O
Cristianismo nasce, na Antiguidade Clássica, no encontro de culturas
de diferentes povos: judeus, gregos e romanos. Essas culturas,
dominantes nos primórdios da nova religião, eram diversas em vários
pontos, mas muito semelhantes em seu patriarcalismo e machismo.
Situação Geral da
Mulher na Antiguidade Clássica:
- O masculino era
preponderante sobre o feminino;
- O espaço público
era reservado aos homens e o mundo privado, da família e da casa, às
mulheres;
- A mulher deveria
pertencer a um homem que dela cuidasse e a protegesse: a seu pai, seu
irmão, seu marido ou seu filho;
- A inferioridade
intelectual era considerada como característica da natureza
feminina;
- A maternidade era a
finalidade primordial para a mulher, a única meta da sua vida;
- Fora do ambiente
doméstico e da submissão ao homem, a mulher passava a ser uma
prostituta;
Esses preconceitos
eram verdades naturais para esses povos, gerando um ambiente de forte
misoginia (aversão às mulheres). Fruto do judaísmo e propagado
pelos romanos, o cristianismo não escapou dessa influência:
Pedro:
I Pedro 3:1-7
Paulo:
I Timóteo 2:8-15
Mesmo
sob um olhar teológico, a Palavra de Deus é: Palavra de Deus para
os homens, Palavra de homens para Deus e Palavra de homens para
homens. É essas três coisas ao mesmo tempo e, entendendo isso, a
nossa fé não será fundamentalista, mas tampouco esquizofrênica ou
herege. Paulo e Pedro, ainda quando poderosamente guiados pelo
Espírito Santo, eram homens, e, portanto, sujeitos à sua cultura e
ao pensamento de seu tempo.
Seja
como for, as breves palavras de Pedro e de Paulo foram utilizadas
para perpetuar o pensamento misógino pelo ocidente cristão até os
dias de hoje. Uma visão parcial e reducionista do capítulo 3 do
gênese foi ainda fortemente difundida e aprofundada, para validar
esse preconceito, ignorando os vastos exemplos bíblicos e da
história cristã inconciliáveis com essa visão.
A tese aqui defendida
é a de que a representação da mulher nos quatro evangelhos, bem
como a atitude das primeiras mártires cristãs, é incompatível com
a moral hegemônica vigente no que diz respeito ao comportamento
ideal feminino. Em outras palavras, era impossível seguir Jesus ou
difundir a fé cristã em seus primórdios sem extrapolar os
estreitos limites que a tradição reservava às mulheres. Entendemos
primórdios do Cristianismo como o período em que a nova religião
não era hegemônica, até o século IV d.C.
-
Rompendo a Barreira da Tradição: A Mulher nos Evangelhos
Os
evangelhos mostram recorrentemente a cultura de silenciamento e
descredito às mulheres e a necessidade de romper com essa barreira
para seguir Jesus.
-
Maria Madalena e as demais Apóstolas:
Ao
longo dos séculos, o imaginário popular unificou a figura de Maria
Madalena à de Maria Betânia à da mulher pecadora de Lucas 7. Nos
evangelhos, porém, Madalena é identificada apenas como aquela de
quem Jesus expelira sete demônios. Ainda assim, seu protagonismo vai
muito além disso: ela é a representante de uma legião de mulheres
que seguiam e assistiam Jesus, destacadas em Lc. 8:1-5 (ali são
citadas Maria Madalena, Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes,
Suzana e “muitas outras”).
Para
uma mulher, seguir Jesus não era algo trivial: “deixar tudo e o
seguir” implicava negar corajosamente a estrutura patriarcal que
normatizava seu comportamento: era preciso deixar a esfera de seu
protetor (pai, irmão, filho ou marido) e, tomando uma decisão
soberana, sair dos limites do espaço doméstico para o público. E
para a mulher, nesse contexto, ocupar a esfera pública significava
carregar o estigma da prostituição, dando a cara a tapa, ou melhor,
a pedrada.
Relegadas
a segundo plano pela cultura de seu tempo, foram essas mulheres as
escolhidas para serem as primeiras a ver Jesus ressuscitado,
simbolizando o nascimento da Igreja.
Mc
16: 1-11 – Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé.
Mt
28: 1-10 – Maria Madalena e a outra Maria.
Lc
24: 1-12 – Maria Madalena, Joana, Maria mãe de Tiago e as outras
mulheres.
Jo
20: 1-18 – Maria Madalena.
As
mulheres foram também as primeiras a anunciar a boa nova da
ressurreição.
“E,
partindo ela, foi anunciá-lo àqueles que, tendo sido companheiros
de Jesus, se achavam tristes e choravam” (Mc. 16: 10).
Os
discípulos, homens de um tempo machista, desacreditam a palavra das
mulheres, postura natural em uma época em que se cria na
inferioridade da mulher (mas que, infelizmente, ainda hoje é
reproduzida).
“Eles,
ouvindo que ele vivia, não acreditavam” (Mc 16: 11).
“Tais
palavras lhes pareciam um como delírio, e não acreditaram nelas”
(Lc 24: 11).
-
Maria, Mãe de Jesus:
Os
relatos da origem do menino Jesus vinham suprir questionamentos
feitos à Igreja: como o Messias pode ser Nazareno se viria de Belém?
Qual o misterioso segredo de sua concepção? Era ou não filho de
José? Se não, isso não faria de Maria uma mulher adúltera?
A
Genealogia de Jesus e a Prostituição (Mateus 1: 1-17)
Mateus
escreve o seu evangelho por volta de 80 d.C. A Igreja já vive então
um grande crescimento pelo mundo ocidental. Dentro do judaísmo mais
conservador, os adversários da nova doutrina tentavam difamar Jesus associando-o a uma origem de prostituição, fazendo
circular a versão de que seu pai teria sido um soldado romano.
Mateus responde a esses questionamentos com a revelação da
concepção pelo Espírito Santo. E, na genealogia de Jesus,
sutilmente, o evangelista desconstrói o preconceito machista que
embasava tais acusações.
Ali,
em meio a dezenas de nomes de homens, de Abraão a José, quatro
mulheres são citadas, além de Maria: Tamar, Rahab, Rute e a que
fora mulher de Urias. Todas elas, mulheres destacadas da história de
Israel. As quatro têm ainda em comum histórico sexual desviante de
algum modo do rígido patrão comportamental que a tradição impunha
à mulher e, por isso, carregam o estigma da prostituição. Trazendo
isso à luz, um judeu cristão respondia ao preconceito de alguns
judeus não cristãos, como se dissesse: antes de jogarem pedras no
Nazareno e em sua mãe, vamos examinar se a ação de Deus na nossa
história valida tal prejulgamento. A história de heroínas da fé,
como Rute, não deixa dúvidas de que não. Indubitavelmente
virtuosa, Rute esbanjava elementos femininos que o pensamento
misógino continuaria temendo e combatendo por séculos: voz ativa,
postura soberana, sedução.
Lucas
1,2: O Nascimento de Jesus sob a Ótica da Mulher
Há
na Bíblia dois relatos do nascimento de Jesus. Se em Mateus 1-2,
José é o protagonista da história, em Lucas 1-2, Maria assume o
centro da narrativa. Em Marcos, o primeiro dos evangelhos canônicos
a ser escrito, encontramos João Batista e Jesus de Nazaré já como
homens feitos. Lucas, o mais feminino dos evangelhos, nos lembra que
todo homem nasce de um ventre de mulher. Conhecemos ali intimamente
Isabel, mãe do Batista, e Maria, mãe de Jesus. Os dois primeiros
capítulos de Lucas foram fundamentais para que o Cristianismo
penetrasse, mais tarde, em povos pagãos cuja simbologia dava grande
importância ao feminino, à maternidade e à fertilidade. Maria foi
a grande embaixadora do Cristianismo nessas culturas, em que um
patriarcalismo rígido encontraria maior dificuldade de aceitação.
A
Profetisa Ana (Lc 2: 36-38)
Se,
ainda hoje, nossos ouvidos estranham as palavras “pastora” ou
“reverenda”, Lucas não via hierarquia de gêneros no que diz
respeito às coisas de Deus. À idosa que anuncia publicamente a
glória de Jesus, o evangelista dá o título de profetiza, algo
único na Bíblia.
Marta
e Maria (Lc 10. 38-42)
A
breve passagem que contrapõe Marta e Maria é riquíssima. Podemos
ver essas duas mulheres como símbolos de dimensões da Igreja e da
sociedade: do serviço e da palavra; do trabalho braçal e do
intelectual; do espaço doméstico e do espaço público. Assim como
Marta e Maria, todas essas dimensões têm valor e importância.
Marta servia Jesus e os convidados da casa, enquanto Maria ouvia os
ensinamentos de Jesus. Aquela ocupava o espaço reservado às
mulheres, esta, invadia o terreno dos homens. Jesus elogia a escolha
de Maria e deixa claro que não somente a ela era permitido estar
ali, como sua escolha era digna de elogio. Sem desmerecer o serviço
de Marta, Jesus relembra a importância central do alimento do
espírito, derrubando qualquer barreira que o reservasse
exclusivamente a um único gênero, supostamente mais capacitado para
tal.
Jesus
ungido em Betânia (Mt 26 6-13, Mc 14. 3-9, Jo 12. 1-8)
A
mulher que ungiu os pés de Jesus é identificada por João como
Maria, irmã de Marta e Lázaro.
Uma
mulher, por iniciativa própria, empreende uma manifestação
pública. Isso, por si só, era um escândalo, um incômodo para os
homens naquele contexto. Os discípulos repreendem a mulher,
desautorizam-na, deslegitimam e ridicularizam sua atuação. É
preciso notar aqui que isso ainda é algo comum em nossa sociedade: a
mulher ser desautorizada pelos homens em sua iniciativa própria,
sempre com um bela desculpa, mas carregando em si a essência da
ideia da inferioridade e submissão feminina. Mas Jesus,
imediatamente, desautorizou a desautorização.
“Por
que molestais esta mulher? Ela praticou boa ação para comigo” (Mt
26:10).
Nesta
passagem, Jesus empodera uma mulher diante dos homens de seu tempo e
de todas as gerações futuras que receberiam o evangelho.
-
A Mulher Adúltera (Jo 8:1-11)
A breve passagem da
mulher adúltera sintetiza o rompimento de Jesus com o paradigma
machista. Para realizar seu julgamento sádico, os preconceituosos,
naquele tempo como hoje, apresentam pretextos muito nobres: a lei, a
moral, os bons costumes. À mulher pecadora, exigiam todo o castigo e
rigor da lei. Não olhavam antes, para seus próprios pecados. Sem
nenhuma acusação, Jesus traz à tona o caráter pecador de todo
homem. Reconhecendo nossa própria humanidade, somos impedidos de ser
intolerantes com o outro. E Jesus, ele próprio, escolhe não
condenar a mulher adúltera, pois não há lei maior que a lei do
amor.
-
A Mulher Samaritana (Jo 4: 1-30, 39-42)
“E
era-lhes necessário atravessar a província de Samaria” (Jo 4:4)
João
descreve um belíssimo encontro entre Jesus e a Mulher Samaritana.
Quando o evangelista informa que era necessário passar por Samaria,
isso significa que era preciso romper barreiras, ir ao encontro do
outro, daquele que incomoda. Visto que judeus e samaritanos não se
davam há séculos, era compreensível que os discípulos achassem
muito estranho que Jesus falasse com uma pessoa daquela província.
E, no entanto:
“Neste
ponto, chegaram seus discípulos e se admiraram de que ele estivesse
falando com uma mulher” (Jo 4: 27)
Para
Jesus, além das barreiras das rivalidades nacionais e religiosas,
era preciso romper a barreira de gênero.
A
mulher samaritana estava muito longe do restrito lugar da mulher na
sociedade antiga: tinha livre trânsito entre os homens e no espaço
público, características automaticamente associadas à
prostituição. Por fim, o próprio caráter escandaloso da vida
pregressa da mulher samaritana possibilitou que ela fosse uma grande
anunciadora do evangelho em Samaria (Jo 4:39).
-
A Mulher de Pilatos (Mt 27: 19)
No
julgamento de Jesus, Pilatos, sabendo da inocência do acusado,
sentiu-se de mãos atadas, diante da pressão das autoridades locais
(principais sacerdotes e anciãos) e da opinião pública (a turba de
linchadores que, atuando como massa de manobra acéfala dos
poderosos, arvorou-se de representante do “sentimento social”).
Pensando em conciliar os interesses, o governador procurou dar
ouvidos a todos, menos à sua própria mulher, a única que lhe deu o
conselho correto.
“Não
te envolvas com esse justo” (Mt 27:19)
-
A Mulher Pecadora (Lc 7:37-47)
Em
casa de Simão, o Fariseu, uma mulher unge os pés de Jesus e os
enxuga com os cabelos. O ato traz à tona todo o complexo de
superioridade dos respeitáveis homens da cidade, bem como seu
escândalo por ter Jesus deixado que uma pecadora o tocasse. Após
enaltecer a atitude da mulher em relação ao descaso do próprio
anfitrião, Jesus nos lembra que, diante do amor, qualquer
preconceito se quebra.
“Por
isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque
muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.” (Lucas
7:47)
As Primeiras Mártires
Ao longo de todo o
período do cristianismo não hegemônico, ser cristã representava
necessariamente romper as barreiras da tradição. A própria
confissão de fé era uma manifestação pública e independente da
aprovação de pais ou esposos. O exercício do protesto, ao abraçar
uma causa marginal, quebrava também os moldes em que elas estavam
imersas: matrimônio, cuidado dos filhos, submissão ao marido,
ausência de vida pública e de iniciativa que ultrapassem os limites
do lar. As mártires exerciam seu direito a ser autônomas,
negando-se a cumprir atividades contrárias à sua fé. São exemplos
dessa postura mártires valorosas, como Tecla (séc. I), Perpétua e
Felicidade (século II-203 d.C.), Crispina (século III-IV d.C),
Balbina (século II d.C-132 d.C).
Conclusão:
Antes de o cristianismo ser hegemônico, não era possível seguir
Jesus ou confessar a fé cristã dentro dos limites reservados à
mulher nas culturas clássica e judaica. Percebendo isso, passa a ser
um equívoco histórico e teológico a defesa da imutabilidade da
ideologia patriarcal e machista em que a mulher é submissa ao homem
e limitada ao ambiente doméstico.
Bibliografia:
CAMARA,
Yls Rabelo; CÂMARA, Yzy Maria Rabelo; LINHARES NETO, Guilherme;
SOUTULLO; Melina Raja. El Elemento Femenino en el Principio de la
Cristiandad. Em: Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG - v. 27,
n. 1 - Jan/Jun. 2014 – ISSN online 1981-3082.
CHEVITARESE,
André Leonardo; Cornelli, Gabriele; Selvatici, Mônica (orgs.).
Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume; Fapesp,
2006.