Muitos anos atrás, Cristiano
andava pela rua, no seu caminho de um ponto A a um ponto B. Um trajeto normal e
rotineiro, como fazem as pessoas normais. Com seus dezesseis anos, Cristiano frequentemente se perguntava o que fazia dele uma pessoa boa, pois
cumprir apenas suas obrigações do dia-a-dia não parecia o bastante.
No caminho, havia uma senhora
sentada. Negra, pobre, com dificuldade de locomoção. Digna de toda
solidariedade social. Quando Cristiano passou, ela o chamou e pediu um copo
d’água, para tomar o seu remédio. Ele entrou em um bar ao lado e comprou uma
garrafinha de água mineral. Entregou a água à senhora e seguiu seu caminho. Mas
sentiu algo muito bom. Foi um ato de amor simples e completo. Para ele não era
nada, mas para ela era tudo. Naquele momento, um milagre aconteceu.
Passados uns dois anos, esses
atos pontuais de “bondade” foram aumentando na vida de Cristiano, em especial
quando ele passou por um longo período ocioso, aguardando o início das aulas da
faculdade. Ele dava cada vez mais esmolas, primeiramente quando lhe pediam,
depois, por iniciativa própria. Por cerca de um ano, ia todos os domingos ao
entorno de uma igreja, para dar uma nota de cinco a cada pedinte que
encontrasse por ali. Não frequentava nenhum culto ou missa na época, sendo essa
a sua forma de cumprir o terceiro mandamento que lhe fora ensinado nas aulas de
religião.
Do ponto de vista antropológico,
foi maravilhoso. Conheceu e conversou com pessoas de origens diversas, coisa
que a normalidade não lhe permitiria. Mas, como fazia sem perceber com várias
coisas da vida, ao ver que algo era bom, ele transformou em um sistema, um
hábito, um condicionamento, uma mania, um vício. Então, a espontaneidade do ato
inicial se perdeu.
Depois de um tempo, como um
viciado em drogas, ele não dava mais esmolas pelo benefício que poderia gerar,
mas para evitar a dor de negar. Era dolorosa demais a ideia de que deixaria
alguém passar fome.
Claramente, esse estilo de
vida era insustentável. Custoso demais, financeiramente, socialmente. Cristiano
prosseguiu enquanto pôde, mas chegou um momento em que não deu mais. A alguns
de seus “clientes” mais recorrentes, explicou que não daria mais para seguir
com aquilo e, para sua surpresa, eles entenderam.
Porém, havia naquele momento
um casal de moradores de rua que habitava suas preocupações de forma especial.
Eram João e Lenita. Ele sempre lhes levava os sanduíches que seu pai fazia para
levar para a faculdade (já quase abandonada, a esta altura).
Quando o pai foi internado com
dengue, Cristiano comunicou ao casal que precisaria acompanhá-lo no hospital e
que, portanto, não poderia ajudá-los por um tempo. Eles compreenderam.
Mas a sua própria preocupação
com eles permanecia e, algum tempo depois do pai voltar para casa, Cristiano voltou
a procurar João e Lenita para oferecer sua “ajuda”. A culpa o fez voltar, mas ele
já sabia que não poderia prosseguir muito tempo com aquilo. Se não tinha
condição de ter um filho, como poderia se responsabilizar pela alimentação de
dois adultos? Quando finalmente avisou-os de que teria de parar de ajudá-los,
eles não receberam tão bem quanto da primeira vez. Naturalmente, ao se obrigar,
Cristiano sinalizara uma obrigação.
A culpa é bicho tinhoso,
difícil de domar, e ele passou a se culpar por acostumá-los mal, por ter dado a
entender que poderia ajudá-los, quando não poderia. Evitou encontrá-los,
chegando mesmo a fugir. Com medo, não do casal de mendigos, que não o ameaçava
fisicamente, mas de encarar a própria imperfeição.
Algum tempo depois, isso
passou, pois tudo passa. João já não se via mais. Tinha família fora do Rio, devia
ter voltado para lá. Lenita ainda permanecia pela rua. Possivelmente, ele
supunha, não pudera ir com João, por racismo da família dele. Cristiano a via
de longe pelo caminho, em situação cada vez mais precária. Não podia mais fazer
nada por ela.
Mas culpa é realmente bicho
difícil de ser domado. Passada a culpa, o jovem criou uma culpa por não sentir
culpa. Quando não viu mais Lenita, pensou que ela tinha morrido de fome. Aquele
era seu crime hediondo: a vida que cativou e depois abandonou à morte. Era seu
aborto secreto, a lembrança de que todo homem na multidão carrega um pecado de
morte nas profundezas da consciência. Isso permaneceu enterrado em uma cova
profunda da sua mente por muitos anos. Mas um dia teve de vir à tona, pois nada
há escondido que não venha a ser descoberto.
Passados quinze anos,
Cristiano continuava a reproduzir seu comportamento compulsivo nas áreas mais
simples da vida. Ao ver que algo era bom, ele transformava em um sistema, um
hábito, um condicionamento, uma mania, um vício. Criava rotinas para trabalhar,
estudar, comer, divertir-se, relacionar-se,
e se obrigava a cumpri-las. Orgulhava-se de ter se tornado um homem
disciplinado, cuja mente era capaz de vencer o corpo.
Mas, como ocorrera quinze
anos antes, seu corpo reclamou. Não aguentava mais ser chicoteado. Seu cérebro
fez greve, seu sistema digestivo recusou comida. Incapaz de cumprir meus
múltiplos planejamentos, Cristiano negociou com seu corpo e descansou. Quando
refletiu e lembrou que ninguém ia morrer se ele não conseguisse cumprir os seus
sistemas complexos para fazer coisas simples, ele descansou. Mas veio junto um
vazio e ondas de depressão.
Sem perceber, sentia-se
culpado por ser limitado. Por ser humano. Culpado por não zelar por seus
altares sagrados, por não cumprir os mandamentos gravados na pedra. E, se
pensava a respeito e descartava a culpa, vinha a velha culpa por não sentir
culpa. Ele não tinha mais escolha, havia chegado finalmente a hora de exumar seu
cadáver.
Cristiano escavou aquela tão
bem guardada cova secreta, e qual foi sua surpresa quando não achou nenhum
corpo ali. E, sem corpo, era impossível para o feroz promotor comprovar o crime
de que se acusava. De fato, ele não sabia se Lenita morrera. Se morreu, não
sabia se havia sido de fome. E se morreu de fome, não era culpa dele. Ele não
era causador da fome do seu próximo, e nada que fizesse individualmente
remediaria essa fome.
Sim, havia uma fração de
responsabilidade, pois cada membro de uma sociedade é corresponsável por fazer
dela, a cada dia, um lugar melhor, em que todos possam viver em paz e
sem fome. Mas esse trabalho de formiguinha só dá fruto no longo prazo. No tempo
amplo, aquele que não cabe em nossas vidas individuais. E, para ajudarmos a
fazer um mundo melhor, precisamos primeiro ser pessoas melhores. E, para sermos
pessoas melhores, é preciso cuidar do nosso corpo, da nossa saúde física e
mental. É preciso respeitar nossos limites.
Antes, era difícil para
Cristiano enxergar isso, pois essa constatação parecia fazer dele alguém
egoísta, reacionário ou desprezivelmente “normal”. Ele não era, de fato,
normal, pois a norma, assim como o planejamento, é uma apenas ferramenta, não
define ninguém. A “normalimade” como critério para definir pessoas é apenas
mais um desses falsos ídolos, para quem fazemos pesados altares.
Cristiano havia sido sábio ao
rejeitar a normalidade. Mas não havia sido nada sábio ao rejeitar a humanidade.
Ele era humano e, como tal, limitado. Querer burlar a limitação da realidade
material é querer fazer o mundo à própria imagem e semelhança. Não é agradar a
Deus, é querer ser Deus.
Ser humano não é pecado, é
vontade de Deus. Ser humano é ter, já agora, em si, o sopro da criação, a
capacidade de sonhar o infinito. Mas, ainda não, a possibilidade de realizar o
sonho além dos limites da matéria. É não ser peça perfeita, acabada. É errar
para aprender com o erro. Ser humano é estar vivo dentro do corpo, um
companheiro de jornada que devemos tratar bem, mas que por vezes maltratamos em
nome de uma falsa, arrogante e inalcançável santidade. Nessa busca insana e
equivocada, sacralizamos o que não é sagrado, criamos altares para nossos
falsos ídolos, construímos as megalomaníacas torres de Babel que não
conseguimos terminar.
Lenita e João cruzaram o caminho
de Cristiano quinze anos atrás. Ele os ajudou enquanto pôde e, quando não pôde,
não os ajudou mais. Seus sanduíches os alimentaram por um tempo, e isso os
ajudou a seguir seus caminhos. O que foi dado foi recebido, e o que foi
recebido foi dado. A barata que subiu nas costas de Cristiano quando ele
acompanhava seu pai no hospital não foi um castigo por ter abandonado aquele
casal. E ele não mentiu quando disse para Lenita que eles eram seus grandes
amigos e que ele nunca os esqueceria. Não havia culpa, nem dívida. Não havia
crime algum.
Cristiano demorou muitos anos
para amadurecer essa conclusão. E, diga-se, ela não veio sem uma boa análise.
Epílogo
No mesmo dia em que a
revelação se deu, Cristiano voltava para casa, sabendo que dormiria melhor. Chovia,
a noite era fria. Na sua frente, andavam dois jovens. Negros, magros, mal
agasalhados, tremendo. Pessoas que disparam o nosso alarme de tomar cuidado com
a carteira. Pessoas dignas de toda solidariedade social, que não merecem uma
vida pior que a de Cristiano. Pessoas por quem a empatia motiva a continuar
tentando melhorar o quadro social, um pouquinho a cada dia.
Cristiano passou por eles,
seguindo seu caminho, de um ponto A a um ponto B, como fazem os seres humanos.
Em algum momento, ouviu um ruído atrás de si, algo como “... prestes a fazer
uma loucura”. Logo depois, um dos jovens aparelhou com Cristiano, bem ao lado,
no mesmo ritmo. E pôs-se a falar:
– Por favor, não é dinheiro
não. Pode me ajudar a comprar um leite para minha filha?
– Desculpe, não posso.
– É verdade. Se quiser, vem
comigo, que eu te mostro ela.
– Não posso, desculpe.
– Se quiser a gente entra na
farmácia aqui do lado, você compra comigo.
Cristiano respondia
automaticamente, “não posso” como quem está condicionado a não dar esmolas. Mas
o rapaz continuava insistindo. Até que Cristiano parou, olhou em seus olhos e
disse, respeitosamente, com firmeza e sinceridade:
– Eu não posso. Mesmo. Valeu.
– Valeu.
O jovem então desemparelhou. Cristiano
entrou em seu prédio calmamente, sem saber se o rapaz ainda o observava. Mas
ele sabia que o pedinte não o seguiria. Sabia que Deus iria guiá-lo e cuidar
dele em seus caminhos, transformando cada experiência em algo que bom para sua
jornada. Incluindo aquele seu encontro. Incluindo o seu “não posso”. Pois Ele
cuida de cada uma das infinitas almas lá fora, e cada uma delas tem sua própria
luta, sua própria caminhada. Às vezes nossos caminhos se encontram, e nos
ajudamos na medida em que podemos.
Enquanto orava pra que aquele
seu breve encontro pudesse, de alguma forma que ele nunca saberia, resultar em
algo de bom para aquele rapaz, Cristiano percebeu o quanto havia resultado em
algo de bom para si. Para o jovem pedinte, poderia não ter sido nada, mas para
Cristiano, foi tudo. Naquele momento, um milagre aconteceu.
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