Poucos notam, mas há dois relatos da criação na Bíblia, no
início do livro de Gênese. A narrativa mais antiga e conhecida está em Gênesis
2 (4 a 24) . Antes dele, em Gênesis 1 e 2 (1 a 3), encontramos o
relato que foi escrito depois. É um poema sobre a criação do mundo, escrito
durante o exílio dos judeus na Babilônia. Nesse relato, o homem não foi criado
antes da mulher. Não há costela de Adão e nem domínio de um gênero sobre outro.
Ali, o texto simplesmente diz:
“Criou Deus, pois, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o
criou, homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27).
Enquanto o primeiro relato (que, na Bíblia, vem em segundo
lugar) foi registrado em papel no auge da glória do reino de Salomão, este
segundo, o poema, foi escrito durante a escravidão. Ali, nivelados pela
pobreza, os homens despiram-se das lentes de riqueza e poder. Essas lentes que
distorcem nosso olhar, fazendo com que creiamos na ilusão de hierarquia entre
uns e outros. Ali, a dominação a todos atingia. Ali, os do povo judeu, homens
ou mulheres, eram todos iguais.
Mas, nesse poema da criação, também não eram iguais. Eram
diferentes. “Homem e mulher os criou”. Aí há diversidade. Duas pessoas foram
criadas, e uma era diferente da outra. Não havia hierarquia entre elas, mas não
eram iguais.
Aqui cabe um esclarecimento semântico: precisamos saber a
diferença entre igualdade e igualdade. Sim, são dois conceitos completamente
diferentes! Podemos ser iguais quando não há diferença entre nós, mas também
podemos ser iguais quando, com toda a nossa diferença, não há hierarquia entre
nós. Quando pregamos a igualdade entre as pessoas, não estamos querendo que
elas sejam todas iguais. Em primeiro lugar, porque seria, de fato, impossível.
E, em segundo, porque a grande riqueza humana é a sua diversidade. Quando
louvamos a igualdade entre as pessoas, não desejamos que todas sejam iguais, o
que seria uma causa perdida e burra. Queremos que não haja hierarquia entre
elas.
Essa diferença é óbvia, se explicada. Mas, antes disso, pode causar
muita confusão. A propaganda a favor da hierarquia social se utiliza
fartamente, e com muito sucesso, dessa confusão conceitual. A igualdade entre
as pessoas, dizem, jamais irá acontecer, pois elas são muito diferentes entre
si. Atrás desse argumento, ajuntam um sem número de seguidores, porque a
diferença entre as pessoas é, de fato, mais do que desejável. Mas disso não
decorre que deva haver hierarquia entre elas: que uma possa tenha poder para dominar
a outra, para escravizá-la, para submetê-la à própria vontade.
Dito isso, podemos voltar ao poema e entender que Deus os criou
como iguais. Mas, atenção: homem e mulher os criou. São duas pessoas, têm
identidades distintas. E, porque são diferentes, o texto nos diz “homem e
mulher os criou”. E chegamos ao triste engano que afeta até mesmo este século.
Não são poucos da fé que usam esse verso para dar o significado
exatamente contrário. Não enxergam que Deus criou duas pessoas, e uma era
diferente da outra. Veem, antes, duas categorias a que todos devem se
enquadrar. Como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. E o
que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que
deveria enriquecer limita. E o nosso modelo binário, feito para ajudar a entender
a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se
uma prisão.
*
Somente neste século XXI, para melhor entender as identidades de
gênero e a sexualidade humana, o modelo binário é incrementado. Assim, a
segundo a sua identidade de gênero, uma pessoa pode ser homem ou mulher.
Segundo sua preferência sexual, pode ser gay ou hétero. E, de acordo com o
alinhamento de sua identidade de gênero ao sexo biológico, pode ser cis ou
trans. Combinando as três variáveis no modelo, existem 8 possibilidades.
Uma pessoa toma conhecimento desse modelo. Vamos chamá-la,
hipoteticamente, de Sônia. Por ser uma pessoas aberta ao novo, Sônia acha o
modelo bastante interessante e esclarecedor. Ela vai, então, apresentá-lo a um
amigo, a quem atribuiremos o nome de Tarcísio.
Tarcísio, diferentemente de Sônia, é avesso ao novo. Ele logo
entende que, no modelo que Sônia lhe apresenta, seu papel é de homem cis hétero.
Isso lhe parece bom, soando mesmo como um título nobiliárquico. Mas, quando
Sônia explica as inovações que o modelo comporta, ele recua.
– Quer dizer que alguém com cromossomos XX pode ser um homem
trans gay e se relacionar com um homem cis gay?
– Sim!
– Quer dizer que um homem cis pode namorar uma mulher trans, e ambos
serem héteros?
– Sim!
– Iiiiiih... Pra mim, isso ficou muito difícil de entender.
Sônia sabe que Tarcísio é pós-graduado em Finanças nos EUA, e
que sabe muito bem explicar a diferença entre posição comprada numa opção de
venda e posição vendida numa opção de compra. Como não poderia entender um
modelo simples com três variáveis binárias? Ela tenta novamente:
– Não é difícil não. Espere, vou fazer um diagrama de árvore
para você ver.
– Ah, não, por favor, não precisa. Eu não dou conta disso não –
diz Tarcísio, por fim, fechando-se para qualquer apelo.
Certamente, pensa Sônia, não é por falta de inteligência que
Tarcísio não entende o modelo. Talvez seja por acreditar, erradamente, que a
afirmação da identidade do outro ameaça a sua. Talvez seja porque está muito
confortável no modelo mais simples, tendo tido sucesso em adequar-se a ele, e
sentindo vertigem diante de uma mudança no status quo. Ou, vai saber, talvez
tenha mesmo cansado muito a mente no seu MBA no exterior.
*
Assim, como o modelo que empolgou Sônia e assustou Tarcísio, a
sigla LGBT procura incluir, generosamente, as diferenças e minorias sexuais e de
gênero. Busca contemplar, ainda, os que não se enquadram na classificação
binária, como bissexuais. Conforme mais especificidades sejam integradas à bandeira
da diversidade, a sigla pode aumentar, incluindo um “I” (intersexuais), um “Q”
(queer), um “A” (assexuais), um + (quem
mais chegar)...
A expressão dessas identidades ajuda, e muito, os que nelas
encontram lugar. Ajuda-os a cultivar o amor próprio, compreendendo-se como
parte do mundo e não como algo estranho a ele. Mas, talvez acima de tudo, esses
modelos e siglas servem aos Tarcísios da vida. A eles, é oferecida a
oportunidade de entender um pouco melhor a diferença entre si e o outro. De perceber
que o outro não é uma ameaça a si. E, assim, superado o medo, ter o caminho
livre de desculpas para respeitar o diferente.
*
Mas e se nós, como Sônia, somos abertos ao novo e conseguimos
identificar cada letra de tão cara sopa? Bom, nesse caso, estamos de parabéns,
mas não livres de risco. Risco de, como é nossa tendência, transformamos a
identidade em rótulo. De, tornando-nos ortodoxos, acharmos que a realidade deve
refletir o modelo, e não o contrário. De, como um fundamentalista diz que “homem
é homem e mulher é mulher”, acharmos que “L é L, G é G, B é B, T é T...”. E
assim, o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O
que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo complexo, feito para ajudar a
entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade.
Torna-se uma prisão.
Nosso pensar pequeno a tudo quer dar fim, definir,
enquadrar em categorias de que possamos dar conta. E, ao menos nisso, Tarcísio
está certo. A gente não dá conta. E não precisamos dar conta. Porque se, como
dito acima, o entendimento pode ajudar muitos a respeitar o diferente, muito
melhor do que isso é respeitar e amar independente de entendimento. Aliás, quando
entendemos que não entendemos ficamos um pouco mais próximos de entender. No
limite, a diversidade é tão vasta quanto a própria humanidade. Ela é infinita,
como infinito é o autor da criação. E podemos deixá-la fluir, como um rio que
não precisa ser controlado.
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