu já havia ouvido outro “convite a nascer de novo”.

Um Índio

Foi em uma entrevista do líder indígena Ailton Krenak. Em dado momento, o entrevistador pergunta o que ele teria a dizer a uma pessoa que repete discursos como o de que “índio não gosta de trabalhar”. Certamente tanto o entrevistador quanto os espectadores se prepararam para argumentos didáticos e irrefutáveis contra o preconceito. Mas a resposta de Krenak foi curta como um soco de Muhammad Ali.

- Eu quero dizer que essa pessoa precisava nascer de novo.

Seguiu-se um interminável segundo de silêncio em que o entrevistador parecia não acreditar que não haveria mesmo nenhum complemento, nenhuma explicação a mais. E, depois disso, apenas o barulho das engrenagens de nossa mente, posta para refletir.

Quando uma pessoa comum diz que “fulano, só nascendo de novo”, certamente está afirmando que para essa pessoa não existe salvação, que não há jeito de mudá-la ou que com ela não há negociação possível. E há, de fato, esse significado na fala de Krenak.

E como não haveria? O entrevistador pede para o indígena mandar uma mensagem para os que, na melhor das hipóteses, defendem a morte de todo o modo de vida dele e dos seus e, na pior delas, defende a morte do próprio Ailton. Essa tem sido nossa História: homem branco mata índio. Isso não aconteceu séculos atrás: isso acontece continuamente, desde há séculos atrás. Não caberia, portanto, qualquer tom de simpatia e camaradagem na fala do indígena. Essa justa indignação seria o único conteúdo da frase, se estivéssemos falando de uma pessoa normal.

Mas Ailton não é uma pessoa normal, como bem o sabem os que conhecem certo episódio de 1987, em que esse mesmo líder pintou o próprio rosto enquanto discursava na assembleia constituinte, em defesa do povo indígena. Para quem já assistiu as imagens dessa manifestação política, uma das mais emocionantes do século passado, não é delírio supor que a sua fala presente é mais profunda do que um mero “não tem jeito”.

Sim, ainda que Ailton Krenak não goste nem seja obrigado a gostar de quem transmite adiante o velho e insalubre “índio não gosta de trabalhar”, há amor em sua fala. O amor que assume a forma de um convite, evidente para quem se dispuser a olhar a frase para além do soco verbal que ela também é.

Portanto, a você, brasileiro-branco-médio-que-odeia-índio, Krenek diz: “Tem jeito, há salvação, a negociação é possível. Mas, para isso, você precisa se tornar alguém para quem a minha morte e a destruição da natureza não seja a única solução possível. Você precisa nascer de novo”.

E esse é o outro convite a nascer de novo, a que a canção me remeteu. E que, por sua vez, me lembrou de ainda outro convite a nascer de novo, relatado há muitos séculos.

Nicodemos

“Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse:

– Rabi, sabemos que és mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.

A isto, respondeu Jesus:

– Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

Perguntou-lhe Nicodemos:
– Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?

Respondeu Jesus:

– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; o que é nascido do Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo” (Evangelho de João, 3:1-7, tradução: Almeida Revista e Atualizada).

Nicodemos se dirigiu a Jesus com toda a cortesia e erudição de quem ocupa uma alta posição social e religiosa. E, com toda a calma e autoridade de quem ama seu interlocutor, Jesus mandou a real: Nicodemos, você não está entendendo. Você precisa nascer de novo.

Esse era o primeiro convite a nascer de novo em minha memória, a que me remeteu o segundo convite, na entrevista de Ailton Krenak, a que me remeteu, por sua vez, o terceiro convite, na letra do Tremendão.

E vinha de Jesus, aquele mesmo que, sem nunca ter dito que ninguém era obrigado a gostar de ninguém, mandou que apenas nos amássemos. O mesmo que, no mínimo, não era uma pessoa comum. E, no máximo, como ensina a teologia cristã, é quem veio ao mundo para resgatar a “primeira identidade” do homem. O que nos leva a um relato ainda mais antigo, sobre um sujeito que em dado momento parou de gostar de trabalhar.

Adão Pisou na Bola

Adão pisou na bola, e teve de sofrer as consequências. Com a queda, perdeu sua primeira identidade, sentindo-se completamente nu. Por ter comido do fruto da única árvore proibida, Deus o lançou fora do jardim do Éden. E, ao fazê-lo, disse: “maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida (...) no suor do rosto comerás o teu pão” (Gênesis 3:17-19).

A nossa cultura ocidental, que herdou a crença da Bíblia, enxerga aqui a origem do trabalho. E o fato de vermos aqui a origem do trabalho diz muito sobre a forma como enxergamos o próprio trabalho: como um castigo, ou até uma tortura. Tão forte é em nós essa abordagem que deixamos passar algo muito significativo, contido no mesmo relato de origem.

Neste mesmo livro de Gênese, antes de Adão ser castigado, antes de ele ter caído, antes mesmo de ele ter pisado na bola, diz o texto que:

“Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gênesis, 2:15).

Isso quer dizer que antes da queda o homem já trabalhava. E essa ação era tão espontânea que não era preciso nem lhe dar um nome. Ele vivia em harmonia com a natureza, servindo ao jardim tanto quanto o jardim o servia. Bendita era a terra, e o homem a cultivava, e não a destruía.

A vida do Adão pré-queda era tão plena que ele teria paciência até mesmo para mandar uma mensagem a quem, hoje, se acha no direito de dizer quem gosta e quem não gosta de trabalhar. Diria ele à sua contraparte pós-queda do século XXI:

– Na verdade é você que não gosta de trabalhar. Tanto não gosta de trabalhar, que só consegue ver no trabalho algo que alguém tenha de obrigar outro alguém a fazer. Tanto não gosta de trabalhar que quer que outros trabalhem para si, ou sonha com o dia em que isso aconteça. Tanto não gosta de trabalhar, que sequer percebe a diferença entre exploração do trabalho e exploração do trabalhador.

Exploração do Trabalho e Exploração do Trabalhador

Dizer que um bem ou um serviço foi produzido sem exploração do trabalhador não quer dizer que ele tenha sido feito por robôs. Há uma diferença entre exploração da força de trabalho (emprego da ação do trabalhador na produção) de exploração do dono da força de trabalho (emprego de um trabalhador subpago na produção para outrem).

Há exploração do trabalhador quando o que ele recebe pelo uso de sua força de trabalho é inferior ao que vale essa força de trabalho. Em uma explicação bem simplificada, essa diferença é a mais-valia, teorizada por Marx.

Karl Marx foi autor da mais notória teoria sobre a exploração do trabalhador. Em sua obra máxima, “O Capital”, de 1867, ele diferencia muito claramente os conceitos de processo de produção da mais valia e processo de trabalho. Para ocorrer mais-valia, é preciso haver trabalho, mas o trabalho pode ocorrer sem que se gere a mais valia. E, enquanto a produção de mais valia é típica do capitalismo, o trabalho é inerente à humanidade, em todos os seus sistemas sociais e modos de produção. Está lá no capítulo 5, pode conferir.

Mas “O Capital” é um livro muuuuito grande e, além disso, incômodo. Assim, sequer nos demos ao trabalho de folheá-lo (nem que fosse para criticar). E seguimos hoje acreditando que trabalho é algo indissociável da exploração do trabalhador, crença que está entranhada no coração do brasileiro médio.

E, aqui, o índio volta à nossa história, dizendo ao brasileiro branco médio: disso que eu não gosto mesmo. Não gosto de ser explorado, ganhando menos do que o valor do meu trabalho. Ganhando apenas o necessário para continuar vivo, para trabalhar mais, até o fim da vida, para o conforto de poucos abastados. Não gosto de tratar a natureza como objeto a ser dominado e consumido até a exaustão. É esse o tipo de trabalho que você tenta me impor, e dele eu realmente não gosto, nem deveria.

Bem Viver

Mas esse, felizmente, não é o único modo de vida, de trabalho e de relação com a natureza possível. Não é o único e muito menos é o melhor. Os povos indígenas, agora, como desde sempre, nos apresentam o seu “bem viver”.

Bem viver é um conceito simples e, ao mesmo tempo, ampliador de horizontes. É um princípio tão antigo quanto os povos tradicionais que estabeleceram suas bases. Ao mesmo tempo, abre portas para o futuro da civilização, ao atribuir um novo significado ao desenvolvimento. Este, no bem viver, está baseado na harmonia do homem com a natureza e com seus semelhantes, na busca pela equidade social e pela justiça ambiental.

O bem viver esteve sempre à nossa disposição. Mas para que nós, homens brancos do ocidente, levássemos essa ideia a sério, foi preciso que atingíssemos o limite do modo de vida a que nos acostumamos. Foi necessário que nos víssemos perigosamente próximos da própria destruição para pensarmos a respeito. E só aí, finalmente, desconfiamos que essa prática, a de homens explorarem outros homens e submetem a natureza ao lucro imediato, talvez não seja algo “da natureza humana”, eterna e imutável. Como um viciado ao constatar que sua trilha só pode levar à morte, nossa civilização não pode mais deixar de refletir sobre a necessidade de mudar de vida. Sobre a possibilidade de bem viver.

A decisão de viver bem, de viver em harmonia com a natureza e com o próximo, pode não apenas nos salvar da morte, mas trazer vida em abundância. Pode nos permitir orbitar “o infinito de uma coisa boa” e trazer “primaveras de estações sem dor”. E o bem viver é, sim, possível. É preciso, apenas, nascermos de novo.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

IGUALDADE, IDENTIDADE, DIVERSIDADE...


Poucos notam, mas há dois relatos da criação na Bíblia, no início do livro de Gênese. A narrativa mais antiga e conhecida está em Gênesis 2 (4 a 24) . Antes dele, em Gênesis 1 e 2 (1 a 3), encontramos o relato que foi escrito depois. É um poema sobre a criação do mundo, escrito durante o exílio dos judeus na Babilônia. Nesse relato, o homem não foi criado antes da mulher. Não há costela de Adão e nem domínio de um gênero sobre outro. Ali, o texto simplesmente diz:

“Criou Deus, pois, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27).

Enquanto o primeiro relato (que, na Bíblia, vem em segundo lugar) foi registrado em papel no auge da glória do reino de Salomão, este segundo, o poema, foi escrito durante a escravidão. Ali, nivelados pela pobreza, os homens despiram-se das lentes de riqueza e poder. Essas lentes que distorcem nosso olhar, fazendo com que creiamos na ilusão de hierarquia entre uns e outros. Ali, a dominação a todos atingia. Ali, os do povo judeu, homens ou mulheres, eram todos iguais.

Mas, nesse poema da criação, também não eram iguais. Eram diferentes. “Homem e mulher os criou”. Aí há diversidade. Duas pessoas foram criadas, e uma era diferente da outra. Não havia hierarquia entre elas, mas não eram iguais.

Aqui cabe um esclarecimento semântico: precisamos saber a diferença entre igualdade e igualdade. Sim, são dois conceitos completamente diferentes! Podemos ser iguais quando não há diferença entre nós, mas também podemos ser iguais quando, com toda a nossa diferença, não há hierarquia entre nós. Quando pregamos a igualdade entre as pessoas, não estamos querendo que elas sejam todas iguais. Em primeiro lugar, porque seria, de fato, impossível. E, em segundo, porque a grande riqueza humana é a sua diversidade. Quando louvamos a igualdade entre as pessoas, não desejamos que todas sejam iguais, o que seria uma causa perdida e burra. Queremos que não haja hierarquia entre elas.

Essa diferença é óbvia, se explicada. Mas, antes disso, pode causar muita confusão. A propaganda a favor da hierarquia social se utiliza fartamente, e com muito sucesso, dessa confusão conceitual. A igualdade entre as pessoas, dizem, jamais irá acontecer, pois elas são muito diferentes entre si. Atrás desse argumento, ajuntam um sem número de seguidores, porque a diferença entre as pessoas é, de fato, mais do que desejável. Mas disso não decorre que deva haver hierarquia entre elas: que uma possa tenha poder para dominar a outra, para escravizá-la, para submetê-la à própria vontade.

Dito isso, podemos voltar ao poema e entender que Deus os criou como iguais. Mas, atenção: homem e mulher os criou. São duas pessoas, têm identidades distintas. E, porque são diferentes, o texto nos diz “homem e mulher os criou”. E chegamos ao triste engano que afeta até mesmo este século.

Não são poucos da fé que usam esse verso para dar o significado exatamente contrário. Não enxergam que Deus criou duas pessoas, e uma era diferente da outra. Veem, antes, duas categorias a que todos devem se enquadrar. Como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. E o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo binário, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

*

Somente neste século XXI, para melhor entender as identidades de gênero e a sexualidade humana, o modelo binário é incrementado. Assim, a segundo a sua identidade de gênero, uma pessoa pode ser homem ou mulher. Segundo sua preferência sexual, pode ser gay ou hétero. E, de acordo com o alinhamento de sua identidade de gênero ao sexo biológico, pode ser cis ou trans. Combinando as três variáveis no modelo, existem 8 possibilidades.

Uma pessoa toma conhecimento desse modelo. Vamos chamá-la, hipoteticamente, de Sônia. Por ser uma pessoas aberta ao novo, Sônia acha o modelo bastante interessante e esclarecedor. Ela vai, então, apresentá-lo a um amigo, a quem atribuiremos o nome de Tarcísio.

Tarcísio, diferentemente de Sônia, é avesso ao novo. Ele logo entende que, no modelo que Sônia lhe apresenta, seu papel é de homem cis hétero. Isso lhe parece bom, soando mesmo como um título nobiliárquico. Mas, quando Sônia explica as inovações que o modelo comporta, ele recua.

– Quer dizer que alguém com cromossomos XX pode ser um homem trans gay e se relacionar com um homem cis gay?

– Sim!

– Quer dizer que um homem cis pode namorar uma mulher trans, e ambos serem héteros?

– Sim!

– Iiiiiih... Pra mim, isso ficou muito difícil de entender.

Sônia sabe que Tarcísio é pós-graduado em Finanças nos EUA, e que sabe muito bem explicar a diferença entre posição comprada numa opção de venda e posição vendida numa opção de compra. Como não poderia entender um modelo simples com três variáveis binárias? Ela tenta novamente:

– Não é difícil não. Espere, vou fazer um diagrama de árvore para você ver.

– Ah, não, por favor, não precisa. Eu não dou conta disso não – diz Tarcísio, por fim, fechando-se para qualquer apelo.

Certamente, pensa Sônia, não é por falta de inteligência que Tarcísio não entende o modelo. Talvez seja por acreditar, erradamente, que a afirmação da identidade do outro ameaça a sua. Talvez seja porque está muito confortável no modelo mais simples, tendo tido sucesso em adequar-se a ele, e sentindo vertigem diante de uma mudança no status quo. Ou, vai saber, talvez tenha mesmo cansado muito a mente no seu MBA no exterior.

*

Assim, como o modelo que empolgou Sônia e assustou Tarcísio, a sigla LGBT procura incluir, generosamente, as diferenças e minorias sexuais e de gênero. Busca contemplar, ainda, os que não se enquadram na classificação binária, como bissexuais. Conforme mais especificidades sejam integradas à bandeira da diversidade, a sigla pode aumentar, incluindo um “I” (intersexuais), um “Q” (queer), um “A” (assexuais), um + (quem mais chegar)...

A expressão dessas identidades ajuda, e muito, os que nelas encontram lugar. Ajuda-os a cultivar o amor próprio, compreendendo-se como parte do mundo e não como algo estranho a ele. Mas, talvez acima de tudo, esses modelos e siglas servem aos Tarcísios da vida. A eles, é oferecida a oportunidade de entender um pouco melhor a diferença entre si e o outro. De perceber que o outro não é uma ameaça a si. E, assim, superado o medo, ter o caminho livre de desculpas para respeitar o diferente.

*

Mas e se nós, como Sônia, somos abertos ao novo e conseguimos identificar cada letra de tão cara sopa? Bom, nesse caso, estamos de parabéns, mas não livres de risco. Risco de, como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. De, tornando-nos ortodoxos, acharmos que a realidade deve refletir o modelo, e não o contrário. De, como um fundamentalista diz que “homem é homem e mulher é mulher”, acharmos que “L é L, G é G, B é B, T é T...”. E assim, o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo complexo, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

Nosso pensar pequeno a tudo quer dar fim, definir, enquadrar em categorias de que possamos dar conta. E, ao menos nisso, Tarcísio está certo. A gente não dá conta. E não precisamos dar conta. Porque se, como dito acima, o entendimento pode ajudar muitos a respeitar o diferente, muito melhor do que isso é respeitar e amar independente de entendimento. Aliás, quando entendemos que não entendemos ficamos um pouco mais próximos de entender. No limite, a diversidade é tão vasta quanto a própria humanidade. Ela é infinita, como infinito é o autor da criação. E podemos deixá-la fluir, como um rio que não precisa ser controlado.