sábado, 31 de julho de 2021

O QUE ABORRECE O CRIADOR...

“Procure saber o que é abominação a Deus”. Foi assim que um irmão de fé encerrou a discussão sobre a proeminência ou não de uma rígida moral sexual na vida cristã. Naquela hora, não fui além. Mas a proposição voltava à mente, de tempos em tempos, quando me pegava pensando no assunto. Aqui se segue a tentativa de sintetizar algum estudo e reflexão nesse sentido.

Comecemos pela impressão que o termo causa no ouvinte. “Abominação” já soa como algo muito forte. “Abominação a Deus”, então, multiplica esse peso por infinito. Algo descrito assim, portanto, só pode ser terrível. Não há mais discussão. Mas de onde tiramos a noção de que um mero ato sexual é abominado pelo Criador do universo?

Bom, se o debate se dá, como dito, entre irmãos de fé, e essa fé se baseia na palavra de Deus, vamos a ela conferir a resposta. Jesus, o Verbo encarnado para os cristãos, nunca usou a expressão “abominação ao Senhor”, até onde se tem registro (falou apenas em “abominação desoladora”, em uma citação ao profeta Daniel, mas isso já é assunto para outra conversa). Tampouco era a moral sexual um tema central em sua pregação. Mas, indo além, consideremos a Bíblia como um todo.

É na Lei Mosaica e nos Provérbios de Salomão que encontramos a palavra cujo caráter temível tem o poder de encerrar qualquer discussão. No livro do Levítico, “abominação ao Senhor” é repetido constantemente, como um refrão para proibições específicas.

“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação.” (Levítico 18:22)

Nos Provérbios, ganha caráter mais abstrato e filosófico, referindo-se comumente a situações de injustiça.

“Balança enganosa é abominação para o SENHOR, mas o peso justo é o seu prazer.” (Provérbios 11:1)

Detenhamo-nos por um momento no Levítico. O livro é um conjunto de leis cujo propósito é a santificação do povo de Deus, ou seja, sua separação dos demais povos da terra em termos de pureza e comportamento. Tudo ali visa preservar o povo limpo para os rituais sagrados. O que torna alguém impuro o proíbe de tomar parte nos rituais e na congregação. Uma mulher que tivesse um fluxo de sangue ou um homem que tenha tido contato com essa mulher deveria manter-se afastado por determinado tempo, após realizar sua limpeza. Outras práticas mais “abomináveis” implicariam na separação definitiva de seus autores da congregação, visto que o povo de Deus deveria ser santo, como santo é o seu Deus.

Chegamos então à abominação ao Senhor. A palavra original é “to’ebah” que, segundo a Bíblia de Estudos (Nova Versão Transformadora, página 217), indica forte desaprovação e desagrado. A ideia de algo abominável também nos remete a monstruosidade. Abominar algo é rejeitá-la ou aborrecer-se dela tão fortemente ao ponto do medo e/ou do nojo.

Mas o que pois é capaz de aborrecer tão fortemente a Deus, como se humano fosse, com medo de uma barata ou uma aranha??? Veja bem, estamos falando do Ser Supremo, mas inserindo nele uma reação humana (e não no sentido nobre), incompatível com o próprio conceito de Deus. O uso da “abominação” como justificativa bastante de uma proibição específica conceito é algo como: “Não pode. Por quê? Porque não. Mas por que não? Porque Deus fica muito, mais muito aborrecido.” Isso só faz sentido, como tentaremos explicar, em um estágio infantil da fé, em que se usa o medo como explicação da proibição.

“E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele.” (1 João 4:16)

“No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor.” (1 João 4:18)

Aqui, faz-se necessário um importante parêntese. Não se trata de contrapor uma fé cristã, madura, a uma fé judaica, não cristã, imatura. Isso seria de um antissemitismo inaceitável. A leitura dos textos sagrados hebraicos não precisa necessariamente de um Novo Testamento para ser mais profunda que o “não porque não” legalista. Um estudioso dessa tradição, pela ótica não cristã, deve ter pensado, com toda a razão, ao passar pelos parágrafos acima: “a Torá é muito mais profunda do que você está fazendo parecer”. E isso era justamente o que, em outras palavras, o judeu Jesus defendia, em suas discussões com os religiosos de seu tempo. Por outro lado, são justamente pessoas do meio cristão que, hoje, com novo testamento e tudo, propõe o que ora chamamos de leitura infantil da Bíblia. Fecha parêntese.

Quanto mais específica é uma legislação, mais ela é frágil. Quanto mais geral, mais dificilmente ela se tornará ultrapassada. Mas também mais difícil será a sua compreensão, pois exigirá do leitor interpretação, bom senso, maturidade intelectual e, ao menos no caso da lei religiosa, espiritual.

Comparando, por exemplo, as duas fontes do Velho Testamento que se propõem a dizer o que aborrece a Deus, temos, de um lado:

“Todo inseto que voa, que anda sobre quatro pés será para vós outros abominação.
Mas de todo inseto que voa, que anda sobre quatro pés, cujas pernas traseiras são mais compridas, para saltar com elas sobre a terra, estes comereis.
Deles, comereis estes: a locusta, segundo a sua espécie, o gafanhoto devorador, segundo a sua espécie, o grilo, segundo a sua espécie, e o gafanhoto, segundo a sua espécie.
Mas todos os outros insetos que voam, que têm quatro pés serão para vós outros abominação.” (Levítico 11:20-23)

E, do outro:

“O caminho do perverso é abominação ao Senhor, mas este ama o que segue a justiça.” Provérbios 15:9

No exemplo de Levítico, temos uma norma direta e específica, de fácil compreensão e execução, enquanto, no provérbio de Salomão, fica por conta do leitor entender o que caracteriza o perverso e seu caminho e o que o que é a justiça. Por outro lado, séculos depois, o segundo texto ainda provoca o nosso interesse mais profundo, enquanto o primeiro, apenas curiosidade histórica. Quanto mais específica uma legislação, mas ela diz respeito às características do povo a que se dirige, seu tempo e local.

É por isso que o movimento que Jesus promove, quando questionado acerca da Lei, é de generalizá-la, desvendando o princípio que a norteia, e que deverá nortear de forma mais permanente a moral, de modo que essa não seja tão frágil às inevitáveis transformações do mundo ao longo do tempo.

“Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.” (Mateus 5:17)

Cumprir é também completar. A lei não se completa pela sua expansão detalhista, mas pela sua síntese:

“Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento.
Este é o grande e primeiro mandamento.
O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mateus 22:37-40)

Todas as ações específicas proibidas pela Lei Sagrada estavam ligadas, de alguma forma, à idolatria. Ir contra a natureza da criação de Deus era, ao mesmo tempo, ir contra a própria natureza e à soberania do Criador e fazer mal a si mesmo. Assim, um homem que se deitasse com um homem como se fosse uma mulher, desonrava a própria natureza e ao seu Criador.

Mas, essa palavra não é para todos. Assim como Jesus, ao ensinar sobre o divórcio, afirmou que aquelas palavras não eram para todos, pois há uma diversidade de condições humanas para as quais aquela questão sequer se aplica.

“Jesus, porém, lhes respondeu: Nem todos são aptos para receber este conceito, mas apenas aqueles a quem é dado.
Porque há eunucos de nascença; há outros a quem os homens fizeram tais; e há outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por causa do reino dos céus. Quem é apto para o admitir admita.” (Mateus 19:11,12)

Hoje, só quem tem medo ou não quer enxergar a realidade pode negar que é comum a homossexualidade ser inerente a natureza de alguns indivíduos. Digamos que esses indivíduos sejam homens (apenas para manter o exemplo de uma época em que sequer se preocupava em falar para mulheres). Pois bem, esses homens, quando se deitam com outros homens, não o estão fazendo como se este outro fosse uma mulher. Estão se deitando com outro homem porque sua atração natural é por homens. E, desconcertante que seja para os religiosos ortodoxos, nesse caso, desonrar sua própria natureza e contrariar a vontade do Criador seria se deitar com uma mulher sem sequer desejá-la, apenas para agradar os fiscais da vida sexual da comunidade.

Então vale tudo? E o que vamos fazer com essa tal liberdade?

“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas.” (1 Coríntios 6:12)

Tudo pode, mas nada tem que. Converter algo em um “tem que” é fazer desse algo um deus. Um falso deus é todo comportamento que nos escraviza. O que nos escraviza nos faz sofrer. E o que nos faz sofrer não nos convém.

O que não nos convém é o que faz mal ao ser humano. Em termos de comportamento sexual, como em relação a tudo, o que não nos convém é aquilo que nos desonra, ou desonra ao próximo ou ao resto da criação, que são parte de nós, assim como somos parte de Deus. Uma lei mais ampla (completa) exige do seu seguidor, nos casos específicos, interpretação, maturidade intelectual e espiritual. E, para o crente, a orientação do Espírito será sempre mais confiável que qualquer livro de receitas.

Se ainda hoje podemos buscar algum sentido na extensa legislação do Levítico, o que deveria ser evitado era aquilo que fazia mal ao ser humano. Deus é amor, e o amor infinito e incondicional à criação, se é que pode se aborrecer, se aborrece daquilo que faz mal à própria criação. Portanto, Deus não se aborrece de algo por pura mania e birra, como o faz o homem. O que aborrece o Criador, em última análise, é o que faz mal à criatura.

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