sexta-feira, 29 de março de 2024

DEUS TE AMA COMO VOCÊ É

 A carta de Paulo aos Romanos contém algumas das passagens mais belas e significativas do Novo Testamento. Muitas vezes, porém, é mais lembrada pelo seu primeiro capítulo, usado para defesa de uma fé excludente.

Nosso objetivo aqui, pois, é desfazer o nó de Romanos 1:18-32, trecho facilmente obscurecido pelo véu de nossos próprios preconceitos. Sob uma leitura rasa, a passagem pode afastar uma parcela significativa da população – os LGBT+ – do maravilhoso conteúdo integral da carta e, pior, fazê-los se sentir excluídos própria salvação em Cristo. E excluir da fé é justamente o oposto da mensagem da carta e das boas-novas de Cristo.

Na verdade, o maior objetivo do texto de Romanos é reconciliar cristãos judeus e cristãos gentios na mesma comunidade de fé. Paulo busca evidenciar os dois grupos como codependentes e copartícipes da mesma salvação de Deus em Jesus Cristo e, portanto, iguais. Para tanto, a apóstolo demonstra sua leitura da relação histórica com Deus, primeiro de gentios, depois (já no capítulo 2) de judeus, para chegar a esse ponto comum: o de ter pecado e, portanto, necessitar da salvação pela Graça, através da fé em Cristo. O “ter pecado”, no caso dos judeus, exemplifica-se pela desobediência e, no caso dos gentios, pela idolatria.

Assim, antes de tudo, é preciso entender que o ponto principal de Romanos 1:18-32 não é sequer a homossexualidade, mas a idolatria.

¹⁸ A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça;

¹⁹ porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou.

²⁰ Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis;

²¹ porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.

²² Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos

²³ e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.

²⁴ Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si;

²⁵ pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!

Como os gentios não tinham a Lei e nem as escrituras hebraicas, sua relação com o Deus único crido pelos judeus é trabalhada a partir da ideia de revelação natural, ou seja, a percepção do Criador revelada na própria Criação. Paulo postula que os povos pagãos, ao cultuar falsos ídolos, por eles criados, desprezaram a Deus. Este, por isso, os entregou a práticas erradas e contrárias a si mesmos e à própria natureza.

Só aí, como exemplo dessas práticas que são consequência da idolatria, desejo e prática homossexuais são mencionados.

²⁶ Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza;

²⁷ semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro.

O que esse contexto revela? Ora, a prática homossexual que o apóstolo condena é unicamente aquela que é consequência da idolatria. Na verdade, nenhum pecado há na prática ou na condição, se não decorrer da idolatria. Se decorrerem da idolatria, a prática homossexual, a prática heterossexual e a prática não sexual serão igualmente condenáveis.

E o que caracteriza a prática descrita como infame no texto? É o “desonrar o próprio corpo”. Isso quer dizer que a prática pecaminosa é exclusivamente aquela que atenta contra a saúde física ou psíquica daquele que a pratica ou de outrem. O que atenta contra a natureza de si, causa dano a si. E é evidente que a natureza humana é tão diversa como a própria humanidade. Assim, de uma forma simplificada, só pode haver desvio da natureza na prática homossexual se o praticante for heterossexual. Para o homossexual, ao contrário, poderá ser a prática da heterossexualidade a atentar contra a própria natureza.

Prática x Condição?

Observe-se que a dicotomia prática x condição é hoje usada por cristãos que querem validar a literalidade do texto, mas sem se dizer homofóbicos, ou sem correr o risco de ser acusados de homofobia. Postulam, assim, que a condição homossexual é aceita na comunidade cristã, mas a prática, não.

Aceitam o homossexual desde que ele permaneça casto por toda a vida ou, pior, contrariando a própria natureza, una-se a alguém do sexo oposto, a quem não deseja, tornando infelizes a si e a outrem. O cristão heterossexual que quer isso para o próximo dificilmente quereria para si tal celibato. Erra, pois, o alvo do mais importante dos mandamentos: amar o próximo como a si mesmo.

⁴ Atam fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros dos homens; entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los. Mateus 23:4

Não tropecemos nesse uso deturpado da dicotomia “condição/prática”. Existe, sim, uma condição homossexual que antecede a prática, mas que se manifesta nela, de modo que não é possível condenar a prática sem condenar a pessoa. E essa condenação (que é de homens, não é de Deus) leva muitos ao inferno em vida.

Se possível, tende paz com todos os homens. Mas, se alguém não quer ter paz com você, pois não aceita sua natureza, entregue ele a Deus em oração e não se exponha ao mal que essa pessoa possa te fazer. A neurose é dela, não é sua. Ela vai dizer que é Deus que não gosta do que você faz ou deixa de fazer, mas na verdade é ela. No tempo certo, haverá a reconciliação. Até lá, viva em paz e feliz, consciente dos próprios limites, essa é a paz de Deus.

Atentar contra a própria natureza

Se alguém nasce com determinada condição, essa é a sua natureza, Deus os fez assim, e nada têm a ver com idolatria ou pecado. Seu desejo será tão bom e válido quanto qualquer desejo: será bom na medida em que não faça mal ao próximo, a si e à natureza. Pelo contrário, atentar contra a própria natureza homossexual, será um erro contra si, da mesma forma que será, para o heterossexual, atentar contra a própria natureza heterossexual. Já o desejo que não faz mal a si, ao próximo ou à natureza, não pode ofender a Deus. Pelo contrário, é vida, é presente de Deus.

O Prazer como Ídolo

Dissemos que só pode haver pecado na prática sexual se ela decorrer da idolatria. E o que, na prática, tem idolatria a ver com sexo? Se um indivíduo coloca o próprio prazer no lugar de Deus, ele se torna escravo desse ídolo (o prazer) a ponto de atentar contra o próprio corpo e ou a própria saúde psíquica. Ele pode, inclusive, sendo heterossexual, cometer esse pecado sem deixar o âmbito da prática heterossexual. Se o prazer se torna um ídolo, ele leva à compulsão. A compulsão sexual, como qualquer compulsão, escraviza. O que escraviza, destrói. O que destrói, levando à morte, é pecado, é errar o alvo da felicidade.

²³ porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Romanos 6:20-23

O pecado é o que leva a morte. E não isso não é só uma consequência futura, além vida, é uma consequência presente: pecado é o que leva à morte em vida, o que leva a perder a vontade de viver.

O pecado como consequência da idolatria.

Paulo diz que o pecado é consequência da idolatria. Ao se colocar qualquer coisa no lugar de Deus, essa coisa se torna seu deus, do qual será escravo. Não se trata necessariamente de sexo, a questão sexual é apenas um exemplo. As consequências de pôr qualquer coisa no lugar de Deus (não apenas o prazer, mas o ego, a riqueza, a religião, ou o que quer que, sendo relativo, faça-se absoluto) são mais amplamente generalizadas pelo apóstolo logo a seguir:

²⁸ E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes,

²⁹ cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores,

³⁰ caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais,

³¹ insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia.

³² Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem.

Romanos 1:28-32

Pode alguém sinceramente se dizer inculpável de todos esses vícios?

O cristão que se acostumou a julgar o próximo por sua condição sexual ou de gênero, deve lembrar-se, pelo menos, que Paulo diz também que todos estamos na mesma condição diante de Deus.

Assim, depois de associar os gentios ao pecado, ele diz que os crentes na Lei e nas escrituras igualmente pecaram, não sendo melhores e, portanto, não se qualificando para julgar ninguém.

¹ Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas. Romanos 2:1

Portanto, se você usa Romanos 1:26-27 para julgar seu próximo, lembre-se que o mesmíssimo texto diz, em 2:1, que é indesculpável, homem, quando julga quem quer que seja, porque você não é melhor.

O legalismo como idolatria

⁶ Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra. Romanos 7:6

As listas de pecados e de virtudes são úteis quando estamos em um estado infantil da consciência.

¹¹ Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. 1 Coríntios 13:11

Porém, em Cristo, já não estamos mais em um estado infantil de consciência, pois o Espírito Santo habita em nós, e é esse Espírito que nos ajuda a discernir o certo do errado. Então, o legalismo, a lista de pecados e virtudes, não nos é mais necessária, exceto como lista exemplificativa e ilustrativa.

Toda lei é exemplificativa e ilustrativa, de caráter didático. Porém, nossa tendência muitas vezes é pegar uma lista exemplificativa e torná-la exaustiva e absoluta. A letra da lei torna-se então um ídolo: verdade absoluta gravada em pedra para adoração. Pior: quando a obsessão nos domina, a lei opera para estimular o que proíbe: quanto mais se diz “não faça tal coisa”, mais tal coisa, mais se reforça a tentação de fazer tal coisa.

⁸ Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupiscência; porque, sem lei, está morto o pecado.

Romanos 7:8

Em nosso estágio infantil, não cometemos “tal coisa”, porque “tal coisa” desagrada a Deus, que, ofendido, nos castiga. A morte, na lógica infantil, é o castigo pelo pecado.

Em nosso estágio maduro de consciência, sabemos que Deus, que é amor, não castiga. O pecado não causa a morte porque é pecado. O pecado é pecado porque causa a morte. Entendendo isso, não precisamos de lista de pecados. É isso, simplesmente, o estar livre da Lei de que fala Paulo.

Liberto da Lei, podemos viver uma vida de justiça: evitando o que causa a morte: o que tem consequências ruins para o próximo, para si, para o planeta.

Por isso Jesus diz: Ama o próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas, e estarás cumprindo qualquer lei.

Porque se Deus é todo-poderoso, nada pode ofender a Deus, exceto o que ofende a sua criação: ao próprio indivíduo, ao seu próximo, à natureza. Quem não ofende a qualquer elemento da criação, não pode estar ofendendo a Deus.

Mas se você ama o próximo, a si mesmo e à natureza, ama também a Deus, e vice-versa. Todas as virtudes daí decorrerão.

A paz do Senhor

Se, portanto, você é uma pessoa cheia de amor a Cristo e ao próximo, sendo, ainda, por acaso, homossexual ou qualquer outra condição fora da norma da tradição, não deixe que ninguém macule sua fé. Viva sua vida com a mesma dignidade, sabedoria e prudência desejável por qualquer pessoa e por qualquer discípulo de Jesus, independente de condição. Você não deve ser cobrado nem mais nem menos do que ninguém: viver justamente, com respeito, amor, sabedoria e prudência, que são frutos do Espírito que habita em nós.

O fardo de Jesus é suave, foi ele que o disse. E quantos jovens não têm atentado contra a própria vida, pelo ensino errado de que Jesus impõe um fardo pesado? “Cura gay” é pecado, pois leva à morte. Leva à morte de milhares de pessoas que ou tiram a própria vida ou vivem em tormento de culpa, por se sentirem incapazes de agradar a Deus. Perdem a vontade de viver pelo preconceito dos outros. E se o preconceito, qualquer que seja, leva pessoas a perderem a vontade de viver, o preconceito é pecado, pois seu fruto é a morte.

Quantos jovens não têm tirado a própria vida por acreditar na necessidade e na viabilidade da “cura gay”, e não suportar o peso do fardo que os homens, e não Deus, colocam sobre eles? E tudo isso para nada, para chegarem do outro lado e encontrarem Jesus, que lhes diz, amorosamente: “Meu filho, não precisava de nada disso. Nunca precisou. Eu te amo do jeito que você é.”  

O dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo, e isso não é uma promessa apenas para o além vida: a vida eterna é uma vida plena de sentido já agora. Vida eterna é o sublime alívio e gratidão de saber que Deus te aceita do jeito que você é, poder viver em paz com Deus, respeitando a si mesmo, respeitando a própria natureza, seja ela heterossexual, homossexual, assexuada, ou tão diversa quanto diversa é a própria Criação. A vida eterna, fruto da graça de Deus, é a paz consigo, com o próximo, com a natureza e, consequentemente, com Deus.

Se há algum desafio em aceitar Jesus, é justamente esse: aceitar o fato de que Jesus te aceita como você é, não importa o que outros digam. Jesus te ama do jeito que você é.

³⁸ Porque estou certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir,

³⁹ Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.

Romanos 8:38,39

E quem diz isso é o próprio apóstolo Paulo, tão complexo e aparentemente contraditório quanto qualquer um de nós. Assim Deus nos fez, assim Deus nos ama. Viva em paz. Seja feliz.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

SAL DA TERRA

“Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é um clássico dos mais sofisticados da MPB. A gravação original, de 1975, com as vozes de Milton e Beto Guedes e músicos como Wagner Tiso e Toninho Horta, é hipnotizante.

“Fé Cega, Faca Amolada” é também uma provocação. Em seu uso geral, expressão que dá nome à canção é a síntese mais direta do potencial destrutivo da fé e da religião. Será disso que fala a letra?

“Agora não pergunto mais aonde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
Um brilho cego de paixão e fé, faca amolada

Deixar a sua luz brilhar e ser muito tranquilo
Deixar o seu amor crescer e ser muito tranquilo
Brilhar, brilhar, acontecer, brilhar faca amolada
Irmão, irmã, irmã, irmão de fé faca amolada

Surpresa. O eu lírico que a tal fé cega não parece ser um fanático ou obstinado, mas alguém cheio de alegria, leveza e um entusiasmo que contagia. E esta canção é apenas um dos exemplos da abordagem da fé na obra de Milton Nascimento e de seus colaboradores.

A fé, nas letras de Milton, é muito diferente daquela fé que mata e morre a pretexto de recompensa futura. Ela não abdica da vida, nem se contrapõe a ela. Pelo contrário, é fé na vida, alegria e combustível para viver o tempo presente. A faca não é arma, é ferramenta para viver e resistir, apesar mesmo daqueles que empunham as armas.

Outro exemplo é “Maria, Maria” (1978), de Nascimento e Fernando Brant.

“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida

Os versos acima são tão compatíveis com a missa quanto com a praça. A fé segundo Milton não é ópio, não aliena o povo, antes, religa-o a si mesmo. Ela não se opõe à cultura. Pelo contrário, é manifestação cultural que demonstra a força do povo e desperta a fé do próprio povo em si mesmo.

Em um tempo e lugar movidos pela crença assassina, é difícil enxergar a dimensão positiva da fé. Pela via da fé, a pilantragem soube cativar o povo como ninguém. Um exército de crentes foi mobilizado na defesa cega de charlatães, aproveitadores e mercadores da própria fé.

Porém, essa mesma pilantragem pseudopiedosa está matando o povo que nela creu. Vai cair a ficha: estamos, afinal, falando de homens. As consequências políticas e espirituais dessa decepção, que não tarda e é do tamanho do Brasil, são imprevisíveis.

Negará o povo crente a fé que é constitutiva de si mesmo? Ou mudará a direção dessa faca amolada, tornando-a de arma a ferramenta do amor ao próximo e da ajuda mútua, tão poderosamente revolucionária quanto o ensinou o próprio Cristo? Não se pode afirmar. Mas podemos continuar cantando com Milton:

Tenha fé no nosso povo que ele resiste
Tenha fé no nosso povo que ele insiste
E acordar novo, forte, alegre, cheio de paixão

Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova
Viver semeando a liberdade em cada coração
Tenha fé no nosso povo que ele acorda
Tenha fé no nosso povo que ele assusta

(“Credo”, Milton Nascimento e Fernando Brant, 1978)

O CINEMA E A ESSÊNCIA DO FASCISMO

O que é o Fascismo de que tanto se fala? Para quem sabe pouco ou nada sobre o conceito, podemos defini-lo como a política do domínio pela força. Existiu um movimento específico, o fascismo italiano dos anos 20 a 40, que originou o termo. Mas ele passou a também ser utilizado para um fenômeno político maior, do qual o Fascismo Italiano foi a experiência original, e o Nazismo alemão, a experiência radical.

A partir de certo ponto, porém, generalizações se tornam problemáticas. Ao longo das décadas, grande parte da militância política usou a palavra “fascista” retoricamente para desqualificar quem quer que estivesse à direita de si. O resultado disso foi a banalização da palavra e, quando um fascismo de verdade voltou a ter força, o nome havia perdido a capacidade de advertir.

Conclusão: se, por um lado, o fascismo é muito mais que um movimento específico de um tempo e lugar na História, por outro, a generalização de seu uso não pode ser infinita. A própria definição acima proposta, de “política do domínio pela força” é uma boa explicação introdutória, mas gera novos questionamentos: o Império Romano e a Inquisição Espanhola eram fascistas? Quais os problemas do uso anacrônico do termo? Quais as consequências de juntar em uma mesma categoria nazifascismo e stalinismo? Quais as consequências de não fazê-lo?

Bom, parece que o segundo passo nessa discussão é limitar o fenômeno fascista a um contexto específico, mas não tão específico quanto à Itália e a Alemanha dos anos 1920 e 30. O contexto que dá origem e força ao fascismo é o da defesa do interesse da burguesia capitalista em períodos de crise econômica.

É claro que, para uma resposta mais consistente, teríamos de recorrer à imensa reflexão existente sobre o tema. Hannah Arendt seria referência inescapável. O dicionário político de Norberto Bobbio, também. O texto que mais me influenciou sobre o assunto “Os Fascismos”, de Francisco Carlos Teixeira da Silva, seria revisitado. Os manuais de História do Século XX na estante também poderiam ser úteis. Em mais de década que se passou desde que terminei o curso de História, houve a ascensão do cyber fascismo, e muitos novos trabalhos, como o de Jason Stanley, geraram repercussão. E estamos falando só do que me vêm à mente agora.

Isto aqui, no entanto, não se propõe a ser uma tese de mestrado. Quando muito, é um ensaio. Então, minhas fontes serão apenas os filmes que vi nesse período, e que me ensinaram a identificar alguns sintomas do pensamento e do discurso fascista.

1-      Autoridade da Força e Criminalização do Inimigo

Em “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (1970), de Elio Petri, o policial vivido por Jean Maria Volonté quer provar que pode cometer crimes impunemente. Sua tese é um dos pontos centrais do fascismo, a saber, que a autoridade se dá, não pelo respeito à lei, mas pelo exercício do poder. Quando a autoridade se dá unicamente pela força, adversários políticos se tornam criminosos e vice-versa.

2-      A Morte da Verdade

Reza a lenda que quando o cineasta Fritz Lang se recusou a servir o Terceiro Reich, alegando ser judeu, os nazistas teriam replicado: “não se preocupe com isso, nós dizemos quem é judeu e quem não é”. Para que criminosos e adversários políticos sejam simplificados em uma só categoria, é preciso alterar a realidade. Isso é característica fundamental, mas não exclusiva, do nazi-fascismo. Tanto que talvez o exemplo mais emblemático dessa prática no cinema seja o julgamento fictício em “A Confissão” (Costa-Gavras, 1970), filme passado na Tchecoslováquia de 1951, sob domínio soviético.

3-      Capataz da Burguesia

Mas, se fascismo e stalinismo compartilham muitos de seus pontos essenciais, o primeiro tem como especificidade seu papel na história do capitalismo. Na alegoria política “1900” (1976), de Bernardo Bertolucci, o cruel personagem de Donald Sutherland representa o fascismo: é o capataz das classes dominantes, que ganha seu poder arbitrário para defender a propriedade privada.

4-      A Máquina Decide por Mim

Numa cena do documentário “Noite e Neblina” (1956), de Alain Resnais, guardas do campo de concentração recém-liberto são mostrados em sequência. Todos repetem o mesmo mantra: “não sou o responsável”, como explicação para os horrores ali encontrados. Quando um sistema autoritário toma todas as decisões pelo indivíduo, ele não precisa se responsabilizar por nada. Esse é o prêmio dos que entregaram sua liberdade. Com ela, vai-se também seu senso crítico e sua humanidade. Viram engrenagens na produção industrial da morte.

5-      Ódio à Diferença

Em “O Conformista” (1970), de Bernardo Bertolucci, o personagem de Jean-Louis Trintignant é obcecado pela normalidade, por razões puramente subjetivas. Sua busca por “ser normal” encontra abrigo perfeito na negação da diferença, proposta pelo regime fascista de que se torna agente. Mas o ódio à diferença não nasce nos corações por imposição de um regime. Pelo contrário, é nesse ódio pré-existente que o fascismo encontra as bases para aumentar seu poder. Cria-se então uma relação de retro-aimentação crescente: o ódio alimenta o regime, que alimenta ódio, que alimenta o regime... No limite, dá-se o extermínio. Mas não é o extermínio que faz o fascista, é o fascista que faz o extermínio.

Compartilhadas essas reminiscências cinéfilas, fica o convite para um estudo mais aprofundado e acadêmico a quem se dispuser. E, para quem não se dispuser, reflexão suficiente para que tirem suas próprias conclusões.

domingo, 5 de setembro de 2021

A MECÂNICA DA CRUZ

O que é essa cruz de que tanto falam os cristãos? Será que eles mesmos entendem do que estão falando? Se entendermos “entender” em termos puramente intelectuais, é bem possível que não. Não é tarefa fácil explicar ou entender via racionalidade técnica o que está muito além da compreensão intelectual humana. Mais fácil é entender os efeitos da cruz na vida de quem nela crê. Por sorte, isso também é tudo que de fato importa.

O efeito prático da cruz é o exemplo. O rei do mundo veio para servir, e a cruz é a manifestação visível disso. Para que seu ensinamento fosse sólido, era preciso que sua própria vida exemplificasse suas palavras.

Imagine um pastor que seja acumulador de riquezas. Um que ostente carros importados, relógios caros, um supersalário e ganhos de capital. Como ele teria moral para ensinar os fiéis a não acumularem tesouros na Terra, “onde a traça come”? Para ensinar que “não se pode servir a Deus e às riquezas ao mesmo tempo”? Para lembrá-los que Jesus disse ao jovem rico “venda todos os seus bens e dê aos pobres”? Pois é, ele não teria moral para ensinar as palavras de Cristo. Da mesma forma, se o Messias ensinou que o maior é aquele que serve, e não aquele que exerce domínio, então sua vida teria de ser coerente com isso.

É no exemplo de serviço que está a força da pregação. E a pregação de Jesus é essa: o caminho é o serviço, e não o domínio. Esse ensinamento salva do pecado, pois a base de todo erro é o desejo de dominar. De dominar o outro, de submetê-lo à própria vontade, de acumular poder, de controlar todas as circunstâncias, de se colocar, em última instância, no lugar de Deus.

Por sua vez, Deus, que é todo poderoso, poderia dominar o homem, e impedi-lo de errar. Mas aí seria como o pai que diz: “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. Sua prática não teria coerência com seu ensinamento. Agiria pelo domínio, e não pelo convencimento. Por isso, antes da fundação do mundo houve a Cruz: o auto esvaziamento de Deus, ao permitir que o homem tivesse a possibilidade de errar.

E, ainda no terreno do exemplo, o Messias não veio só para morrer: veio para morrer e ressuscitar. A ressurreição nos ensina a confiar no poder Deus para além da morte. Isso também salva: salva do medo, do medo de morrer e do medo de viver.

Nada disso exaure o assunto, pois não se explica ainda a lógica de como o sacrifício de Jesus na cruz paga os pecados dos homens. Há muitas explicações teológicas para tal questão, mas nenhuma convence realmente a mente. Explicações teológicas sofisticadas geralmente só convencem aqueles que já de antemão creram com o coração, pois é com o com o coração, e não com o intelecto, que se crê. Para o crente, em última análise, bastará a explicação de que “Deus assim o fez porque quis”. E é por isso mesmo que a explicação técnico-racional é totalmente dispensável. Queremos entender em termos de física newtoniana o que está além até mesmo da física quântica. A “mecânica da cruz”, se é que existe, é inalcançável para nós, ao menos neste mundo.

domingo, 22 de agosto de 2021

O ANJINHO DO AMOR

Hoje ela faria três anos, mas não deu tempo. De repente, não quis mais comer, nem brincar. Preocupação, dúvida, emergência veterinária, internação, desespero... Não resistiu. Em apenas um dia, uma doença silenciosa havia levado nossa anjinha de amor para ser um anjinho no Céu. Ficamos de coração partido.

Nesses quase três anos, Cecy foi a companheirinha da minha mãe em tempo integral. Com a pandemia, também pudemos passar bem mais tempo com ela.

A coisa que ela mais amava na vida era comer com companhia. Vinha ao nosso encontro, e imediatamente tentava nos conduzir para o cantinho da ração. Se alguém se sentava ali, ao seu lado, ela comia, pedia carinho, esfregava o focinho no móvel, ronronava, se refestelava no chão... Satisfeita, ia brincar ou dormir, mas daí a pouco estava chamando de novo para a ração. Se dependesse dela, a gente passava o dia todo indo lá, para vê-la comer.

Sempre que podia, eu me sentava ali com ela, em um banquinho. E ficava. Às vezes olhava, lá de baixo, para o relógio na parede. 8 horas... Às 9 eu estava lá de novo, e às 11. Meia-noite, e eu pensava: por que afinal estou passando tanto tempo sentado neste banquinho? E o olhar da Cecy, transbordando amor, dava-me a resposta. Aquele era o sentido da vida.

sábado, 14 de agosto de 2021

O PAI NOSSO É NO PLURAL

É impressionante que uma sociedade que se orgulha de seu caráter cristão não aprenda a raciocinar coletivamente, mesmo quando sua oração mais conhecida dá todas as pistas para esse aprendizado. O Pai Nosso é todo no plural, e harmoniza didaticamente o indivíduo ao seu entorno.

Se não, vejamos. O Pai do céu não é só meu, é nosso. O pão da terra também é nosso, não é meu. Não basta que o pão esteja no meu carrinho de compras, é preciso que ele seja dividido, ou melhor, multiplicado... O pão do outro não se difere do meu pão. Da mesma forma, a necessidade do outro é também a minha necessidade.

O Pai Nosso intercede por nós, e não por mim. Pede-se que Ele nos proteja, e não que me proteja deles. Assim, quando eu digo “não nos deixes cair em tentação”, peço, ao mesmo tempo, que eu não erre contra o outro e que o outro não erre contra mim. Em consequência, o outro será livre do mal que eu fizer a ele, e eu serei livre do mal que ele fizer a mim. Antes de pedir livramento do mal, tenho que eu também estou sujeito a criá-lo.

Pelo Pai Nosso, oramos pelos que nos fazem mal, imitando e obedecendo Jesus. Imitando, pois assim ele o fez na cruz, e obedecendo, porque ele nos disse que orássemos pelos nossos inimigos. Igualmente, o Pai Nosso só nos permite pedir perdão pelos erros depois que já temos a capacidade de perdoar o erro alheio.

A princípio, nossa tendência é pensar em separado as “nossas ofensas” das ofensas cometidas por outros a nós. Esse verso pode soar até como barganha: perdoa-nos, porque, afinal, perdoamos também aqueles desgraçados que nos prejudicaram tão aviltantemente que se eu pudesse... Muito antes do amém, o pensamento encheu-se de ofensa, e o coração, de julgamento.

Julgar é parte do aprendizado da vida, e até mesmo inevitável em certas circunstâncias. Mas o julgamento também tem seu preço espiritual, pois cada sentença é uma espada que apontamos para nossa própria cabeça. Portanto, não é sábio julgar além do que nos cabe.

Pois bem, sabemos que enfim estamos aprendendo a pensar coletivamente quando não separamos mais as nossas ofensas das ofensas alheias. Somente ao entender que em “as nossas ofensas” estão também incluídas as ofensas dos outros dirigidas a nós, o nosso “assim como nós perdoamos aos nossos devedores” passa a ser realmente sincero.

Com esse exercício de empatia, esvaziamos o coração do julgamento que não nos cabe e nos envenena. E isso é apenas o princípio do que uma fé altruísta pode fazer, quando deixamos que ela nos ensine a sair do raciocínio puramente individualista, para onde o mundo inteiro, incluindo o mundo da fé, parece apontar.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

NATURALIZAR A MORTE

Um dos nossos maiores problemas enquanto sociedade é a incapacidade de raciocinarmos coletivamente. A dimensão coletiva do ser humano é tão importante quanto a individual, ambas se complementam e uma não substitui a outra. Uma postura pode ser, do ponto de vista individual, desejável, mas detestável do ponto de vista coletivo. O contrário também pode acontecer. Se raciocinamos como indivíduos sobre aquilo que é coletivo, erramos. E a incapacidade de pensar como sociedade tem nos distanciado de qualquer ideal de desenvolvimento.

Do ponto de vista individual, a naturalização da morte não é reprovável. Quando alguém morre, tendemos mesmo a buscar consolação e significado no aspecto natural do evento: “ele já estava bem velhinho”, “parou de sofrer”, “viveu muito bem”, “está melhor do que nós”. Essa postura, ainda que nunca chegue a ser fácil, é necessária, e mesmo sábia, diante do inevitável.

Não há nenhuma sabedoria, porém, na naturalização da morte pela ótica coletiva. Quando, coletivamente, naturalizamos a morte, a consequência é a perda daquele que talvez seja nosso único valor comum ainda sólido: a preservação da vida. Esse valor é o que nos mantém civilizados. Se naturalizamos a morte coletivamente, banalizamos o mal. E, a partir daí, o que há é o fascismo.