Nos anos 90, passava na
TV um enlatado americano de que hoje ninguém se lembra. Chamava-se
“Justiça Final”, e o enredo pouco se distanciava dos filmes de
vingança tipo “Desejo de Matar”. Já na vinheta de abertura, o
juiz Nick Marshall, personagem principal da série, justificava sua
condição de vingador:
“Como policial perdi
muitos casos devido a truques jurídicos, mas eu acreditava no
sistema. Como promotor perdi muitos casos para advogados corruptos,
mas eu acreditava no sistema. Como juiz eu procurei seguir a lei ao
pé da letra, porque eu acreditava no sistema... até eles destruírem
minha família. Daí eu parei de acreditar no sistema e passei a
acreditar na justiça.”
Nerds esquerdistas como
eu sentem um estranho misto de nostalgia e desdém ideológico ao
recordar essa abertura. E, ironicamente, o Brasil de hoje nos fez um
pouco como o juiz Nick Marshall. O golpe foi o nosso ponto de
inflexão. Politicamente, guardadas as devidas proporções, foi o
“até eles destruírem minha família” da historinha. Vejamos:
As eleições de 2014
foram difíceis e o debate foi rasteiro e violento, mas eu acreditava
no diálogo. Tendo perdido a eleição, a oposição não se
conformou com a derrota e tentou levar no tapetão, mas eu acreditava
no diálogo. Iniciado o mandato, sabotaram o governo e apostaram no
quanto pior melhor, mas eu acreditava no diálogo. Até que eles
deram um golpe travestido de impeachment. Aí eu deixei de
acreditar no diálogo, e passei a acreditar no confronto.
Pois é, quem não quer
guerra não invade a Polônia. No entanto, devo dizer que,
esquizofrenicamente, meu objetivo agora não é buscar justificação
de qualquer atitude extrema. Não venho aqui defender a velha fórmula
justificadora de injustificáveis: “Sou contra tal coisa, mas
chegou a um ponto em que...”. Pelo contrário. O objetivo deste
texto é questionar a pertinência de atitudes como o chamado
“escracho”.
Concebi este texto após
ler uma notícia do escracho a Janaina Paschoal em um aeroporto. O
relato era de um blog simpático à “autora do pedido de
impeachment” e antipático aos “petistas ensandecidos”,
e chamava o ato de “barbárie”. Achei, a princípio, que tivesse
havido agressão física, então me adiantei em escrever um esboço
condenando fortemente a atitude e nivelando os escrachantes às
pessoas que hostilizaram Guido Mantega em um hospital ou mesmo aos
fascistoides que atacaram alunos na UNB.
Mas, depois de ver o
vídeo, constatei que não se tratava de uma agressão, ao menos não
no sentido físico. Os “petistas ensandecidos”, como chamou o
blog de direita, apenas fizeram coro chamando Janaina Paschoal de
golpista e de fascista. Eles mantiveram uma distancia física dela.
Compará-los aos fascistas do ataque a UNB seria forçar a barra. Mas
não desisti deste texto, pois acho importante ter um olhar crítico
sobre o episódio e sobre escrachos em geral. Tal atitude é ética?
Encontra-se facilmente
resposta a essa questão invertendo a situação. Pense se você
acharia um absurdo ou não se a mesma atitude fosse tomada contra um
intelectual “do seu lado”, por militantes “do outro lado”. A
ética que vale para os aliados deve valer para os adversários
também, não importa o contexto.
Mas se, ensaboadamente,
deixo para você, leitor, a conclusão sobre o escracho ser ético ou
não, afirmo que, no mínimo, ele não é estético. É um conceito
muito feio, com ares de programa policialesco vespertino. Flerta
muito proximamente com a covardia e com o linchamento.
Podemos dizer que, no
caso de Janaina, os escrachantes mantiveram uma distância física,
de modo a não ameaçá-la. Mas até que ponto podemos garantir que
um companheiro não irá ultrapassar essa barreira? Se adotarmos o
discurso de que, após o golpe, vale tudo, a chance de isso acontecer
aumenta. E isso (aí sim, sem dúvida) nivelaria os companheiros
escrachantes aos fascistas.
Nivelando-se, a esquerda
incorreria em um duplo erro, moral e estratégico. O erro estratégico
é claro. Tudo que os repressores querem é desculpa para reprimir. O
golpe exige luta, mas é preciso que as lideranças deixem claro que
essa luta é não violenta. Na violência, perdemos. Deles é a
polícia, deles são as armas.
Já o erro moral, que se
soma ao estratégico, já foi desenhado acima: é utilizar os métodos
daqueles que condenamos. Você dirá: “Ah, mas a Janaina é
golpista. Contra ela vale”. Mas ela ser golpista não invalida dois
fatos:
1) Eu acredito que ela
é golpista, mas posso estar errado.
Os fascistas que atacaram
a UNB acreditavam estar certos. Se temos a consciência de que
podemos estar errados, refreamos nossa agressividade. E sempre
podemos estar errados, pois nossas convicções mais profundas, no
limite, são uma questão de fé.
2) Antes de ser golpista,
Janaina é um ser humano.
Os que hostilizaram Guido
Mantega em um hospital (quando ele visitava a esposa com câncer)
possivelmente achavam que que para político, ou pra petista, todo o
castigo era pouco. Consideravam-no, enfim, uma pessoa indigna.
Segundo Tzvetan Todorov,
“bárbaro é aquele que crê que uma população ou um ser não
pertence plenamente à humanidade e merece tratamentos que eles
mesmos recusariam firmemente aplicar a si mesmos” (TODOROV, Tzvetan, La Peur des Barbares [O Medo dos Bárbaros], conforme citado em GRESH, Alain. “Da Batalha de Termópolis ao
11 de Setembro”, Le Monde Diplomatique Brasil, janeiro de 2009).
Gritar “fascistas,
golpistas” não caracteriza barbárie. O que caracteriza ou não a
barbárie é o que se faz depois. Sofremos um golpe, nosso voto
jogado no lixo, acusemos, pois, os golpistas. Mas, e depois de acusar?
Agredimos o acusado ou conversamos com ele? Se escolhermos a primeira
opção, seremos, sim, bárbaros. Uma acusação que não dê o
direito de defesa é linchamento, e linchamento, definitivamente, não
nos pertence (“programa policialesco vespertino”, lembram-se?).
Após gritar “golpistas!,
fascistas!” é preciso explicar por quê. É possível que Janaina
acredite mesmo que não seja golpista. Não basta estarmos convictos
de que há um golpe em curso, é preciso saber explicar o porquê
dessa convicção. Seremos chamados ao debate pelos que não
compartilham da nossa convicção ou nem sequer refletiram a
respeito, e não é com gritos que convenceremos ninguém.
Como eu disse, deles são
as arma. Nossa única arma é falar a verdade, e só poderemos usá-la
se mantivermos aberto o canal do diálogo. Isso implica legitimar o
outro. Mas dar o direito do contraditório é pouco confortável. Já
dizia Nietzsche, quando você olha para um abismo, o abismo também
olha para você. Dialogar exige preparo, exige coragem. E apenas
quando passamos por essa prova de coragem nos diferenciamos dos
fascistas. Se não dialogamos, somos paneleiros, aqueles que não
ouvem, só fazem barulho.
Ao final do último
episódio da primeira temporada de “Justiça Final”, o juiz
justiceiro Nick Marshall finalmente encontra o assassino da sua
família. Tendo sido dominado, o bandido espera a própria execução
sumária. O juiz vingador se aproxima dele e saca... uma algema. Leva
o criminoso preso que, surpreso, pergunta, “Ué, você não vai me
matar? Por quê?” Ao que o juiz responde: “Porque, apesar de
tudo, eu ainda acredito no sistema”.
Sim,
há momentos em que deve haver luta, mas a luta sempre deve ser não
violenta. Sim, às vezes o confronto é necessário, mas o confronto
sem racionalidade perde o sentido. Sim, corremos o risco de que, no
final, o escorpião nos pique mesmo assim, mas é um risco que vale a
pena ser corrido, quando o que está em jogo é a nossa própria
integridade. O golpe, de fato, muda as coisas, mas não pode mudar
nossos valores éticos mais profundos, não importa a que ponto
tenhamos chegado. Mesmo que eles tenham invadido a Polônia. Só o
amor vence o ódio, mais ódio apenas o potencializa.