quinta-feira, 31 de maio de 2018

DEMOCRACIA E RESPONSABILIDADE


O documentário “Noite e Neblina” (1956), do francês Alain Resnais, foi o primeiro produzido sobre o Holocausto. A obra teve como intuito manter viva a memória de todos os horrores do acontecido e sua interpretação não como acidente histórico, mas como consequência do perigo fascista que sempre pode voltar a acontecer, em qualquer época, em qualquer lugar.

Entre todos as impactantes cenas do filme, destacamos uma em que é mostrada uma sequência de guardas e autoridades do campo, recém-liberto. Todos eles dão a mesma resposta, a mesma desculpa para o horror ali desvelado: “não sou o responsável”. Essa frase sintetiza o fascismo.

Quando pensamos na essência do fascismo, talvez o que melhor o defina seja: “a ideia de que os problemas podem ser resolvidos pela força”. Mas o que permite isso? O que permite que um grande grupo dê força a um pequeno grupo, achando que esse pequeno grupo irá resolver todos os problemas pela força? O que permite que um grupo seja mais forte e domine os outros é o fato de as pessoas abrirem mão das suas responsabilidades e delegarem o poder de decisão a esse grupo.

A liberdade dá trabalho, porque traz responsabilidade. Quando temos liberdade e há alguma crise (e crises chegam, em qualquer sistema social), o cansaço trazido pela crise torna sedutora a ideia de “jogar a responsabilidade na máquina e poder finalmente relaxar”.
Seria bom ter uma máquina que resolvesse todos os nossos problemas. Seria confortável. Muitos economistas, ainda hoje, pregam que os mecanismos automáticos do mercado garantem o maior bem estar possível à população, não devendo haver intervenção nem crítica à ação desse mercado.

O problema de jogar as decisões na máquina é a desumanização dessas decisões. Os soldados dos campos de concentração jogaram a decisão no sistema. Apenas cumpriam ordens. Não questionavam suas ações. Não havia autocrítica. Viraram apenas peças da máquina. Não eram responsáveis.

Essa desumanização é um perigo em qualquer época, não apenas na Alemanha dos anos 30 e 40. Hoje, vivemos um período de crise. Crise econômica e crise política. Não por acaso, chegam até nós, como nunca, discursos saudosos dos tempos de ditadura. A ideia é que, cansadas da crise, as pessoas vão ceder à falsa promessa de que um regime de força irá solucionar todos os problemas, e cada um poderá descansar e simplesmente delegar a responsabilidade a outro.

É mentira: os problemas continuam existindo. Apenas fingimos que não é problema nosso, dando poder demais a outros humanos. E humanos são falhos.

No período militar houve tanta corrupção quanto fora dele. Ainda não temos acesso a toda verdade, pois em uma ditadura a informação não é aberta, e aqui não foi totalmente, mesmo hoje. Mas certo certo é que os problemas econômicos foram gigantescos na maior parte da ditadura.

Era um regime de força, força demais delegada a humanos que, pior do que tudo o mais citado, torturaram, perseguiram e mataram pessoas. Mas, na ditadura, era muito fácil fingir que tudo ia bem, que os militares trabalhavam para o bem do país. Poderíamos assim descansar e cuidar das nossas coisas. E apenas cumprir ordens.

A liberdade dá trabalho, nos obriga a tomar decisões, a arcar com os riscos dessas decisões, a ter de assumir eventualmente os erros. Muitos têm medo de escolher, de ter liberdade. Medo de conhecer a verdade de encarar todos os dias o fato de que temos problemas a resolver.

Viver em uma democracia é errar e aprender com o erro. É ter a integridade de assumir que errou, mas saber que é melhor escolher errado do que não escolher. Ou mesmo, se você achar que não errou, ter a liberdade de dizer: a situação está ruim, mas eu prefiro assim, porque eu acho que de outra forma é pior. Se o outro discorda, ele tem de tentar te convencer do contrário. A liberdade traz a possibilidade do diálogo, da tentativa de se encontrar consensos. Se os consensos não são possíveis, resolve-se no voto. Esquerda e direita erram, e cada uma tem a fundamental importância de apontar o erro da outra. Se eliminarmos um dos lados, se eliminarmos a diferença, vamos todos juntos para o buraco. E quando estivermos todos juntos no buraco, nossa única defesa será: “não sou responsável”.

O povo alemão delegou a responsabilidade a um regime de força. Delegou o poder de decisão a poucos, que, humanos, erram e, no limite, podem ser loucos genocidas, como eram os nazistas. Aquele povo apoiou ou fechou os olhos para a perseguição a inocentes.
Nós somos responsáveis. Não abra mão da democracia. Não abra mão da liberdade. Não abra mão de seu voto, e não deixe que joguem fora o seu voto, e não deixem que joguem fora o voto de seu próximo, mesmo que você discorde dele. Errar faz parte. Não abra mão da proteção às minorias, mesmo que você faça parte da maioria. Escolhamos nosso próprio caminhos e, certos ou errados, sejamos todos nós os responsáveis.

IMPOSTOS


Acaba de passar por aqui um carro de som convocando para uma manifestação contra impostos. “Deixe de ser escravo dos políticos” é o mote. É a velha e equivocada lógica “povo vs. políticos”, que esconde nossas contradições de classe e ainda planta a semente da falsa relação público viciado/privado virtuoso.

Eu pergunto para nossa boa gente: sem imposto, o dinheiro para a educação pública de qualidade e para a saúde pública de qualidade viria de onde? Meu povo, desconfiemos desse discurso de reduzir impostos sem especificar qual o imposto e de quem reduzir os impostos.

O problema do sistema tributário não é o tamanho da carga tributária. São dois os problemas: se sua distribuição é justa (quem paga mais e quem paga menos imposto) e para onde vai o imposto. Porque o imposto não atende às necessidades do povo? Muito mais do que pela corrupção, é pelas prioridades orçamentárias que o dinheiro público não atente às necessidades públicas. O orçamento público atende proritariamente aos mais ricos e, antes dos políticos, aos credores públicos, do setor privado.

Se não tomarmos consciência da necessidade de revermos as prioridades orçamentárias ao invés de simplesmente pedirmos menos impostos, os impostos que conseguirmos reduzir serão justamente os que ainda financiam o já fraco atendimento às necessidades da população. Estaremos jogando contra nossos próprios interesses e novamente sendo massa de manobra, como em 2016, 2015, 2013, 1964...

quarta-feira, 16 de maio de 2018

CONCEITOS DE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

Quase sempre que o termo “bárbaro” é usado, se refere a alguém que não é quem utiliza o termo. Bárbaro é o outro. Mas três visões sobre civilização e barbárie podem explicar posturas diversas, desejáveis ou não, em relação à alteridade.
1) “Civilização é a exterminação dos bárbaros”.

Esse é o conceito mais reacionário e ultrapassado de civilização, mas ainda forte no discurso de muita gente. Segundo ele, em suma, bárbaro é o outro, aquele que não sou eu. Eu posso eliminar o outro porque ele é bárbaro e eu sou civilizado. Tal postura resulta em um círculo vicioso, pois se o bárbaro também pensar assim, também vai me achar digno de ser exterminado. “Que barbaridade!”, direi eu, e então concluirei: “Estão vendo como eles eram bárbaros mesmo?” Essa lógica binária e burra acaba assim gerando conflitos intermináveis ou, quando uma parte é mais forte que a outra, massacres. Foi segundo esse princípio que as potências europeias empreenderam genocídios em suas colônias na África, incluindo o extermínio dos hererós (da Namíbia) pelos alemães, entre 1904 e 1907, que serviu de modelo para o genocídio dos judeus pelos nazistas.

2) “Bárbaro é aquele que acredita em barbárie”.
A definição do antropólogo Lévi-Strauss (1908-2009) é o extremo oposto da anterior, mas também é problemática. Se o conceito de bárbaro não existir, o que dizer de genocídios e campos de concentração?

3) “Bárbaro é aquele que crê que uma população ou um ser não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que eles mesmos recusariam firmemente aplicar a si mesmos”.

Por fim, uma terceira visão sobre civilização e barbárie, de Tzvetan Todorov, é a que defendemos aqui. Essa noção permite entender que a barbarização do outro: sua desumanização. Esta, por sua vez, permite que se cometam contra ele atos bárbaros. Permite, enfim, a aniquilação do outro. Permitiu o Holocausto e demais genocídios de nossa História.

Bibliografia:
GRESH, Alain. “Da Batalha de Termópolis ao 11 de Setembro”. Le Monde Diplomatique Brasil, janeiro de 2009.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

RAÍZES DO ÓDIO

Inimigo comum para expiação da culpa da crise: Períodos de mal-estar/crise produzem insatisfação geral em relação à coisa pública (política, economia, etc.). Diante desse mal-estar, os indivíduos podem ter três posturas:
- Assumir sua parte da responsabilidade e trabalhar para melhorar a sociedade e superar a crise;
- Escapar: fantasia, escapismo – prazer para aliviar a dor (não por acaso, o cinema escapista americano teve nos anos 30 um grande momento);
- Eleger um culpado e combatê-lo (colocar a culpa no outro).
A terceira opção é certamente a mais equivoca, a mais perigosa e, infelizmente, a mais popular. É aí que muitas vezes reside a raiz do ódio.
Estigma do Outro: eleger um “culpado” por todas as mazelas e a ele direcionar o seu ódio – Isso é uma forma de tirar de si a responsabilidade sobre a sociedade em que se vive. Uma democracia só é possível quando cada um é responsável pelo bem comum.
Quando se elege um “culpado”, passa-se a odiá-lo e querer destruí-lo. Isso, além de resultar em crimes contra a humanidade, como o holocausto e todos os demais extermínios da História, é uma ilusão.
É uma ilusão porque um único grupo de indivíduos, seja de judeus, homossexuais, comunistas, esquerdistas ou direitistas, não pode ser culpado por todas as mazelas. Logo, eliminar esse grupo não resolve crise nenhuma.
Em segundo lugar, todo extermínio é uma ilusão, porque nunca elimina de fato o outro. Por mais judeus, homossexuais, esquerdistas ou direitistas que se mate, novos nascerão. Sempre haverá uma minoria de homossexuais e uma maioria de heterossexuais, sempre haverá esquerdistas e direitistas, bem como judeus, cristãos, muçulmanos e umbandistas, bem como toda a sorte de raças e cores e pensamentos possíveis. Pelo simples fato que a pessoas são diferentes. E isso não só é bom, como é de fundamental importância. Os pensadores de esquerda têm a fundamental importância de apontar os erros da direita e os pensadores da direita têm a fundamental importância de apontar os erros da esquerda. Se caminharmos todos para o mesmo lado, o desequilíbrio político fará com que caiamos todos juntos no mesmo abismo.
Assumir uma posição no debate político, ou uma religião, ou uma condição sexual não implica deixar de reconhecer a importância da existência do outro, que não serve para te atrapalhar, mas para te colocar em perspectiva, como parte, e não essência, de um todo.
A postura hedionda do ódio erra, por fim, ao querer eliminar justamente o grande ativo da humanidade, que é a diversidade. É o medo que faz isso, o medo do que não compreendemos e que, portanto, queremos destruir. Assim, adquirir uma postura de respeito ao outro é uma postura libertadora na medida que compreendemos que a liberdade do outro não ameaça a nossa, muito pelo contrário, a liberdade do outro ser o que ele é é a mesma liberdade de eu ser o que eu sou.

3 RAZÕES POR QUE O LINCHAMENTO É NEFASTO

1- Condenar o inocente
Por melhor que seja o sistema jurídico, nunca haverá 100% de certeza de que decisão de um julgamento seja correta. Haverá sempre a possibilidade dois erros, que chamaremos de erro tipo 1 e erro tipo 2 (em analogia a um conceito da Estatística).
Erro tipo 1 – Condenar o réu, caso ele seja inocente.
Erro tipo 2 – Inocentar o réu, caso ele seja culpado.
O ideal seria que o devido processo legal não cometesse erro algum, mas o erro tipo 1 é pior, é mais inaceitável que o erro tipo 2. Para perceber isso basta nos colocarmos no lugar do inocente acusado. A vítima desse erro é você, inocente, não é o bandido!

Sob a possibilidade de pena de morte, isso fica ainda mais óbvio. Nesse caso, o erro tipo 1 é irreparável, sendo, em si, um crime hediondo.

Mas também quando inexiste a pena de morte, como no sistema brasileiro, o erro tipo 1 é pior que o erro tipo 2, ou seja, é preferível absolver um culpado a condenar um inocente.

Lembremos que, se o linchamento físico é a maior das barbáries, existe ainda o linchamento moral, que também causa danos irreparáveis às suas vítimas.

Para evitar a prática de qualquer tipo de linchamento, físico ou moral, as democracias adotam como princípio a presunção de inocência.
2- Contraditório e ampla defesa são pilares da democracia!
A máxima de que “todo cidadão é inocente até que se prove o contrário” é um princípio fundamental de qualquer democracia.
Contraditório e ampla defesa: Justiça garantista

O “garantismo” é uma forte característica da Constituição de 1988:

TÍTULO II
DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
A Constituição de 88, a nossa vigente lei fundamental, também chamada de Constituição Cidadã, foi promulgada quando o país retornou à democracia após mais de 20 anos de ditadura militar.

A democracia é o regime que se caracteriza pelo governo do povo. Nele, as decisões são tomadas pelo voto da maioria, mas democracia não pode ser confundida com uma ditadura da maioria!
Democracia: vontade da maioria, dada a proteção das minorias.

Os direitos e garantias fundamentais, portanto, visam proteger as minorias da eventual fúria destruidora das maiorias.
O linchamento é evitado quando há o devido processo legal. O argumento dos linchadores quase sempre evoca a “lentidão” da justiça. Ora, assegurar que um inocente não seja condenado é algo que exige mesmo algum tempo. A justiça deve, portanto, procurar ser o mais rápida possível, mas sem que nenhum dos ritos necessários à sua assertividade se perca. Uma justiça rápida demais erra muito, e aumenta consideravelmente as chances de se cometer injustiça. Nenhuma alternativa à justiça lenta resolve seus problemas sem gerar outros maiores. Quando há pressa excessiva de se condenar o acusado, os fatos não são examinados com o devido cuidado.
3- Condenar o inocente TAMBÉM causa impunidade.
Pode-se argumentar que o erro tipo 2 (absolver o culpado) também é grave, pois causa impunidade. Sim, é grave mesmo, mas uma prova de que o erro tipo 1 (condenar o inocente) é ainda pior é o fato de que este erro (na hipótese de ter havido crime) também causa impunidade.

Se houver acontecido o crime em questão e inocentes forem condenados, o criminoso verdadeiro automaticamente estará solto e livre de qualquer acusação. Na hipótese de o crime ter de fato acontecido, condenar um inocente implica também absolver um culpado.

Por isso tudo, o contraditório e a ampla defesa são necessários. Por isso, nunca devemos nos esquecer de que todo cidadão é inocente até que se prove o contrário. Há outros modos de tornar a justiça mais eficiente possível, mas SEM abrir mão das garantias que não servem para proteger bandidos, mas para proteger a todos nós.

UM POEMA

Um poema.
Escrever um poema.
Escrever um poema?
Por que escrever um poema?
Por que escrever um poema se eu vou ter que publicar?
Por que publicar?
Porque