A carta de Paulo aos Romanos contém algumas das passagens mais belas e significativas do Novo Testamento. Muitas vezes, porém, é mais lembrada pelo seu primeiro capítulo, usado para defesa de uma fé excludente.
Nosso objetivo aqui, pois, é desfazer o nó de Romanos 1:18-32,
trecho facilmente obscurecido pelo véu de nossos próprios preconceitos. Sob uma
leitura rasa, a passagem pode afastar uma parcela significativa da população –
os LGBT+ – do maravilhoso conteúdo integral da carta e, pior, fazê-los se
sentir excluídos própria salvação em Cristo. E excluir da fé é justamente o oposto
da mensagem da carta e das boas-novas de Cristo.
Na verdade, o maior objetivo do texto de Romanos é
reconciliar cristãos judeus e cristãos gentios na mesma comunidade de fé. Paulo
busca evidenciar os dois grupos como codependentes e copartícipes da mesma
salvação de Deus em Jesus Cristo e, portanto, iguais. Para tanto, a apóstolo demonstra
sua leitura da relação histórica com Deus, primeiro de gentios, depois (já no
capítulo 2) de judeus, para chegar a esse ponto comum: o de ter pecado e,
portanto, necessitar da salvação pela Graça, através da fé em Cristo. O “ter
pecado”, no caso dos judeus, exemplifica-se pela desobediência e, no caso dos
gentios, pela idolatria.
Assim, antes de tudo, é preciso entender que o ponto
principal de Romanos 1:18-32 não é sequer a homossexualidade, mas a idolatria.
¹⁸ A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;
¹⁹ porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto
entre eles, porque Deus lhes manifestou.
²⁰ Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem,
desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram
criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis;
²¹ porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram
como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios
raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.
²² Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos
²³ e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da
imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.
²⁴ Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas
concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si;
²⁵ pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando
e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!
Como os gentios não tinham a Lei e nem as escrituras
hebraicas, sua relação com o Deus único crido pelos judeus é trabalhada a
partir da ideia de revelação natural, ou seja, a percepção do Criador revelada
na própria Criação. Paulo postula que os povos pagãos, ao cultuar falsos
ídolos, por eles criados, desprezaram a Deus. Este, por isso, os entregou a
práticas erradas e contrárias a si mesmos e à própria natureza.
Só aí, como exemplo dessas práticas que são consequência da
idolatria, desejo e prática homossexuais são mencionados.
²⁶ Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames;
porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por
outro, contrário à natureza;
²⁷ semelhantemente, os homens também, deixando o contato
natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo
torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do
seu erro.
O que esse contexto revela? Ora, a prática homossexual que o
apóstolo condena é unicamente aquela que é consequência da idolatria. Na
verdade, nenhum pecado há na prática ou na condição, se não decorrer da
idolatria. Se decorrerem da idolatria, a prática homossexual, a prática
heterossexual e a prática não sexual serão igualmente condenáveis.
E o que caracteriza a prática descrita como infame no texto?
É o “desonrar o próprio corpo”. Isso quer dizer que a prática pecaminosa é exclusivamente
aquela que atenta contra a saúde física ou psíquica daquele que a pratica ou de
outrem. O que atenta contra a natureza de si, causa dano a si. E é evidente que
a natureza humana é tão diversa como a própria humanidade. Assim, de uma forma
simplificada, só pode haver desvio da natureza na prática homossexual se o
praticante for heterossexual. Para o homossexual, ao contrário, poderá ser a
prática da heterossexualidade a atentar contra a própria natureza.
Prática x Condição?
Observe-se que a dicotomia prática x condição é hoje usada
por cristãos que querem validar a literalidade do texto, mas sem se dizer
homofóbicos, ou sem correr o risco de ser acusados de homofobia. Postulam,
assim, que a condição homossexual é aceita na comunidade cristã, mas a prática,
não.
Aceitam o homossexual desde que ele permaneça casto por toda
a vida ou, pior, contrariando a própria natureza, una-se a alguém do sexo
oposto, a quem não deseja, tornando infelizes a si e a outrem. O cristão
heterossexual que quer isso para o próximo dificilmente quereria para si tal
celibato. Erra, pois, o alvo do mais importante dos mandamentos: amar o próximo
como a si mesmo.
⁴ Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem
sobre os ombros dos homens; entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem
movê-los. Mateus 23:4
Não tropecemos nesse uso deturpado da dicotomia
“condição/prática”. Existe, sim, uma condição homossexual que antecede a
prática, mas que se manifesta nela, de modo que não é possível condenar a
prática sem condenar a pessoa. E essa condenação (que é de homens, não é de
Deus) leva muitos ao inferno em vida.
Se possível, tende paz com todos os homens. Mas, se alguém
não quer ter paz com você, pois não aceita sua natureza, entregue ele a Deus em
oração e não se exponha ao mal que essa pessoa possa te fazer. A neurose é
dela, não é sua. Ela vai dizer que é Deus que não gosta do que você faz ou
deixa de fazer, mas na verdade é ela. No tempo certo, haverá a reconciliação.
Até lá, viva em paz e feliz, consciente dos próprios limites, essa é a paz de
Deus.
Atentar contra a própria natureza
Se alguém nasce com determinada condição, essa é a sua
natureza, Deus os fez assim, e nada têm a ver com idolatria ou pecado. Seu
desejo será tão bom e válido quanto qualquer desejo: será bom na medida em que
não faça mal ao próximo, a si e à natureza. Pelo contrário, atentar contra a
própria natureza homossexual, será um erro contra si, da mesma forma que será,
para o heterossexual, atentar contra a própria natureza heterossexual. Já o
desejo que não faz mal a si, ao próximo ou à natureza, não pode ofender a Deus.
Pelo contrário, é vida, é presente de Deus.
O Prazer como Ídolo
Dissemos que só pode haver pecado na prática sexual se ela
decorrer da idolatria. E o que, na prática, tem idolatria a ver com sexo? Se um
indivíduo coloca o próprio prazer no lugar de Deus, ele se torna escravo desse
ídolo (o prazer) a ponto de atentar contra o próprio corpo e ou a própria saúde
psíquica. Ele pode, inclusive, sendo heterossexual, cometer esse pecado sem
deixar o âmbito da prática heterossexual. Se o prazer se torna um ídolo, ele
leva à compulsão. A compulsão sexual, como qualquer compulsão, escraviza. O que
escraviza, destrói. O que destrói, levando à morte, é pecado, é errar o alvo da
felicidade.
²³ porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito
de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.
Romanos 6:20-23
O pecado é o que leva a morte. E não isso não é só uma
consequência futura, além vida, é uma consequência presente: pecado é o que
leva à morte em vida, o que leva a perder a vontade de viver.
O pecado como consequência da idolatria.
Paulo diz que o pecado é consequência da idolatria. Ao se
colocar qualquer coisa no lugar de Deus, essa coisa se torna seu deus, do qual
será escravo. Não se trata necessariamente de sexo, a questão sexual é apenas
um exemplo. As consequências de pôr qualquer coisa no lugar de Deus (não apenas
o prazer, mas o ego, a riqueza, a religião, ou o que quer que, sendo relativo,
faça-se absoluto) são mais amplamente generalizadas pelo apóstolo logo a
seguir:
²⁸ E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o
próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem
coisas inconvenientes,
²⁹ cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade;
possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo
difamadores,
³⁰ caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos,
presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais,
³¹ insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem
misericórdia.
³² Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são
passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas
também aprovam os que assim procedem.
Romanos 1:28-32
Pode alguém sinceramente se dizer inculpável de todos esses
vícios?
O cristão que se acostumou a julgar o próximo por sua
condição sexual ou de gênero, deve lembrar-se, pelo menos, que Paulo diz também
que todos estamos na mesma condição diante de Deus.
Assim, depois de associar os gentios ao pecado, ele diz que
os crentes na Lei e nas escrituras igualmente pecaram, não sendo melhores e,
portanto, não se qualificando para julgar ninguém.
¹ Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem
quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois
praticas as próprias coisas que condenas. Romanos 2:1
Portanto, se você usa Romanos 1:26-27 para julgar seu
próximo, lembre-se que o mesmíssimo texto diz, em 2:1, que é indesculpável,
homem, quando julga quem quer que seja, porque você não é melhor.
O legalismo como idolatria
⁶ Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para
aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e
não na caducidade da letra. Romanos 7:6
As listas de pecados e de virtudes são úteis quando estamos
em um estado infantil da consciência.
¹¹ Quando eu era menino, falava como menino, sentia como
menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas
próprias de menino. 1 Coríntios 13:11
Porém, em Cristo, já não estamos mais em um estado infantil
de consciência, pois o Espírito Santo habita em nós, e é esse Espírito que nos
ajuda a discernir o certo do errado. Então, o legalismo, a lista de pecados e
virtudes, não nos é mais necessária, exceto como lista exemplificativa e
ilustrativa.
Toda lei é exemplificativa e ilustrativa, de caráter
didático. Porém, nossa tendência muitas vezes é pegar uma lista exemplificativa
e torná-la exaustiva e absoluta. A letra da lei torna-se então um ídolo:
verdade absoluta gravada em pedra para adoração. Pior: quando a obsessão nos
domina, a lei opera para estimular o que proíbe: quanto mais se diz “não faça
tal coisa”, mais tal coisa, mais se reforça a tentação de fazer tal coisa.
⁸ Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou
em mim toda sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o pecado.
Romanos 7:8
Em nosso estágio infantil, não cometemos “tal coisa”, porque
“tal coisa” desagrada a Deus, que, ofendido, nos castiga. A morte, na lógica
infantil, é o castigo pelo pecado.
Em nosso estágio maduro de consciência, sabemos que Deus,
que é amor, não castiga. O pecado não causa a morte porque é pecado. O pecado é
pecado porque causa a morte. Entendendo isso, não precisamos de lista de
pecados. É isso, simplesmente, o estar livre da Lei de que fala Paulo.
Liberto da Lei, podemos viver uma vida de justiça: evitando
o que causa a morte: o que tem consequências ruins para o próximo, para si,
para o planeta.
Por isso Jesus diz: Ama o próximo como a ti mesmo e a Deus
sobre todas as coisas, e estarás cumprindo qualquer lei.
Porque se Deus é todo-poderoso, nada pode ofender a Deus,
exceto o que ofende a sua criação: ao próprio indivíduo, ao seu próximo, à
natureza. Quem não ofende a qualquer elemento da criação, não pode estar
ofendendo a Deus.
Mas se você ama o próximo, a si mesmo e à natureza, ama
também a Deus, e vice-versa. Todas as virtudes daí decorrerão.
A paz do Senhor
Se, portanto, você é uma pessoa cheia de amor a Cristo e ao
próximo, sendo, ainda, por acaso, homossexual ou qualquer outra condição fora
da norma da tradição, não deixe que ninguém macule sua fé. Viva sua vida com a mesma
dignidade, sabedoria e prudência desejável por qualquer pessoa e por qualquer
discípulo de Jesus, independente de condição. Você não deve ser cobrado nem
mais nem menos do que ninguém: viver justamente, com respeito, amor, sabedoria
e prudência, que são frutos do Espírito que habita em nós.
O fardo de Jesus é suave, foi ele que o disse. E quantos
jovens não têm atentado contra a própria vida, pelo ensino errado de que Jesus
impõe um fardo pesado? “Cura gay” é pecado, pois leva à morte. Leva à morte de
milhares de pessoas que ou tiram a própria vida ou vivem em tormento de culpa,
por se sentirem incapazes de agradar a Deus. Perdem a vontade de viver pelo
preconceito dos outros. E se o preconceito, qualquer que seja, leva pessoas a
perderem a vontade de viver, o preconceito é pecado, pois seu fruto é a morte.
Quantos jovens não têm tirado a própria vida por acreditar na
necessidade e na viabilidade da “cura gay”, e não suportar o peso do fardo que
os homens, e não Deus, colocam sobre eles? E tudo isso para nada, para chegarem
do outro lado e encontrarem Jesus, que lhes diz, amorosamente: “Meu filho, não
precisava de nada disso. Nunca precisou. Eu te amo do jeito que você é.”
O dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo, e isso não
é uma promessa apenas para o além vida: a vida eterna é uma vida plena de
sentido já agora. Vida eterna é o sublime alívio e gratidão de saber que Deus
te aceita do jeito que você é, poder viver em paz com Deus, respeitando a si
mesmo, respeitando a própria natureza, seja ela heterossexual, homossexual,
assexuada, ou tão diversa quanto diversa é a própria Criação. A vida eterna,
fruto da graça de Deus, é a paz consigo, com o próximo, com a natureza e,
consequentemente, com Deus.
Se há algum desafio em aceitar Jesus, é justamente esse: aceitar
o fato de que Jesus te aceita como você é, não importa o que outros digam. Jesus
te ama do jeito que você é.
³⁸ Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem
os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir,
³⁹ Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra
criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso
Senhor.
Romanos 8:38,39
E quem diz isso é o próprio apóstolo Paulo, tão complexo e
aparentemente contraditório quanto qualquer um de nós. Assim Deus nos fez,
assim Deus nos ama. Viva em paz. Seja feliz.