sexta-feira, 13 de setembro de 2019

IGUALDADE, IDENTIDADE, DIVERSIDADE...


Poucos notam, mas há dois relatos da criação na Bíblia, no início do livro de Gênese. A narrativa mais antiga e conhecida está em Gênesis 2 (4 a 24) . Antes dele, em Gênesis 1 e 2 (1 a 3), encontramos o relato que foi escrito depois. É um poema sobre a criação do mundo, escrito durante o exílio dos judeus na Babilônia. Nesse relato, o homem não foi criado antes da mulher. Não há costela de Adão e nem domínio de um gênero sobre outro. Ali, o texto simplesmente diz:

“Criou Deus, pois, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27).

Enquanto o primeiro relato (que, na Bíblia, vem em segundo lugar) foi registrado em papel no auge da glória do reino de Salomão, este segundo, o poema, foi escrito durante a escravidão. Ali, nivelados pela pobreza, os homens despiram-se das lentes de riqueza e poder. Essas lentes que distorcem nosso olhar, fazendo com que creiamos na ilusão de hierarquia entre uns e outros. Ali, a dominação a todos atingia. Ali, os do povo judeu, homens ou mulheres, eram todos iguais.

Mas, nesse poema da criação, também não eram iguais. Eram diferentes. “Homem e mulher os criou”. Aí há diversidade. Duas pessoas foram criadas, e uma era diferente da outra. Não havia hierarquia entre elas, mas não eram iguais.

Aqui cabe um esclarecimento semântico: precisamos saber a diferença entre igualdade e igualdade. Sim, são dois conceitos completamente diferentes! Podemos ser iguais quando não há diferença entre nós, mas também podemos ser iguais quando, com toda a nossa diferença, não há hierarquia entre nós. Quando pregamos a igualdade entre as pessoas, não estamos querendo que elas sejam todas iguais. Em primeiro lugar, porque seria, de fato, impossível. E, em segundo, porque a grande riqueza humana é a sua diversidade. Quando louvamos a igualdade entre as pessoas, não desejamos que todas sejam iguais, o que seria uma causa perdida e burra. Queremos que não haja hierarquia entre elas.

Essa diferença é óbvia, se explicada. Mas, antes disso, pode causar muita confusão. A propaganda a favor da hierarquia social se utiliza fartamente, e com muito sucesso, dessa confusão conceitual. A igualdade entre as pessoas, dizem, jamais irá acontecer, pois elas são muito diferentes entre si. Atrás desse argumento, ajuntam um sem número de seguidores, porque a diferença entre as pessoas é, de fato, mais do que desejável. Mas disso não decorre que deva haver hierarquia entre elas: que uma possa tenha poder para dominar a outra, para escravizá-la, para submetê-la à própria vontade.

Dito isso, podemos voltar ao poema e entender que Deus os criou como iguais. Mas, atenção: homem e mulher os criou. São duas pessoas, têm identidades distintas. E, porque são diferentes, o texto nos diz “homem e mulher os criou”. E chegamos ao triste engano que afeta até mesmo este século.

Não são poucos da fé que usam esse verso para dar o significado exatamente contrário. Não enxergam que Deus criou duas pessoas, e uma era diferente da outra. Veem, antes, duas categorias a que todos devem se enquadrar. Como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. E o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo binário, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

*

Somente neste século XXI, para melhor entender as identidades de gênero e a sexualidade humana, o modelo binário é incrementado. Assim, a segundo a sua identidade de gênero, uma pessoa pode ser homem ou mulher. Segundo sua preferência sexual, pode ser gay ou hétero. E, de acordo com o alinhamento de sua identidade de gênero ao sexo biológico, pode ser cis ou trans. Combinando as três variáveis no modelo, existem 8 possibilidades.

Uma pessoa toma conhecimento desse modelo. Vamos chamá-la, hipoteticamente, de Sônia. Por ser uma pessoas aberta ao novo, Sônia acha o modelo bastante interessante e esclarecedor. Ela vai, então, apresentá-lo a um amigo, a quem atribuiremos o nome de Tarcísio.

Tarcísio, diferentemente de Sônia, é avesso ao novo. Ele logo entende que, no modelo que Sônia lhe apresenta, seu papel é de homem cis hétero. Isso lhe parece bom, soando mesmo como um título nobiliárquico. Mas, quando Sônia explica as inovações que o modelo comporta, ele recua.

– Quer dizer que alguém com cromossomos XX pode ser um homem trans gay e se relacionar com um homem cis gay?

– Sim!

– Quer dizer que um homem cis pode namorar uma mulher trans, e ambos serem héteros?

– Sim!

– Iiiiiih... Pra mim, isso ficou muito difícil de entender.

Sônia sabe que Tarcísio é pós-graduado em Finanças nos EUA, e que sabe muito bem explicar a diferença entre posição comprada numa opção de venda e posição vendida numa opção de compra. Como não poderia entender um modelo simples com três variáveis binárias? Ela tenta novamente:

– Não é difícil não. Espere, vou fazer um diagrama de árvore para você ver.

– Ah, não, por favor, não precisa. Eu não dou conta disso não – diz Tarcísio, por fim, fechando-se para qualquer apelo.

Certamente, pensa Sônia, não é por falta de inteligência que Tarcísio não entende o modelo. Talvez seja por acreditar, erradamente, que a afirmação da identidade do outro ameaça a sua. Talvez seja porque está muito confortável no modelo mais simples, tendo tido sucesso em adequar-se a ele, e sentindo vertigem diante de uma mudança no status quo. Ou, vai saber, talvez tenha mesmo cansado muito a mente no seu MBA no exterior.

*

Assim, como o modelo que empolgou Sônia e assustou Tarcísio, a sigla LGBT procura incluir, generosamente, as diferenças e minorias sexuais e de gênero. Busca contemplar, ainda, os que não se enquadram na classificação binária, como bissexuais. Conforme mais especificidades sejam integradas à bandeira da diversidade, a sigla pode aumentar, incluindo um “I” (intersexuais), um “Q” (queer), um “A” (assexuais), um + (quem mais chegar)...

A expressão dessas identidades ajuda, e muito, os que nelas encontram lugar. Ajuda-os a cultivar o amor próprio, compreendendo-se como parte do mundo e não como algo estranho a ele. Mas, talvez acima de tudo, esses modelos e siglas servem aos Tarcísios da vida. A eles, é oferecida a oportunidade de entender um pouco melhor a diferença entre si e o outro. De perceber que o outro não é uma ameaça a si. E, assim, superado o medo, ter o caminho livre de desculpas para respeitar o diferente.

*

Mas e se nós, como Sônia, somos abertos ao novo e conseguimos identificar cada letra de tão cara sopa? Bom, nesse caso, estamos de parabéns, mas não livres de risco. Risco de, como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. De, tornando-nos ortodoxos, acharmos que a realidade deve refletir o modelo, e não o contrário. De, como um fundamentalista diz que “homem é homem e mulher é mulher”, acharmos que “L é L, G é G, B é B, T é T...”. E assim, o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo complexo, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

Nosso pensar pequeno a tudo quer dar fim, definir, enquadrar em categorias de que possamos dar conta. E, ao menos nisso, Tarcísio está certo. A gente não dá conta. E não precisamos dar conta. Porque se, como dito acima, o entendimento pode ajudar muitos a respeitar o diferente, muito melhor do que isso é respeitar e amar independente de entendimento. Aliás, quando entendemos que não entendemos ficamos um pouco mais próximos de entender. No limite, a diversidade é tão vasta quanto a própria humanidade. Ela é infinita, como infinito é o autor da criação. E podemos deixá-la fluir, como um rio que não precisa ser controlado.

Nenhum comentário: