quinta-feira, 12 de outubro de 2017

REFLEXÃO SOBRE EZEQUIEL 47

Ezequiel 47:1-12

1
Depois disto, o homem me fez voltar à entrada do templo, e eis que saíam águas de debaixo do limiar do templo, para o oriente; porque a face da casa dava para o oriente, e as águas vinham de baixo, do lado direito da casa, do lado sul do altar.

2
Ele me levou pela porta do norte e me fez dar uma volta por fora, até à porta exterior, que olha para o oriente; e eis que corriam as águas ao lado direito.

3
Saiu aquele homem para o oriente, tendo na mão um cordel de medir; mediu mil côvados e me fez passa pelas águas, águas que me davam pelos tornozelos.

4
Mediu mais mil e me fez passar pelas águas, águas que me davam pelos joelhos. Mediu mais mil e me fez passar pelas águas, águas que me davam pelos lombos.

5
Mediu ainda outros mil, e era já um rio que eu não podia atravessar, porque as águas tinham crescido, águas que se deviam passar a nado, rio pelo qual não se podia passar.

6
E me disse: Viste isto, filho do homem? Então me levou e me tornou a trazer à margem do rio.

7
Tendo eu voltado, eis que à margem do rio havia grande abundância de árvores, de um e de outro lado.

8
Então, me disse: Estas águas saem para a região oriental, e descem à campina, e entram no mar Morto, cujas águas ficarão saudáveis.

9
Toda criatura vivente que vive em enxames viverá por onde quer que passe este rio, e haverá muitíssimo peixe, e, aonde chegarem estas águas, tornarão saudáveis as do mar, e tudo viverá por onde quer que passe este rio.

10
Junto a ele se acharão pescadores; desde En-Gedi até En-Eglaim haverá lugar para se estenderem redes; o seu peixe, segundo as suas espécies, será como o peixe do mar Grande, em multidão excessiva.

11
Mas os seus charcos e os seus pântanos não serão feitos saudáveis; serão deixados para o sal.

12
Junto ao rio, às ribanceiras, de um e de outro lado, nascerá toda sorte de árvore que dá fruto para se comer; não fenecerá a sua folha, nem faltará o seu fruto; nos seus meses, produzirá novos frutos, porque as suas águas saem do santuário; o seu fruto servirá de alimento, e a sua folha, de remédio.

A visão que Ezequiel nos apresenta ilustra a vida do que é nascido da água e do espírito, daquele que nasceu de novo e segue nascendo do alto. O significado é o que Nicodemos deveria conhecer, por ser mestre em Israel. Ele sabia as escrituras de cor, mas, para entender sua essência, era necessário nascer de novo.

O templo do Espírito Santo é o corpo daquele que crê. Dele saem rios de águas vivas. As águas que saem de todos os lados do templo batem nos calcanhares, depois nos joelhos e nos lombos do profeta, até que se torne um rio que ele não poderia atravessar. O texto nos ensina o desapego do controle. Quando queremos controlar as águas que sobem, deixamos-na nos calcanhares, para conseguirmos dar conta dela, adequá-las aos nossos planos e ilusão de controle. Mas o controle não é nosso, é de Deus. Nós somos parte, e nossa capacidade de apreender a realidade é parcial. Deus é o todo e é onisciente. O plano de Deus é perfeito, o nosso é imperfeito. Mesmo que as coisas não sejam como gostaríamos, podemos descansar, pois ele está no controle. Podemos relaxar e nadar.

É o Espírito Santo que ensina a nadar. E nos ensina enquanto estamos nadando, não é preciso aprender primeiro para nadar depois. Não se preocupe com o que haveis de dizer, pois é o Espírito Santo que coloca a palavra na sua boca. É o Espírito Santo que guia o crente, assim como o homem conduz Ezequiel na visão, o leva e o torna a trazer à margem do rio. Aquele que é nascido do espírito é como o vento, que sopra onde quer, mas não sabemos de onde vem, nem para onde vai.

As criaturas que vivem em enxames viverão por onde quer que passe o rio. Os pescadores a ele se chegarão e encontrarão ali abundância de alimento. O rio está em você e você está no rio. Você é o rio. Podemos falar a multidões e estádios cheios, se for da vontade de Deus. Se Deus quiser que preguemos nos confins do mundo, nós iremos, assim como Jonas pregou em Nínive, querendo ou não.

Mas não precisamos planejar coisas grandiosas, muito menos condicionar a santidade à construção de torres de babel que não conseguimos terminar. Não devemos pensar “eu não posso”, mas nem tampouco cair no “eu tenho que”. Se você não está nos “confins do mundo”, é porque essa não é a vontade de Deus para você. Na maior parte das vezes, o “falar às multidões” é sem perceber, pois não estamos no controle. Se o plano de Deus é que falemos a uma só pessoa, ali teremos deixado a semente que atingirá multidões, no devido tempo, o tempo de Deus. Quando o amor de Deus está em nós, até o nosso olhar evangeliza. Possivelmente, não ficaremos nem sabendo do bem que fazemos neste mundo. Mas, por vezes, a generosidade de Deus nos permite a inesperada dádiva de ver o crescer fruto da árvore cuja semente nós deixamos pelo caminho.

O versículo 12 nos remete ao Salmo 1, que descreve a vida do justo, a árvore plantada junto a águas correntes, cuja folha não fenece e, no seu tempo, dá o seu fruto. Cada um tem seu tempo, que é o tempo de Deus, e não o nosso. Não há hierarquia: o que começa a trabalhar às seis não é melhor que o que começa às onze horas, pois o tempo de cada um é parte do plano de Deus. O tempo de Deus é o tempo Kayrós, o tempo dos homens é o cronos. Querer submeter ao cronos as coisas espirituais gera ansiedade. A ansiedade perturba o espírito e adoece o corpo. E o nosso corpo é o templo do Espírito Santo, de que devemos cuidar bem.

Por fim, o versículo 11 nos lembra que mesmo justo tem seus charcos e seus pântanos. O charco de um crente pode ser água saudável de outro, e vice-versa. Não há relação linear entre os charcos, não há caminhada padrão. O que é nascido do espírito é imperfeito e perfeito em sua imperfeição. É “já agora, ainda não”. Já agora rio, ainda não sem charcos. Já agora perfeito, pois parte do plano de Deus, mas ainda não acabado. Sonha o infinito, mas é limitado pela matéria. Querer burlar os limites da matéria não é agradar a Deus, é querer ser Deus. É se submeter a sacrifícios desnecessários, como se o de Jesus já não fosse o bastante. É buscar uma santidade inalcançável, pesada como as tábuas da lei, como as talhas de purificação, como a velha aliança. Ali, a alegria acabou.

Não precisamos buscar fora de nós uma santidade inalcançável. O jugo é suave, o fardo é leve. Se buscamos a Deus fora de nós mesmos, estamos procurando o milagre, e não a Jesus. É necessário nascermos de novo. Não encontraremos Deus fora de nós mesmos, ele está no nosso coração. Essa é a nova aliança, leve plena e de alegria, como uma festa em que o vinho nunca acaba.

O justo erra, pois é humano. E ser humano não é pecado, é vontade de Deus. Pede orientação a Deus pelo espírito, aprende com seus erros e segue caminhando para errar novos erros, aprender coisas novas e nascer de novo todos os dias. Essa é a vida eterna de sentido, que começa aqui; esse é o governo de Deus, que está no meio de nós.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

A HISTÓRIA DE CRISTIANO

Muitos anos atrás, Cristiano andava pela rua, no seu caminho de um ponto A a um ponto B. Um trajeto normal e rotineiro, como fazem as pessoas normais. Com seus dezesseis anos, Cristiano frequentemente se perguntava o que fazia dele uma pessoa boa, pois cumprir apenas suas obrigações do dia-a-dia não parecia o bastante.

No caminho, havia uma senhora sentada. Negra, pobre, com dificuldade de locomoção. Digna de toda solidariedade social. Quando Cristiano passou, ela o chamou e pediu um copo d’água, para tomar o seu remédio. Ele entrou em um bar ao lado e comprou uma garrafinha de água mineral. Entregou a água à senhora e seguiu seu caminho. Mas sentiu algo muito bom. Foi um ato de amor simples e completo. Para ele não era nada, mas para ela era tudo. Naquele momento, um milagre aconteceu.

Passados uns dois anos, esses atos pontuais de “bondade” foram aumentando na vida de Cristiano, em especial quando ele passou por um longo período ocioso, aguardando o início das aulas da faculdade. Ele dava cada vez mais esmolas, primeiramente quando lhe pediam, depois, por iniciativa própria. Por cerca de um ano, ia todos os domingos ao entorno de uma igreja, para dar uma nota de cinco a cada pedinte que encontrasse por ali. Não frequentava nenhum culto ou missa na época, sendo essa a sua forma de cumprir o terceiro mandamento que lhe fora ensinado nas aulas de religião.

Do ponto de vista antropológico, foi maravilhoso. Conheceu e conversou com pessoas de origens diversas, coisa que a normalidade não lhe permitiria. Mas, como fazia sem perceber com várias coisas da vida, ao ver que algo era bom, ele transformou em um sistema, um hábito, um condicionamento, uma mania, um vício. Então, a espontaneidade do ato inicial se perdeu.

Depois de um tempo, como um viciado em drogas, ele não dava mais esmolas pelo benefício que poderia gerar, mas para evitar a dor de negar. Era dolorosa demais a ideia de que deixaria alguém passar fome.

Claramente, esse estilo de vida era insustentável. Custoso demais, financeiramente, socialmente. Cristiano prosseguiu enquanto pôde, mas chegou um momento em que não deu mais. A alguns de seus “clientes” mais recorrentes, explicou que não daria mais para seguir com aquilo e, para sua surpresa, eles entenderam.

Porém, havia naquele momento um casal de moradores de rua que habitava suas preocupações de forma especial. Eram João e Lenita. Ele sempre lhes levava os sanduíches que seu pai fazia para levar para a faculdade (já quase abandonada, a esta altura).

Quando o pai foi internado com dengue, Cristiano comunicou ao casal que precisaria acompanhá-lo no hospital e que, portanto, não poderia ajudá-los por um tempo. Eles compreenderam.

Mas a sua própria preocupação com eles permanecia e, algum tempo depois do pai voltar para casa, Cristiano voltou a procurar João e Lenita para oferecer sua “ajuda”. A culpa o fez voltar, mas ele já sabia que não poderia prosseguir muito tempo com aquilo. Se não tinha condição de ter um filho, como poderia se responsabilizar pela alimentação de dois adultos? Quando finalmente avisou-os de que teria de parar de ajudá-los, eles não receberam tão bem quanto da primeira vez. Naturalmente, ao se obrigar, Cristiano sinalizara uma obrigação.

A culpa é bicho tinhoso, difícil de domar, e ele passou a se culpar por acostumá-los mal, por ter dado a entender que poderia ajudá-los, quando não poderia. Evitou encontrá-los, chegando mesmo a fugir. Com medo, não do casal de mendigos, que não o ameaçava fisicamente, mas de encarar a própria imperfeição.

Algum tempo depois, isso passou, pois tudo passa. João já não se via mais. Tinha família fora do Rio, devia ter voltado para lá. Lenita ainda permanecia pela rua. Possivelmente, ele supunha, não pudera ir com João, por racismo da família dele. Cristiano a via de longe pelo caminho, em situação cada vez mais precária. Não podia mais fazer nada por ela.

Mas culpa é realmente bicho difícil de ser domado. Passada a culpa, o jovem criou uma culpa por não sentir culpa. Quando não viu mais Lenita, pensou que ela tinha morrido de fome. Aquele era seu crime hediondo: a vida que cativou e depois abandonou à morte. Era seu aborto secreto, a lembrança de que todo homem na multidão carrega um pecado de morte nas profundezas da consciência. Isso permaneceu enterrado em uma cova profunda da sua mente por muitos anos. Mas um dia teve de vir à tona, pois nada há escondido que não venha a ser descoberto.

Passados quinze anos, Cristiano continuava a reproduzir seu comportamento compulsivo nas áreas mais simples da vida. Ao ver que algo era bom, ele transformava em um sistema, um hábito, um condicionamento, uma mania, um vício. Criava rotinas para trabalhar, estudar, comer, divertir-se,  relacionar-se, e se obrigava a cumpri-las. Orgulhava-se de ter se tornado um homem disciplinado, cuja mente era capaz de vencer o corpo.

Mas, como ocorrera quinze anos antes, seu corpo reclamou. Não aguentava mais ser chicoteado. Seu cérebro fez greve, seu sistema digestivo recusou comida. Incapaz de cumprir meus múltiplos planejamentos, Cristiano negociou com seu corpo e descansou. Quando refletiu e lembrou que ninguém ia morrer se ele não conseguisse cumprir os seus sistemas complexos para fazer coisas simples, ele descansou. Mas veio junto um vazio e ondas de depressão.

Sem perceber, sentia-se culpado por ser limitado. Por ser humano. Culpado por não zelar por seus altares sagrados, por não cumprir os mandamentos gravados na pedra. E, se pensava a respeito e descartava a culpa, vinha a velha culpa por não sentir culpa. Ele não tinha mais escolha, havia chegado finalmente a hora de exumar seu cadáver.

Cristiano escavou aquela tão bem guardada cova secreta, e qual foi sua surpresa quando não achou nenhum corpo ali. E, sem corpo, era impossível para o feroz promotor comprovar o crime de que se acusava. De fato, ele não sabia se Lenita morrera. Se morreu, não sabia se havia sido de fome. E se morreu de fome, não era culpa dele. Ele não era causador da fome do seu próximo, e nada que fizesse individualmente remediaria essa fome.

Sim, havia uma fração de responsabilidade, pois cada membro de uma sociedade é corresponsável por fazer dela, a cada dia, um lugar melhor, em que todos possam viver em paz e sem fome. Mas esse trabalho de formiguinha só dá fruto no longo prazo. No tempo amplo, aquele que não cabe em nossas vidas individuais. E, para ajudarmos a fazer um mundo melhor, precisamos primeiro ser pessoas melhores. E, para sermos pessoas melhores, é preciso cuidar do nosso corpo, da nossa saúde física e mental. É preciso respeitar nossos limites.

Antes, era difícil para Cristiano enxergar isso, pois essa constatação parecia fazer dele alguém egoísta, reacionário ou desprezivelmente “normal”. Ele não era, de fato, normal, pois a norma, assim como o planejamento, é uma apenas ferramenta, não define ninguém. A “normalimade” como critério para definir pessoas é apenas mais um desses falsos ídolos, para quem fazemos pesados altares.

Cristiano havia sido sábio ao rejeitar a normalidade. Mas não havia sido nada sábio ao rejeitar a humanidade. Ele era humano e, como tal, limitado. Querer burlar a limitação da realidade material é querer fazer o mundo à própria imagem e semelhança. Não é agradar a Deus, é querer ser Deus.

Ser humano não é pecado, é vontade de Deus. Ser humano é ter, já agora, em si, o sopro da criação, a capacidade de sonhar o infinito. Mas, ainda não, a possibilidade de realizar o sonho além dos limites da matéria. É não ser peça perfeita, acabada. É errar para aprender com o erro. Ser humano é estar vivo dentro do corpo, um companheiro de jornada que devemos tratar bem, mas que por vezes maltratamos em nome de uma falsa, arrogante e inalcançável santidade. Nessa busca insana e equivocada, sacralizamos o que não é sagrado, criamos altares para nossos falsos ídolos, construímos as megalomaníacas torres de Babel que não conseguimos terminar.

Lenita e João cruzaram o caminho de Cristiano quinze anos atrás. Ele os ajudou enquanto pôde e, quando não pôde, não os ajudou mais. Seus sanduíches os alimentaram por um tempo, e isso os ajudou a seguir seus caminhos. O que foi dado foi recebido, e o que foi recebido foi dado. A barata que subiu nas costas de Cristiano quando ele acompanhava seu pai no hospital não foi um castigo por ter abandonado aquele casal. E ele não mentiu quando disse para Lenita que eles eram seus grandes amigos e que ele nunca os esqueceria. Não havia culpa, nem dívida. Não havia crime algum.

Cristiano demorou muitos anos para amadurecer essa conclusão. E, diga-se, ela não veio sem uma boa análise.

Epílogo

No mesmo dia em que a revelação se deu, Cristiano voltava para casa, sabendo que dormiria melhor. Chovia, a noite era fria. Na sua frente, andavam dois jovens. Negros, magros, mal agasalhados, tremendo. Pessoas que disparam o nosso alarme de tomar cuidado com a carteira. Pessoas dignas de toda solidariedade social, que não merecem uma vida pior que a de Cristiano. Pessoas por quem a empatia motiva a continuar tentando melhorar o quadro social, um pouquinho a cada dia.

Cristiano passou por eles, seguindo seu caminho, de um ponto A a um ponto B, como fazem os seres humanos. Em algum momento, ouviu um ruído atrás de si, algo como “... prestes a fazer uma loucura”. Logo depois, um dos jovens aparelhou com Cristiano, bem ao lado, no mesmo ritmo. E pôs-se a falar:

– Por favor, não é dinheiro não. Pode me ajudar a comprar um leite para minha filha?

– Desculpe, não posso.

– É verdade. Se quiser, vem comigo, que eu te mostro ela.

– Não posso, desculpe.

– Se quiser a gente entra na farmácia aqui do lado, você compra comigo.

Cristiano respondia automaticamente, “não posso” como quem está condicionado a não dar esmolas. Mas o rapaz continuava insistindo. Até que Cristiano parou, olhou em seus olhos e disse, respeitosamente, com firmeza e sinceridade:

– Eu não posso. Mesmo. Valeu.

– Valeu.

O jovem então desemparelhou. Cristiano entrou em seu prédio calmamente, sem saber se o rapaz ainda o observava. Mas ele sabia que o pedinte não o seguiria. Sabia que Deus iria guiá-lo e cuidar dele em seus caminhos, transformando cada experiência em algo que bom para sua jornada. Incluindo aquele seu encontro. Incluindo o seu “não posso”. Pois Ele cuida de cada uma das infinitas almas lá fora, e cada uma delas tem sua própria luta, sua própria caminhada. Às vezes nossos caminhos se encontram, e nos ajudamos na medida em que podemos.


Enquanto orava pra que aquele seu breve encontro pudesse, de alguma forma que ele nunca saberia, resultar em algo de bom para aquele rapaz, Cristiano percebeu o quanto havia resultado em algo de bom para si. Para o jovem pedinte, poderia não ter sido nada, mas para Cristiano, foi tudo. Naquele momento, um milagre aconteceu.