“Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é um clássico dos mais sofisticados da MPB. A gravação original, de 1975, com as vozes de Milton e Beto Guedes e músicos como Wagner Tiso e Toninho Horta, é hipnotizante.
“Fé Cega, Faca Amolada” é também uma provocação. Em seu uso
geral, expressão que dá nome à canção é a síntese mais direta do potencial
destrutivo da fé e da religião. Será disso que fala a letra?
“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
Um brilho cego de paixão e fé, faca amolada
Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada”
Surpresa. O eu lírico que a tal fé cega não parece ser um fanático
ou obstinado, mas alguém cheio de alegria, leveza e um entusiasmo que contagia.
E esta canção é apenas um dos exemplos da abordagem da fé na obra de Milton
Nascimento e de seus colaboradores.
A fé, nas letras de Milton, é muito diferente daquela fé que
mata e morre a pretexto de recompensa futura. Ela não abdica da vida, nem se
contrapõe a ela. Pelo contrário, é fé na vida, alegria e combustível para viver
o tempo presente. A faca não é arma, é ferramenta para viver e resistir, apesar
mesmo daqueles que empunham as armas.
Outro exemplo é “Maria, Maria” (1978), de Nascimento e
Fernando Brant.
“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta
Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida
Os versos acima são tão compatíveis com a missa quanto com a
praça. A fé segundo Milton não é ópio, não aliena o povo, antes, religa-o a si
mesmo. Ela não se opõe à cultura. Pelo contrário, é manifestação cultural que
demonstra a força do povo e desperta a fé do próprio povo em si mesmo.
Em um tempo e lugar movidos pela crença assassina, é difícil
enxergar a dimensão positiva da fé. Pela via da fé, a pilantragem soube cativar
o povo como ninguém. Um exército de crentes foi mobilizado na defesa cega de
charlatães, aproveitadores e mercadores da própria fé.
Porém, essa mesma pilantragem pseudopiedosa está matando o
povo que nela creu. Vai cair a ficha: estamos, afinal, falando de homens. As
consequências políticas e espirituais dessa decepção, que não tarda e é do
tamanho do Brasil, são imprevisíveis.
Negará o povo crente a fé que é constitutiva de si mesmo? Ou
mudará a direção dessa faca amolada, tornando-a de arma a ferramenta do amor ao
próximo e da ajuda mútua, tão poderosamente revolucionária quanto o ensinou o
próprio Cristo? Não se pode afirmar. Mas podemos continuar cantando com Milton:
Tenha fé no nosso povo que ele resiste
Tenha fé no nosso povo que ele insiste
E acordar novo, forte, alegre, cheio de paixão
Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova
Viver semeando a liberdade em cada coração
Tenha fé no nosso povo que ele acorda
Tenha fé no nosso povo que ele assusta
(“Credo”, Milton Nascimento e Fernando Brant, 1978)