sexta-feira, 29 de março de 2024

DEUS TE AMA COMO VOCÊ É

 A carta de Paulo aos Romanos contém algumas das passagens mais belas e significativas do Novo Testamento. Muitas vezes, porém, é mais lembrada pelo seu primeiro capítulo, usado para defesa de uma fé excludente.

Nosso objetivo aqui, pois, é desfazer o nó de Romanos 1:18-32, trecho facilmente obscurecido pelo véu de nossos próprios preconceitos. Sob uma leitura rasa, a passagem pode afastar uma parcela significativa da população – os LGBT+ – do maravilhoso conteúdo integral da carta e, pior, fazê-los se sentir excluídos própria salvação em Cristo. E excluir da fé é justamente o oposto da mensagem da carta e das boas-novas de Cristo.

Na verdade, o maior objetivo do texto de Romanos é reconciliar cristãos judeus e cristãos gentios na mesma comunidade de fé. Paulo busca evidenciar os dois grupos como codependentes e copartícipes da mesma salvação de Deus em Jesus Cristo e, portanto, iguais. Para tanto, a apóstolo demonstra sua leitura da relação histórica com Deus, primeiro de gentios, depois (já no capítulo 2) de judeus, para chegar a esse ponto comum: o de ter pecado e, portanto, necessitar da salvação pela Graça, através da fé em Cristo. O “ter pecado”, no caso dos judeus, exemplifica-se pela desobediência e, no caso dos gentios, pela idolatria.

Assim, antes de tudo, é preciso entender que o ponto principal de Romanos 1:18-32 não é sequer a homossexualidade, mas a idolatria.

¹⁸ A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;

¹⁹ porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou.

²⁰ Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis;

²¹ porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.

²² Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos

²³ e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.

²⁴ Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si;

²⁵ pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!

Como os gentios não tinham a Lei e nem as escrituras hebraicas, sua relação com o Deus único crido pelos judeus é trabalhada a partir da ideia de revelação natural, ou seja, a percepção do Criador revelada na própria Criação. Paulo postula que os povos pagãos, ao cultuar falsos ídolos, por eles criados, desprezaram a Deus. Este, por isso, os entregou a práticas erradas e contrárias a si mesmos e à própria natureza.

Só aí, como exemplo dessas práticas que são consequência da idolatria, desejo e prática homossexuais são mencionados.

²⁶ Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza;

²⁷ semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro.

O que esse contexto revela? Ora, a prática homossexual que o apóstolo condena é unicamente aquela que é consequência da idolatria. Na verdade, nenhum pecado há na prática ou na condição, se não decorrer da idolatria. Se decorrerem da idolatria, a prática homossexual, a prática heterossexual e a prática não sexual serão igualmente condenáveis.

E o que caracteriza a prática descrita como infame no texto? É o “desonrar o próprio corpo”. Isso quer dizer que a prática pecaminosa é exclusivamente aquela que atenta contra a saúde física ou psíquica daquele que a pratica ou de outrem. O que atenta contra a natureza de si, causa dano a si. E é evidente que a natureza humana é tão diversa como a própria humanidade. Assim, de uma forma simplificada, só pode haver desvio da natureza na prática homossexual se o praticante for heterossexual. Para o homossexual, ao contrário, poderá ser a prática da heterossexualidade a atentar contra a própria natureza.

Prática x Condição?

Observe-se que a dicotomia prática x condição é hoje usada por cristãos que querem validar a literalidade do texto, mas sem se dizer homofóbicos, ou sem correr o risco de ser acusados de homofobia. Postulam, assim, que a condição homossexual é aceita na comunidade cristã, mas a prática, não.

Aceitam o homossexual desde que ele permaneça casto por toda a vida ou, pior, contrariando a própria natureza, una-se a alguém do sexo oposto, a quem não deseja, tornando infelizes a si e a outrem. O cristão heterossexual que quer isso para o próximo dificilmente quereria para si tal celibato. Erra, pois, o alvo do mais importante dos mandamentos: amar o próximo como a si mesmo.

⁴ Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens; entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los. Mateus 23:4

Não tropecemos nesse uso deturpado da dicotomia “condição/prática”. Existe, sim, uma condição homossexual que antecede a prática, mas que se manifesta nela, de modo que não é possível condenar a prática sem condenar a pessoa. E essa condenação (que é de homens, não é de Deus) leva muitos ao inferno em vida.

Se possível, tende paz com todos os homens. Mas, se alguém não quer ter paz com você, pois não aceita sua natureza, entregue ele a Deus em oração e não se exponha ao mal que essa pessoa possa te fazer. A neurose é dela, não é sua. Ela vai dizer que é Deus que não gosta do que você faz ou deixa de fazer, mas na verdade é ela. No tempo certo, haverá a reconciliação. Até lá, viva em paz e feliz, consciente dos próprios limites, essa é a paz de Deus.

Atentar contra a própria natureza

Se alguém nasce com determinada condição, essa é a sua natureza, Deus os fez assim, e nada têm a ver com idolatria ou pecado. Seu desejo será tão bom e válido quanto qualquer desejo: será bom na medida em que não faça mal ao próximo, a si e à natureza. Pelo contrário, atentar contra a própria natureza homossexual, será um erro contra si, da mesma forma que será, para o heterossexual, atentar contra a própria natureza heterossexual. Já o desejo que não faz mal a si, ao próximo ou à natureza, não pode ofender a Deus. Pelo contrário, é vida, é presente de Deus.

O Prazer como Ídolo

Dissemos que só pode haver pecado na prática sexual se ela decorrer da idolatria. E o que, na prática, tem idolatria a ver com sexo? Se um indivíduo coloca o próprio prazer no lugar de Deus, ele se torna escravo desse ídolo (o prazer) a ponto de atentar contra o próprio corpo e ou a própria saúde psíquica. Ele pode, inclusive, sendo heterossexual, cometer esse pecado sem deixar o âmbito da prática heterossexual. Se o prazer se torna um ídolo, ele leva à compulsão. A compulsão sexual, como qualquer compulsão, escraviza. O que escraviza, destrói. O que destrói, levando à morte, é pecado, é errar o alvo da felicidade.

²³ porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Romanos 6:20-23

O pecado é o que leva a morte. E não isso não é só uma consequência futura, além vida, é uma consequência presente: pecado é o que leva à morte em vida, o que leva a perder a vontade de viver.

O pecado como consequência da idolatria.

Paulo diz que o pecado é consequência da idolatria. Ao se colocar qualquer coisa no lugar de Deus, essa coisa se torna seu deus, do qual será escravo. Não se trata necessariamente de sexo, a questão sexual é apenas um exemplo. As consequências de pôr qualquer coisa no lugar de Deus (não apenas o prazer, mas o ego, a riqueza, a religião, ou o que quer que, sendo relativo, faça-se absoluto) são mais amplamente generalizadas pelo apóstolo logo a seguir:

²⁸ E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes,

²⁹ cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores,

³⁰ caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais,

³¹ insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia.

³² Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem.

Romanos 1:28-32

Pode alguém sinceramente se dizer inculpável de todos esses vícios?

O cristão que se acostumou a julgar o próximo por sua condição sexual ou de gênero, deve lembrar-se, pelo menos, que Paulo diz também que todos estamos na mesma condição diante de Deus.

Assim, depois de associar os gentios ao pecado, ele diz que os crentes na Lei e nas escrituras igualmente pecaram, não sendo melhores e, portanto, não se qualificando para julgar ninguém.

¹ Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas. Romanos 2:1

Portanto, se você usa Romanos 1:26-27 para julgar seu próximo, lembre-se que o mesmíssimo texto diz, em 2:1, que é indesculpável, homem, quando julga quem quer que seja, porque você não é melhor.

O legalismo como idolatria

⁶ Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra. Romanos 7:6

As listas de pecados e de virtudes são úteis quando estamos em um estado infantil da consciência.

¹¹ Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. 1 Coríntios 13:11

Porém, em Cristo, já não estamos mais em um estado infantil de consciência, pois o Espírito Santo habita em nós, e é esse Espírito que nos ajuda a discernir o certo do errado. Então, o legalismo, a lista de pecados e virtudes, não nos é mais necessária, exceto como lista exemplificativa e ilustrativa.

Toda lei é exemplificativa e ilustrativa, de caráter didático. Porém, nossa tendência muitas vezes é pegar uma lista exemplificativa e torná-la exaustiva e absoluta. A letra da lei torna-se então um ídolo: verdade absoluta gravada em pedra para adoração. Pior: quando a obsessão nos domina, a lei opera para estimular o que proíbe: quanto mais se diz “não faça tal coisa”, mais tal coisa, mais se reforça a tentação de fazer tal coisa.

⁸ Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o pecado.

Romanos 7:8

Em nosso estágio infantil, não cometemos “tal coisa”, porque “tal coisa” desagrada a Deus, que, ofendido, nos castiga. A morte, na lógica infantil, é o castigo pelo pecado.

Em nosso estágio maduro de consciência, sabemos que Deus, que é amor, não castiga. O pecado não causa a morte porque é pecado. O pecado é pecado porque causa a morte. Entendendo isso, não precisamos de lista de pecados. É isso, simplesmente, o estar livre da Lei de que fala Paulo.

Liberto da Lei, podemos viver uma vida de justiça: evitando o que causa a morte: o que tem consequências ruins para o próximo, para si, para o planeta.

Por isso Jesus diz: Ama o próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas, e estarás cumprindo qualquer lei.

Porque se Deus é todo-poderoso, nada pode ofender a Deus, exceto o que ofende a sua criação: ao próprio indivíduo, ao seu próximo, à natureza. Quem não ofende a qualquer elemento da criação, não pode estar ofendendo a Deus.

Mas se você ama o próximo, a si mesmo e à natureza, ama também a Deus, e vice-versa. Todas as virtudes daí decorrerão.

A paz do Senhor

Se, portanto, você é uma pessoa cheia de amor a Cristo e ao próximo, sendo, ainda, por acaso, homossexual ou qualquer outra condição fora da norma da tradição, não deixe que ninguém macule sua fé. Viva sua vida com a mesma dignidade, sabedoria e prudência desejável por qualquer pessoa e por qualquer discípulo de Jesus, independente de condição. Você não deve ser cobrado nem mais nem menos do que ninguém: viver justamente, com respeito, amor, sabedoria e prudência, que são frutos do Espírito que habita em nós.

O fardo de Jesus é suave, foi ele que o disse. E quantos jovens não têm atentado contra a própria vida, pelo ensino errado de que Jesus impõe um fardo pesado? “Cura gay” é pecado, pois leva à morte. Leva à morte de milhares de pessoas que ou tiram a própria vida ou vivem em tormento de culpa, por se sentirem incapazes de agradar a Deus. Perdem a vontade de viver pelo preconceito dos outros. E se o preconceito, qualquer que seja, leva pessoas a perderem a vontade de viver, o preconceito é pecado, pois seu fruto é a morte.

Quantos jovens não têm tirado a própria vida por acreditar na necessidade e na viabilidade da “cura gay”, e não suportar o peso do fardo que os homens, e não Deus, colocam sobre eles? E tudo isso para nada, para chegarem do outro lado e encontrarem Jesus, que lhes diz, amorosamente: “Meu filho, não precisava de nada disso. Nunca precisou. Eu te amo do jeito que você é.”  

O dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo, e isso não é uma promessa apenas para o além vida: a vida eterna é uma vida plena de sentido já agora. Vida eterna é o sublime alívio e gratidão de saber que Deus te aceita do jeito que você é, poder viver em paz com Deus, respeitando a si mesmo, respeitando a própria natureza, seja ela heterossexual, homossexual, assexuada, ou tão diversa quanto diversa é a própria Criação. A vida eterna, fruto da graça de Deus, é a paz consigo, com o próximo, com a natureza e, consequentemente, com Deus.

Se há algum desafio em aceitar Jesus, é justamente esse: aceitar o fato de que Jesus te aceita como você é, não importa o que outros digam. Jesus te ama do jeito que você é.

³⁸ Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir,

³⁹ Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.

Romanos 8:38,39

E quem diz isso é o próprio apóstolo Paulo, tão complexo e aparentemente contraditório quanto qualquer um de nós. Assim Deus nos fez, assim Deus nos ama. Viva em paz. Seja feliz.