terça-feira, 12 de outubro de 2021

SAL DA TERRA

“Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é um clássico dos mais sofisticados da MPB. A gravação original, de 1975, com as vozes de Milton e Beto Guedes e músicos como Wagner Tiso e Toninho Horta, é hipnotizante.

“Fé Cega, Faca Amolada” é também uma provocação. Em seu uso geral, expressão que dá nome à canção é a síntese mais direta do potencial destrutivo da fé e da religião. Será disso que fala a letra?

“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
Um brilho cego de paixão e fé, faca amolada

Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada

Surpresa. O eu lírico que a tal fé cega não parece ser um fanático ou obstinado, mas alguém cheio de alegria, leveza e um entusiasmo que contagia. E esta canção é apenas um dos exemplos da abordagem da fé na obra de Milton Nascimento e de seus colaboradores.

A fé, nas letras de Milton, é muito diferente daquela fé que mata e morre a pretexto de recompensa futura. Ela não abdica da vida, nem se contrapõe a ela. Pelo contrário, é fé na vida, alegria e combustível para viver o tempo presente. A faca não é arma, é ferramenta para viver e resistir, apesar mesmo daqueles que empunham as armas.

Outro exemplo é “Maria, Maria” (1978), de Nascimento e Fernando Brant.

“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida

Os versos acima são tão compatíveis com a missa quanto com a praça. A fé segundo Milton não é ópio, não aliena o povo, antes, religa-o a si mesmo. Ela não se opõe à cultura. Pelo contrário, é manifestação cultural que demonstra a força do povo e desperta a fé do próprio povo em si mesmo.

Em um tempo e lugar movidos pela crença assassina, é difícil enxergar a dimensão positiva da fé. Pela via da fé, a pilantragem soube cativar o povo como ninguém. Um exército de crentes foi mobilizado na defesa cega de charlatães, aproveitadores e mercadores da própria fé.

Porém, essa mesma pilantragem pseudopiedosa está matando o povo que nela creu. Vai cair a ficha: estamos, afinal, falando de homens. As consequências políticas e espirituais dessa decepção, que não tarda e é do tamanho do Brasil, são imprevisíveis.

Negará o povo crente a fé que é constitutiva de si mesmo? Ou mudará a direção dessa faca amolada, tornando-a de arma a ferramenta do amor ao próximo e da ajuda mútua, tão poderosamente revolucionária quanto o ensinou o próprio Cristo? Não se pode afirmar. Mas podemos continuar cantando com Milton:

Tenha fé no nosso povo que ele resiste
Tenha fé no nosso povo que ele insiste
E acordar novo, forte, alegre, cheio de paixão

Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova
Viver semeando a liberdade em cada coração
Tenha fé no nosso povo que ele acorda
Tenha fé no nosso povo que ele assusta

(“Credo”, Milton Nascimento e Fernando Brant, 1978)

O CINEMA E A ESSÊNCIA DO FASCISMO

O que é o Fascismo de que tanto se fala? Para quem sabe pouco ou nada sobre o conceito, podemos defini-lo como a política do domínio pela força. Existiu um movimento específico, o fascismo italiano dos anos 20 a 40, que originou o termo. Mas ele passou a também ser utilizado para um fenômeno político maior, do qual o Fascismo Italiano foi a experiência original, e o Nazismo alemão, a experiência radical.

A partir de certo ponto, porém, generalizações se tornam problemáticas. Ao longo das décadas, grande parte da militância política usou a palavra “fascista” retoricamente para desqualificar quem quer que estivesse à direita de si. O resultado disso foi a banalização da palavra e, quando um fascismo de verdade voltou a ter força, o nome havia perdido a capacidade de advertir.

Conclusão: se, por um lado, o fascismo é muito mais que um movimento específico de um tempo e lugar na História, por outro, a generalização de seu uso não pode ser infinita. A própria definição acima proposta, de “política do domínio pela força” é uma boa explicação introdutória, mas gera novos questionamentos: o Império Romano e a Inquisição Espanhola eram fascistas? Quais os problemas do uso anacrônico do termo? Quais as consequências de juntar em uma mesma categoria nazifascismo e stalinismo? Quais as consequências de não fazê-lo?

Bom, parece que o segundo passo nessa discussão é limitar o fenômeno fascista a um contexto específico, mas não tão específico quanto à Itália e a Alemanha dos anos 1920 e 30. O contexto que dá origem e força ao fascismo é o da defesa do interesse da burguesia capitalista em períodos de crise econômica.

É claro que, para uma resposta mais consistente, teríamos de recorrer à imensa reflexão existente sobre o tema. Hannah Arendt seria referência inescapável. O dicionário político de Norberto Bobbio, também. O texto que mais me influenciou sobre o assunto “Os Fascismos”, de Francisco Carlos Teixeira da Silva, seria revisitado. Os manuais de História do Século XX na estante também poderiam ser úteis. Em mais de década que se passou desde que terminei o curso de História, houve a ascensão do cyber fascismo, e muitos novos trabalhos, como o de Jason Stanley, geraram repercussão. E estamos falando só do que me vêm à mente agora.

Isto aqui, no entanto, não se propõe a ser uma tese de mestrado. Quando muito, é um ensaio. Então, minhas fontes serão apenas os filmes que vi nesse período, e que me ensinaram a identificar alguns sintomas do pensamento e do discurso fascista.

1-      Autoridade da Força e Criminalização do Inimigo

Em “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (1970), de Elio Petri, o policial vivido por Jean Maria Volonté quer provar que pode cometer crimes impunemente. Sua tese é um dos pontos centrais do fascismo, a saber, que a autoridade se dá, não pelo respeito à lei, mas pelo exercício do poder. Quando a autoridade se dá unicamente pela força, adversários políticos se tornam criminosos e vice-versa.

2-      A Morte da Verdade

Reza a lenda que quando o cineasta Fritz Lang se recusou a servir o Terceiro Reich, alegando ser judeu, os nazistas teriam replicado: “não se preocupe com isso, nós dizemos quem é judeu e quem não é”. Para que criminosos e adversários políticos sejam simplificados em uma só categoria, é preciso alterar a realidade. Isso é característica fundamental, mas não exclusiva, do nazi-fascismo. Tanto que talvez o exemplo mais emblemático dessa prática no cinema seja o julgamento fictício em “A Confissão” (Costa-Gavras, 1970), filme passado na Tchecoslováquia de 1951, sob domínio soviético.

3-      Capataz da Burguesia

Mas, se fascismo e stalinismo compartilham muitos de seus pontos essenciais, o primeiro tem como especificidade seu papel na história do capitalismo. Na alegoria política “1900” (1976), de Bernardo Bertolucci, o cruel personagem de Donald Sutherland representa o fascismo: é o capataz das classes dominantes, que ganha seu poder arbitrário para defender a propriedade privada.

4-      A Máquina Decide por Mim

Numa cena do documentário “Noite e Neblina” (1956), de Alain Resnais, guardas do campo de concentração recém-liberto são mostrados em sequência. Todos repetem o mesmo mantra: “não sou o responsável”, como explicação para os horrores ali encontrados. Quando um sistema autoritário toma todas as decisões pelo indivíduo, ele não precisa se responsabilizar por nada. Esse é o prêmio dos que entregaram sua liberdade. Com ela, vai-se também seu senso crítico e sua humanidade. Viram engrenagens na produção industrial da morte.

5-      Ódio à Diferença

Em “O Conformista” (1970), de Bernardo Bertolucci, o personagem de Jean-Louis Trintignant é obcecado pela normalidade, por razões puramente subjetivas. Sua busca por “ser normal” encontra abrigo perfeito na negação da diferença, proposta pelo regime fascista de que se torna agente. Mas o ódio à diferença não nasce nos corações por imposição de um regime. Pelo contrário, é nesse ódio pré-existente que o fascismo encontra as bases para aumentar seu poder. Cria-se então uma relação de retro-aimentação crescente: o ódio alimenta o regime, que alimenta ódio, que alimenta o regime... No limite, dá-se o extermínio. Mas não é o extermínio que faz o fascista, é o fascista que faz o extermínio.

Compartilhadas essas reminiscências cinéfilas, fica o convite para um estudo mais aprofundado e acadêmico a quem se dispuser. E, para quem não se dispuser, reflexão suficiente para que tirem suas próprias conclusões.