sexta-feira, 13 de setembro de 2019

IGUALDADE, IDENTIDADE, DIVERSIDADE...


Poucos notam, mas há dois relatos da criação na Bíblia, no início do livro de Gênese. A narrativa mais antiga e conhecida está em Gênesis 2 (4 a 24) . Antes dele, em Gênesis 1 e 2 (1 a 3), encontramos o relato que foi escrito depois. É um poema sobre a criação do mundo, escrito durante o exílio dos judeus na Babilônia. Nesse relato, o homem não foi criado antes da mulher. Não há costela de Adão e nem domínio de um gênero sobre outro. Ali, o texto simplesmente diz:

“Criou Deus, pois, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27).

Enquanto o primeiro relato (que, na Bíblia, vem em segundo lugar) foi registrado em papel no auge da glória do reino de Salomão, este segundo, o poema, foi escrito durante a escravidão. Ali, nivelados pela pobreza, os homens despiram-se das lentes de riqueza e poder. Essas lentes que distorcem nosso olhar, fazendo com que creiamos na ilusão de hierarquia entre uns e outros. Ali, a dominação a todos atingia. Ali, os do povo judeu, homens ou mulheres, eram todos iguais.

Mas, nesse poema da criação, também não eram iguais. Eram diferentes. “Homem e mulher os criou”. Aí há diversidade. Duas pessoas foram criadas, e uma era diferente da outra. Não havia hierarquia entre elas, mas não eram iguais.

Aqui cabe um esclarecimento semântico: precisamos saber a diferença entre igualdade e igualdade. Sim, são dois conceitos completamente diferentes! Podemos ser iguais quando não há diferença entre nós, mas também podemos ser iguais quando, com toda a nossa diferença, não há hierarquia entre nós. Quando pregamos a igualdade entre as pessoas, não estamos querendo que elas sejam todas iguais. Em primeiro lugar, porque seria, de fato, impossível. E, em segundo, porque a grande riqueza humana é a sua diversidade. Quando louvamos a igualdade entre as pessoas, não desejamos que todas sejam iguais, o que seria uma causa perdida e burra. Queremos que não haja hierarquia entre elas.

Essa diferença é óbvia, se explicada. Mas, antes disso, pode causar muita confusão. A propaganda a favor da hierarquia social se utiliza fartamente, e com muito sucesso, dessa confusão conceitual. A igualdade entre as pessoas, dizem, jamais irá acontecer, pois elas são muito diferentes entre si. Atrás desse argumento, ajuntam um sem número de seguidores, porque a diferença entre as pessoas é, de fato, mais do que desejável. Mas disso não decorre que deva haver hierarquia entre elas: que uma possa tenha poder para dominar a outra, para escravizá-la, para submetê-la à própria vontade.

Dito isso, podemos voltar ao poema e entender que Deus os criou como iguais. Mas, atenção: homem e mulher os criou. São duas pessoas, têm identidades distintas. E, porque são diferentes, o texto nos diz “homem e mulher os criou”. E chegamos ao triste engano que afeta até mesmo este século.

Não são poucos da fé que usam esse verso para dar o significado exatamente contrário. Não enxergam que Deus criou duas pessoas, e uma era diferente da outra. Veem, antes, duas categorias a que todos devem se enquadrar. Como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. E o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo binário, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

*

Somente neste século XXI, para melhor entender as identidades de gênero e a sexualidade humana, o modelo binário é incrementado. Assim, a segundo a sua identidade de gênero, uma pessoa pode ser homem ou mulher. Segundo sua preferência sexual, pode ser gay ou hétero. E, de acordo com o alinhamento de sua identidade de gênero ao sexo biológico, pode ser cis ou trans. Combinando as três variáveis no modelo, existem 8 possibilidades.

Uma pessoa toma conhecimento desse modelo. Vamos chamá-la, hipoteticamente, de Sônia. Por ser uma pessoas aberta ao novo, Sônia acha o modelo bastante interessante e esclarecedor. Ela vai, então, apresentá-lo a um amigo, a quem atribuiremos o nome de Tarcísio.

Tarcísio, diferentemente de Sônia, é avesso ao novo. Ele logo entende que, no modelo que Sônia lhe apresenta, seu papel é de homem cis hétero. Isso lhe parece bom, soando mesmo como um título nobiliárquico. Mas, quando Sônia explica as inovações que o modelo comporta, ele recua.

– Quer dizer que alguém com cromossomos XX pode ser um homem trans gay e se relacionar com um homem cis gay?

– Sim!

– Quer dizer que um homem cis pode namorar uma mulher trans, e ambos serem héteros?

– Sim!

– Iiiiiih... Pra mim, isso ficou muito difícil de entender.

Sônia sabe que Tarcísio é pós-graduado em Finanças nos EUA, e que sabe muito bem explicar a diferença entre posição comprada numa opção de venda e posição vendida numa opção de compra. Como não poderia entender um modelo simples com três variáveis binárias? Ela tenta novamente:

– Não é difícil não. Espere, vou fazer um diagrama de árvore para você ver.

– Ah, não, por favor, não precisa. Eu não dou conta disso não – diz Tarcísio, por fim, fechando-se para qualquer apelo.

Certamente, pensa Sônia, não é por falta de inteligência que Tarcísio não entende o modelo. Talvez seja por acreditar, erradamente, que a afirmação da identidade do outro ameaça a sua. Talvez seja porque está muito confortável no modelo mais simples, tendo tido sucesso em adequar-se a ele, e sentindo vertigem diante de uma mudança no status quo. Ou, vai saber, talvez tenha mesmo cansado muito a mente no seu MBA no exterior.

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Assim, como o modelo que empolgou Sônia e assustou Tarcísio, a sigla LGBT procura incluir, generosamente, as diferenças e minorias sexuais e de gênero. Busca contemplar, ainda, os que não se enquadram na classificação binária, como bissexuais. Conforme mais especificidades sejam integradas à bandeira da diversidade, a sigla pode aumentar, incluindo um “I” (intersexuais), um “Q” (queer), um “A” (assexuais), um + (quem mais chegar)...

A expressão dessas identidades ajuda, e muito, os que nelas encontram lugar. Ajuda-os a cultivar o amor próprio, compreendendo-se como parte do mundo e não como algo estranho a ele. Mas, talvez acima de tudo, esses modelos e siglas servem aos Tarcísios da vida. A eles, é oferecida a oportunidade de entender um pouco melhor a diferença entre si e o outro. De perceber que o outro não é uma ameaça a si. E, assim, superado o medo, ter o caminho livre de desculpas para respeitar o diferente.

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Mas e se nós, como Sônia, somos abertos ao novo e conseguimos identificar cada letra de tão cara sopa? Bom, nesse caso, estamos de parabéns, mas não livres de risco. Risco de, como é nossa tendência, transformamos a identidade em rótulo. De, tornando-nos ortodoxos, acharmos que a realidade deve refletir o modelo, e não o contrário. De, como um fundamentalista diz que “homem é homem e mulher é mulher”, acharmos que “L é L, G é G, B é B, T é T...”. E assim, o que deveria explicar a diferença torna-se uma padronização rígida. O que deveria enriquecer limita. E o nosso modelo complexo, feito para ajudar a entender a diversidade, torna-se pretexto para a imposição da homogeneidade. Torna-se uma prisão.

Nosso pensar pequeno a tudo quer dar fim, definir, enquadrar em categorias de que possamos dar conta. E, ao menos nisso, Tarcísio está certo. A gente não dá conta. E não precisamos dar conta. Porque se, como dito acima, o entendimento pode ajudar muitos a respeitar o diferente, muito melhor do que isso é respeitar e amar independente de entendimento. Aliás, quando entendemos que não entendemos ficamos um pouco mais próximos de entender. No limite, a diversidade é tão vasta quanto a própria humanidade. Ela é infinita, como infinito é o autor da criação. E podemos deixá-la fluir, como um rio que não precisa ser controlado.

sábado, 27 de julho de 2019

QUANDO O EVANGELHO É ESVAZIADO DE SUA JUSTIÇA


A Igreja perseguida é um elemento forte na cultura cristã. A perseguição fez parte da vida da Igreja e ainda ocorre em países em que não há liberdade para se pregar ou viver o evangelho. A forma direta ou clássica de cercear a liberdade se dá pela força, pela brutalidade, pela violência. A Igreja deseja jamais viver essa realidade, ainda que saiba que é possível que viva. Por ser concreta, é essa modalidade de repressão que sempre nos vem à mente, como se fosse a única forma de limitar a liberdade. Existe, porém, outra forma de se banir o Evangelho de uma sociedade.

A forma indireta ou sutil de banimento do Evangelho se dá pelo esvaziamento de todo o seu conteúdo que ameace o poder instituído. Quando isso ocorre, o Evangelho se transforma em uma grife e Jesus torna-se apenas um nome, esvaziado da sua pregação. Se, na perseguição direta, busca-se proibir o Evangelho, uma sociedade que esvazia esse mesmo Evangelho de todo o seu conteúdo de justiça não precisa se dar ao trabalho de proibi-lo. Insípida, a fé é permitida e até incentivada.

A grande ironia desse tema está em que, por termos muito medo da forma direta de perseguição, nos tornamos mais suscetíveis à sua forma indireta. A perseguição brutal se dá em lugares em que a religião cristã não é a hegemônica (dominante) e, por isso, sofre perseguição do poder dominante. Já a perseguição sutil é quase sedutora, porque se dá em um ambiente em que a nossa religião é a hegemônica. Afinal, pensamos erroneamente, que maneira mais fácil de impedir que o poder nos atinja do que aliando-nos a ele? Mas larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição (Mt 7:13-14).

Aliados ao poder, temos a impressão de que o Cristianismo está no controle. Mas, quando o poder é injusto, o que, para dizer o mínimo, não é pouco frequente, a fé, para se aliar ou se submeter a ele, precisa se esvaziar da justiça, pois é esta que ameaça os poderes injustos (Mt 5:10). Se a fé se abstém da justiça, ela deixa de ser ameaça, tornando-se até uma boa ferramenta para os poderes do mundo. E é essa a forma indireta de se banir o Evangelho de uma sociedade: exaltando-o formalmente, mas esvaziando o seu conteúdo de justiça.

Esse banimento do Evangelho é invisível, pois não é realizado por inimigos abertos da fé, mas pelos próprios religiosos. É um processo sutil, silencioso, quase imperceptível, e por isso é muito mais eficiente do que a repressão pela força. Não pode sequer ser chamado de proibição: abrimos mão voluntariamente dos conteúdos e princípios do Evangelho, para que ele seja aceito por patrocinadores em potencial.

Nesse contexto, não sentimos a dor da perseguição, pois estamos anestesiados. Não sentimos tampouco a dor daqueles que são vítimas do poder a que nos aliamos. Descumprimos, assim, o maior dos mandamentos (Mc 12:30-31, Lc 10:25-37). E, se essa possibilidade ainda parece irreal, lembremos alguns exemplos, a começar pelo próprio Cristo.

Jesus não propôs uma nova religião. Sua pregação resgatava o conteúdo de justiça da religião já existente (Ex 22:22, Dt 24:17, Dt 25:15,16, Sl 5:6). Mas, em seu tempo, os próprios líderes dos filhos de Israel haviam abandonado o conteúdo de justiça da fé. Para sua sobrevivência, haviam se aliado ao poder Romano, injusto por natureza e que explorava o próprio povo judeu até a miséria.

O retorno aos valores de justiça, de que eles mesmos abriram mão, representava um risco para suas alianças com o poder secular. O Evangelho de Jesus implicava a busca pela justiça, sendo incompatível com a adesão a poderes injustos. A pregação de Jesus era, assim, incômoda (Mt 23), porque desestabilizava as estruturas de dominação política e religiosa. E foi isso que levou à crucificação, em seu sentido humano.

No século XVI, homens como Lutero também não desejaram fundar uma nova religião, mas apontar as práticas de sua própria Igreja que pervertiam a justiça do Cristianismo. Os reformadores denunciaram o comércio da fé e exploração do povo. Por essa razão, a Igreja oficial expeliu-os de seu meio e, a partir daí, surgiram igrejas reformadas, protestantes contra as injustiças de seu próprio meio religioso original.

Já no século XX, a ascensão do Nazi-Fascismo e sua escalada brutal se deu no seio de sociedades cristãs. O regime nazista perseguia judeus, homossexuais, marxistas, eslavos, negros e deficientes físicos, mas não tinha, a princípio, nada contra o cristianismo, religião majoritária da Alemanha. Seria muito fácil para um cristão se adaptar ao regime, desde que ele ignorasse a dor do próximo e os mandamentos de Cristo. E a maior parte das autoridades cristãs fechou os olhos à opressão que ocorria ao seu lado.

Mas Dietrich Bonhoeffer, um dos maiores teólogos de nosso tempo, escolheu seguir os passos de Jesus e não compactuar com a injustiça. Foi preso por ajudar judeus em fuga, e morreu em um campo de concentração em 1945, compartilhando o destino dos povos perseguidos pelo nazismo.

Nos Estados Unidos dos anos 1960, o reverendo Martin Luther King lutou contra aquilo que, dentro de uma sociedade cristã, ofendia a Deus: a injustiça contra povo negro. Ele foi perseguido e morto em uma sociedade fortemente religiosa, por aqueles que diziam amar sua tradição cristã, mas que tiveram ignorar o conteúdo de justiça do Evangelho para poder viver seu ódio racial.

Chegamos aos dias de hoje e, se a perseguição direta está distante de nós, histórica ou geograficamente, constatamos que o outro tipo de banimento do Evangelho, o sutil, está muito próximo. A Igreja se aproxima do poder e se afasta de Jesus.

Neste tempo e lugar, certo liberalismo conservador individualista (também este depurado de possíveis conteúdos libertários) nos diz que a miséria do próximo é problema do próximo e de ninguém mais. Os próprios conceitos de injustiça social, exploração e opressão se tornam incômodos, como um elefante na sala. Incômodos como as vozes de Jeremias, Elias e João Batista no deserto. E, ao acharmos normal a brutal desigualdade econômica, abrimos mão de nossa fome e sede de justiça (Mt 5:6).

Para surfar a onda do consumismo individualista anestesiante, a Igreja tem que ignorar que o Evangelho nos ensina que “tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso e fostes ver-me (...)” e que “sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25:35-40). De igual modo, para naturalizar a inserção dos crentes na lógica do lucro econômico, a igreja deve também ignorar as palavras de Jesus, que afirma não podermos servir a Deus e às riquezas (Mt 6:24).

Neste tempo e lugar certa teologia prega também a dominação cristã sobre o mundo. Somos convencidos de que o povo de Deus deve ocupar todos os espaços estratégicos na sociedade. Mantemos assim relações promíscuas com o poder secular, e para isso precisamos esquecer a afirmação de Jesus de que seu Reino não é deste mundo (Jo 18:36).

Neste tempo e lugar, ouvimos que “bandido bom é bandido morto”, e queremos repetir acriticamente o mesmo brado. Para isso, temos de esquecer que Jesus, porém, nos diz: “não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt 5:38-39). E que também nos diz: “amai os vossos inimigos” (Mt 5:43-46, Lc 6:32-36). Precisamos, igualmente, tapar os ouvidos às recomendações apostólicas de que a ninguém paguemos mal por mal, que não nos vinguemos e que vençamos o mal com o bem (Rm 12:17-21). Mas na esteira do ódio que de todos esses mandamentos esquece, nos esvaziamos, desafortunadamente, de toda mansidão, toda misericórdia e todo caráter pacificador (Mt 5: 5-9).

Por fim, neste tempo e lugar, certa ideologia disfarçada de fé associa o nome de Jesus ao símbolo do lobby armamentista. É a cereja do bolo, o ápice do desrespeito ao Evangelho e da negligência a seu conteúdo.

Ao associarmos Jesus à arma de fogo, invalidamos o fato de ele não ter vindo como líder militar que comandaria exércitos (Mt 26:52-53), frustrando a expectativa de muitos. Temos de esquecer também que ele nos diz: “embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada pela espada morrerão” (Mt 26:52). Para ostentarmos o nosso “dedinho-arma” e ainda pensarmos que seguimos Jesus, temos de esquecer essas palavras, ou fingir que espada e arma de fogo são coisas completamente diferentes. Estaremos enganando, no máximo, a nós mesmo.

Assim, somente editado de todas as suas “cenas perigosas”, o Evangelho está pronto para ser transmitido em TV aberta, com os bons índices de audiência garantidos. Submissa e atrelada às elites econômica, política e militar, a elite religiosa pode até colher os frutos materiais de seu trabalho (a qual dos senhores teriam servido?). E a igreja, esvaziada de todo o seu conteúdo de justiça, torna-se insípida. Bom é o sal; mas, se o sal vier a tornar-se insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens (Mt 5:13, Mc 9:49-50, Lc 14:34-35).

Assim, ser discípulo de Jesus é muito mais do que seguir cegamente aqueles que põem Deus acima de todos, mas apenas da boca pra fora. Porque Jesus nos diz que, se a nossa justiça não exceder a de muitos líderes religiosos, não viveremos, de fato, o Reino de Deus (Mt 5:20). E, a muitos dos que julgam que em seu nome profetizam, expulsam demônios e realizam muitos milagres, Jesus diz claramente: “nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:22-23).

sábado, 16 de março de 2019

O FIM DO MUNDO NÃO É O FIM DO MUNDO


A ideia de fim do mundo desperta medo no coração das pessoas. É natural que seja assim, mas, para aqueles que associam a consumação dos séculos à volta de Cristo, não deveria tal acontecimento trazer conforto? E, no entanto, o pavor do fim dos tempos é ainda mais agudo entre os crentes. Nesse meio, o que se observa muitas vezes é um alarmismo, como se uma árdua “preparação” fosse necessária. A partir daí, o risco de se adotar uma postura neurótica em relação à vida é enorme. Ou seja, por mais que se faça, a pessoa pode sempre se achar em dívida diante do Juízo Final.

Para saber se tanto desespero se justifica à luz das escrituras, vamos examinar o que o próprio Jesus disse sobre o assunto, no Evangelho segundo Mateus. Este estudo não se propõe a analisar toda a riqueza do sermão profético. Nosso foco é o ensinamento sobre a postura prática desejável aos cristãos, com vistas à volta de Cristo.

1- Não se deixe enganar.

Em Mateus 24, os discípulos perguntaram a Jesus sobre sua vinda e o fim dos tempos. Ao responder, sua primeira preocupação foi preveni-los quanto à ação de enganadores.

4. E ele lhes respondeu: Vede que ninguém vos engane.
5. Porque virão muitos em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo, e enganarão a muitos.
(...)
11. levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos;
(...)
23. Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo Ali! Não acrediteis;
24. porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos.
(...)
26. Portanto, se vos disserem: Eis que ele está no deserto!, não saiais. Ou: Ei-lo no interior da casa!, não acrediteis.

De fato, o medo excessivo do fim do mundo expõe o crente a ser enganado por falsos profetas. Não cair no charlatanismo é a primeira lição do Sermão Profético. “Eis que de antemão vo-lo tenho dito”, completa Jesus. Não temos, pois, desculpa para nos deixar prejudicar por aproveitadores da fé.

2- Desgraça e caos não necessariamente significam fim dos tempos.

Em segundo lugar, Jesus nos acalma em reação a acontecimentos caóticos à nossa volta. Quem nunca ouviu algo como “tem tanta coisa ruim acontecendo, será o fim do mundo”? Não, diz Jesus, não será o fim do mundo, apenas o princípio das dores. Olhai não vos perturbeis; porque forçoso é que assim aconteça; mas ainda não é o fim.

6. E, certamente, ouvireis falar de guerras e rumores de guerras; vede, não vos assusteis, porque é necessário assim acontecer, mas ainda não é o fim.
7. Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino, e haverá fomes e terremotos em vários lugares,
8. porém tudo isto é o princípio das dores.

3- O bom proceder em meio ao princípio das dores

12. e, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos.
13. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo.

Iniquidade é injustiça, maldade. O que, de fato, assistimos o tempo todo no mundo contemporâneo, ainda que não seja novidade de nossa época. Viver neste mundo é viver em meio à dor.
E temos a tendência natural de reagir à dor com agressividade, a responder à violência com violência. A dor da iniquidade, da injustiça, faz com que o amor se esfrie em nós. Mas quem perseverar no amor, apesar de toda a iniquidade, será salvo.
A salvação é justamente essa: que a chama do amor permaneça acesa em nós. E para que o amor não se esfrie, é preciso manter-se calmo, mesmo diante da iniquidade.
Como disse Jesus, os revezes da existência, mesmo os grandes, não são o fim. Então, temos de aprender a conviver com eles pelo tempo que for necessário. Quanto ao fim...

4- Nem perca tempo tentando descobrir quando, porque ninguém sabe.

36. Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão o Pai.
(...)
42. Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor.
43. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa.
44. Por isso ficai também vós apercebidos; porque à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá.

Se soubéssemos a hora, era só ficaríamos esperando. Mas não sabemos, então temos de vigiar. Isso quer dizer que ficar em estado de alerta o tempo todo? Não, porque...

5- Vigilância não é falta de descanso.

Na parábola sobre o pai de família, Jesus deixa claro que este não sabe a que horas o ladrão vai chegar. Ora, sendo assim, melhor faz ele em ir dormir. Mas como? A parábola, afinal, é uma exortação à vigilância!
Disso, então, só podemos inferir que vigiar não é ficar alerta o tempo todo, algo humanamente impossível. Lutar contra nossas limitações, descuidando da própria saúde física e mental, é uma forma de errar o alvo.
Vigiar não é querer controlar tudo, mas entregar o controle a Deus. Desse modo, o dono da casa poderá dormir tranquilo e, quando Jesus chegar (aqui o ladrão é Jesus) encontrá-lo-á vigilante, mesmo que esteja dormindo.

6- O bom proceder com vistas ao fim do mundo.

No final de Mateus 24 e em todo capítulo 25, Jesus contrapõe o bom e o mau proceder diante de sua volta. São quatro passagens: as parábolas do bom servo e do mau, das dez virgens e dos talentos e a descrição do Grande Julgamento.

Fiel e prudente x Mau e hipócrita

Na parábola dos dois servos, o bom servo é aquele que, mesmo na ausência de seu senhor, faz o que este lhe confiou: dar a seus conservos o sustento a seu tempo.
Assim, pois, o somos, conforme praticamos espontaneamente o amor, dividimos o pão, o material e o espiritual, a comida e o conhecimento. “A seu tempo” também deve ser destacado: é uma medida de equilíbrio, pois ninguém pode nem deve trabalhar o tempo todo. O jugo deve ser suave, e o fardo, leve.
O mau servo é aquele que espanca os seus companheiros e passa a comer e beber com ébrios. Podemos entender por embriaguez tudo aquilo que consome tanto nossa atenção e nossas energias a ponto de nos desviar do que é mais importante (dar ao próximo o sustento a seu tempo).
O servo mau é descrito como hipócrita, pois possivelmente faria o bem aos olhos do senhor, mas na ausência dele, se inclina para o mau e para o próprio ego.

45. Quem é, pois, o servo fiel e prudente, a quem o senhor confiou os seus conservos, para dar-lhes o sustento a seu tempo?
46. Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim.
47. Em verdade vos digo que lhe confiará todos os seus bens.
48. Mas se aquele servo, sendo mau, disser consigo mesmo: Meu senhor demora-se,
19. e passar a espancar os seus companheiros e a comer e beber com ébrios,
50. virá o senhor daquele servo em dia em que não o espera e em hora que não sabe
51. E castigá-lo-á, lançando-lhe a sorte com os hipócritas; ali haverá choro e ranger de dentes.

Sábias x Néscias

Na parábola das dez virgens, estas esperam o noivo, que tarda a chegar. Ao final, Jesus (aqui, o noivo) leva consigo apenas cinco delas, as prudentes.


1. Então, o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram a encontrar-se com o noivo.
2. Cinco dentre elas eram néscias, e cinco, prudentes.
3. As néscias, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo;
4. no entanto, as prudentes, além das lâmpadas, levaram azeite nas vasilhas.
5. E, tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e adormeceram.
6. Mas, à meia-noite, ouviu-se um grito: Eis o noivo! Saí ao seu encontro!
7. Então, se levantaram todas aquelas virgens e prepararam as suas lâmpadas.
8. E as néscias disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão-se apagando.
9. Mas as prudentes responderam: Não, para que não nos falte a nós e a vós outras! Ide, antes, aos que o vendem e comprai-o.
10. E, saindo elas para comprar, chegou o noivo, e as que estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta.
11. Mais tarde, chegaram as virgens néscias, clamando: Senhor, senhor, abre-nos a porta!
12. Mas ele respondeu: Em verdade vos digo que não vos conheço.

13. Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora.

O texto mostra mais uma vez que o conceito de vigilância não é ficar alerta o tempo todo. Repare que as prudentes também dormiram! O que as diferencia não é o dormir ou não dormir, mas o azeite nas vasilhas, para manter as lâmpadas acesas. O que é o azeite?

O temor de Deus

O temor de Deus não é ter medo de Deus. É ter intimidade com Deus, entregar a ele o controle. Vigiar é estar na presença de Deus. Esse é o azeite para nossas lâmpadas, combustível que garante que nossa luz não se apague. Vigiar é viver em oração, é estar com o coração perto de Deus. Isso é o que nos faz proceder bem, ajudando nosso próximo, mesmo quando estamos descansando ou distraídos, mesmo sem perceber ou se preocupar em fazer o bem por estar sendo observado. O temor é uma postura de respeito e de consideração: considerar Deus enquanto Deus, amor e sabedoria absolutos. A relação que se estabelece a partir dessa consciência é de carinho, amparo e confiança, e não de medo.

Compartilhar x Enterrar talentos

14. Pois será como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens.
15. A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu.
16. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco.
17. Do mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois.
18. Mas o que recebera um, saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor.
19. Depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles.
20. Então, aproximando-se o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei.
21. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.
22. E, aproximando-se também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, dois talentos me confiaste; aqui tens outros dois que ganhei.
23. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.
24. Chegando, por fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste,
25. receoso, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu.
26. Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei?
27. Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu.
28. Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez.

Aqui, há novamente duas atitudes contrapostas: compartilhar os talentos que nos foram dados, multiplicando-os, ou enterrar o nosso talento.
É Deus quem dá o talento, a capacidade e as condições para trabalhar. O talento é conferido a cada um em única medida. E Deus pede a cada um somente segundo as suas possibilidades. É possível e desejável exercer esse talento de forma espontânea, natural, sem medo e nem sacrifício, antes, na medida do prazer. Entre os três servos a quem foram confiados talentos, aquele que se alarmou e teve medo de Deus foi justamente o que acabou não utilizando seu talento.

Enxergar x Ignorar o próximo

Por fim, Jesus descreve o grande julgamento em que, novamente, o bom e o mau proceder são contrapostos. As palavras da passagem são mais que conhecidas. Em suma, terão procedido bem com Jesus aqueles que fizeram bem ao seu próximo. Igualmente, a seguir, o mau proceder diante de Jesus é explicitado como o ter ignorado o próximo.

34. Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.
35. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes;
36. estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me.
37. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber?
38. E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos?
39. E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar?
40. O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.

Aqui, deve ser destacado o fato de que aqueles que fizeram bem ao próximo e, consequentemente, a Jesus, não o fizeram com o objetivo de receber recompensa. Aliás, como vemos nos versículos 37 a 39, eles nem perceberam que fizeram o bem, pois fizeram espontaneamente. Não fizeram o bem por medo do juízo final, mas porque era bom fazê-lo.

Conclusão:

Vigiar é estar na presença de Deus. A partir daí, espontaneamente, daremos ao nosso próximo, a seu tempo, o sustento. Utilizaremos nossos talentos de forma sábia, na medida de nossas possibilidades. Repartiremos o pão material e o espiritual com quem tem fome e sede, seja de comida, de bebida, de amor ou e de conhecimento. E descansaremos tranquilos, sabendo que Deus está no controle.
O bom proceder com vistas ao fim do mundo é, afinal, o mesmo bom proceder com vistas à continuidade da vida. Porque o porvir é apenas a continuação do que começa aqui, do governo de Deus que está no meio de nós.
Sem necessidade de ter medo, vivamos pois em alegria. Pelo tempo que só Deus sabe, pois só a Ele cabe saber.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

CRISE, FASCISMO E O SUPER-HOMEM


Afinal, o Super-Homem é fascista? Esta pergunta surge estimulada pela recente obra  “Super-Homem e o Romantismo de Aço”, de Rogério de Campos. A resposta deste historiador e leitor de quadrinhos é simples: depende.

Sim, pois, ao contrário do Lula, que deixou de ser pessoa e se tornou uma ideia, o Super-Homem nasceu como uma ideia e se tornou uma pessoa, ou ao menos um personagem. E este, o nosso velho conhecido, o repórter Clark Kent, não é fascista.

Com seus super-poderes, Clark poderia dominar o mundo, mas, tendo sido muito bem educado pelo casal Kent, prefere manter uma postura legalista. O Super-Homem escoteiro que conhecemos hoje está muito mais para constitucionalista liberal. Pode até ter votado alguma vez em Ronald Reagan, mas jamais ajudaria a eleger Trump (este muito mais próximo da versão magnata do Lex Luthor, dos anos 80).

Grande Depressão e o Sonho de Superpotência

Mas não é a “pessoa” que importa aqui, mas a ideia do Super-Homem, e esta é de fato muito próxima à essência do fascismo. O contexto histórico em que o super-herói é criado é o mesmo que gerou o nazi-fascismo. Diga-se de passagem, a inspiração filosófica para ambos também é compartilhada, tenha ela sido deturpada ou não.

O Super-Homem dos quadrinhos é fruto da grande depressão. Naquele contexto social, as pessoas estavam completamente impotentes e sonhavam com a superpotência. Quem já leu as primeiras histórias do herói sabe que o que o personagem inicialmente era muito diferente do que se estabeleceu depois, com sua mitologia bem detalhada construída ao longo das décadas.

O Super primordial, basicamente, é um homem que consegue fazer tudo o que quer, e assim “dá um jeito” em tudo que está errado. Isso é fruto direto do sentimento de impotência da população americana nos anos 30, durante a Grande Depressão.

O Super-Homem primordial era um justiceiro. Assim como os anos 30, ele se confundia entre os radicalismos de esquerda de direita. Nesta sua primeira fase, era comum vê-lo torturando um mafioso: levava o bandido para as alturas, até que este, morrendo de medo, pedisse clemência.

Igualmente, o proto-Super era muito sensível às questões sociais. Em sua terceira história, a missão dele é se infiltrar em uma mina, onde trabalhadores estão sendo explorados. Nessa história o vilão é o patrão que explora os mineiros, e o super-homem sequer veste sua roupa colorida, permanecendo a ação toda com seu disfarce: roupa e capacete de operário.

Aquele impressionante personagens inspirou dezenas de outras criações dos anos 30 e 40, que formaram a  “Era de Ouro ” dos quadrinhos. Mas, de fato, a essência do Super-Homem e dos demais super-heróis é a mesma do fascismo: a ideia que todos os problemas podem ser resolvidos pela força.

Os Super-Heróis Vão à Guerra

E aí chegam os anos 40. Os EUA entram na Segunda Guerra e o Super-Homem, assim como todos os super-heróis norte-americanos passam a lutar contra o nazi-fascismo.

Os historiadores do quadrinhos mais atentos notam aí um paradoxo: o Super-Homem luta contra o fascismo mas sua ideia base, da resolução dos conflitos pela força, é essencialmente fascista. Ao final da Guerra, a exemplo do Estado Novo varguista, o Super-Homem tem de resolver esse paradoxo. A partir de então, o personagem é “encaretado”. Não perde a força, mas abandona em grande medida a violência.

A versão do Super-Homem mundialmente difundida pelas décadas seguintes é a do “legalista”, aquele Superman ético, que não mata. É muito mais próxima de uma imagem de Jesus do que do valentão justo e indignado, que é o que ele era no início da carreira.

E, de fato, se não fosse por sua integridade, o Super-Homem não seria mais do que um General Zod ou um Super-Mussolini.

Cinema de Super-Heróis e o Novo Fascismo?

Tirando novamente o foco do velho Clark de Pequenópolis, tomemos, mais amplamente, o conceito de super-herói, o heroísmo que está vinculado a ao super-poder. Se o condicionamento da virtude ao poder é tipicamente fascista, como dissemos acima, estaria o recente boom do cinema de super-herói relacionado à acensão do novo fascismo em escala mundial?

Talvez não, mas só essa indagação nos convida a ter um olhar crítico sobre os produtos culturais de ação e aventura. Para além das explosivas cenas de ação, é em pequenos detalhes, como na postura do suposto herói diante de um inimigo caído, que descobriremos a mensagem implícita daquela obra.

sábado, 5 de janeiro de 2019

ESTRUTURAS DE MERCADO E LUTA DE CLASSES (UMA TRANSA CONCEITUAL PARA O SÉCULO XXI)


João, marxista, e Marcelo, liberal, estavam conversando sobre o contexto político e social, quando João educadamente criticou o olhar de seu amigo: “Está faltando luta de classes nessa sua análise”. Marcelo torceu o nariz para a sugestão: “Eu realmente não gosto desse conceito. Para mim, inclusive, ele estimula o ódio”.

Tal contragosto não é apenas de Marcelo. Hoje, muitos veem a luta de classes como um conceito antigo, antiquado e talvez muito dramático para os humores individualistas destes 2000 e poucos. Marcelo não enxerga a sociedade capitalista como uma luta de classes, mas como uma competição entre indivíduos. E nesta, aparentemente, ele não enxerga estímulo ao ódio.

Estruturas de Mercado

Mas o que Marcelo e muitos outros talvez não se lembrem, é que a teoria que embasa a competição entre indivíduos é tão antiga quanto a marxista. Foi no século XIX que a teoria econômica neoclássica modelou a competição capitalista, elaborando suas leis a partir de uma suposta competição perfeita. E, acreditem, a premissa básica dessa estrutura de mercado é a igualdade.

A competição perfeita é a primeira estrutura de mercado apresentada em qualquer manual de economia. Nela, todas as firmas competem em pé de igualdade. Não há barreiras à entrada de novas firmas e nenhuma empresa tem individualmente o poder de influenciar o preço. Assim, no longo prazo, as firmas não têm lucro econômico, ganhando apenas o suficiente para manter-se funcionando.

Saindo da teoria, já no século XIX ficou claro que a tendência natural das sociedades industriais não era essa. A realidade econômica não se dava em uma estrutura de competição perfeita, pois as firmas tinham poder de mercado diferenciado. Assim, passaram a ser estudadas estruturas em que, diferentemente da  competição perfeita, havia concentração de mercado: o monopólio (apenas uma firma) e o oligopólio (poucas firmas).

Monopolistas e oligopolistas apresentam comportamento peculiar. Uma prática comum quando poucas empresas têm muito poder de mercado é a formação de cartel ou conluio. Nesse caso, as firmas dominantes, ao invés de concorrer entre si, fazem acordos para potencializar seus lucros, sacrificando a eficiência econômica. Também é comum que as firmas com alto poder de mercado se utilizem dessa vantagem para impedir a entrada de novas empresas. Assim, o poder de mercado é usado para criar barreiras à entrada, e essas barreiras à entrada aumentam o poder de mercado.

Como a concentração de poder de mercado impedia os ganhos de eficiência prometidos pela teoria liberal da competição perfeita, abriu-se o espaço para a intervenção governamental. Assim, para garantir que a competição fosse justa, até mesmo o estado liberal deveria intervir no mercado, impedindo que a concentração monopolística ou oligopolística destruísse a concorrência. A lei de Sherman, de 1897, é um marco da política antitruste norte-americana.

Luta de Classes

Mas o que isso tem a ver com luta de classes? Ora, partindo dessa análise liberal do mercado, propomos retomar a análise dos indivíduos na sociedade. Assim como firmas acumulam naturalmente poder de mercado, indivíduos acumulam riquezas ao longo da história, passando a seus sucessores.

Ora, o capitalismo real, diferentemente do modelo teórico da competição perfeita, não partiu de uma alocação inicial igualitária. Ele acumulou as desigualdades dos modos de produção anteriores, que continuaram influenciando a distribuição de poder no mundo contemporâneo, ainda que modificadas. E, depois de dois séculos de desenvolvimento desse sistema, a média dos indivíduos mais ricos já nasce com “poder de mercado” previamente adquirido (riqueza e influência), usando-o para impedir que os indivíduos com menos poder de mercado ascendam e compitam com eles.

Esses privilegiados tampouco competem entre si. Assim como muitos oligopolistas, os indivíduos com mais “poder de mercado” se unem em conluio, em cartel, para maximizar seus ganhos e impedir que os de fora do cartel ascendam. E assim, dirá João Marxista a Marcelo Liberal, a luta de classes está posta, independente de os estratos de baixo a enxergarem.

Nessa luta, a principal arma da elite do dinheiro é a ilusão de que estamos em uma competição perfeita. Os ricos têm consciência de classe e agem como um cartel. As classes de baixo (incluindo a classe média), tendo abandonado o conceito de luta de classe, se enxergam como indivíduos, em uma competição homogênea e sem barreiras à ascensão.

Essa ilusão facilita poderosamente a dominação. Se parte da sociedade exigir que o Estado intervenha para criar condições de igualdade, a elite condenará essa atitude, alegando que se está impedindo a competição. Na verdade, tudo que os que estão no topo não querem é concorrência.

A competição entre os indivíduos, assim como aquela entre as firmas, não se dá em condições iguais. Nossa estrutura de mercado não é a competição perfeita, mas o oligopólio. Quando a sociedade decide coibir o abuso do seu poder de mercado das classes mais altas, criando condições para que os indivíduos de baixo possam competir, ele não está interferindo na concorrência. Ela está interferindo naquilo que impede a concorrência.

Portando, a intervenção governamental é necessária não apenas para garantir a concorrência entre firmas, mas também entre indivíduos. Nesse sentido, assim como política antitruste, as políticas de redistribuição de renda e a universalização dos serviços públicos são dever do estado.
Se Marcelo Liberal Capitalista acredita no desenvolvimento da civilização pela competição, ele não apenas não deve criticar as proposições acima. Ele tem a obrigação de endossá-las, para que a competição justa seja garantida. Caso contrário, o abuso do poder das elites gerará o mesmo tipo de ineficiência que sabidamente é gerado pela concentração de mercado.

Uma Síntese Possível

Então João Marxista também acredita na virtude da competição? Na verdade, nem tanto. Ele crê que uma sociedade baseada na cooperação será muito mais próspera e feliz do que aquela baseada na competição. As gerações que acreditaram naquela velha ideia da luta de classes não necessariamente tiveram seu ódio potencializado. Pelo contrário, com a consciência de classe e de pertencimento a uma coletividade, muitas vezes experimentaram os milagres que a solidariedade pode realizar.

Mas mesmo que Marcelo Liberal esteja certo, e a competição seja um motor civilizatório mais eficiente que a cooperação, ele e João estarão de acordo sobre não poucas questões. Ambos reconhecerão como óbvia a necessidade de se promover políticas afirmativas, sistema tributário progressivo, educação e saúde universais, políticas de segurança alimentar. Se não apenas por humanismo (que seria motivo suficiente), pelo bem da competição. E esse consenso entre Marcelo e João já será um enorme avanço para a civilização.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

6 DICAS PARA DISCUTIR POLÍTICA SEM ÓDIO (ESSA NECESSÁRIA ARTE)


Situação tão comum dos anos 2010: você está cansado e quer relaxar. Para descansar o cérebro, pega o seu celular e vai ver o whatzapp, ou entra no facebook. Quando de repente um monstro invade sua zona de conforto: uma ideia repulsiva, na forma de meme, texto, notícia compartilhada... Quem foi o responsável por isso? Como pode aquele seu parente ou amigo de longa data pensar assim? Compartilhar esse absurdo? Você deve responder à altura? Xingá-lo? Ou deixar para lá porque a discussão nem vale à pena?

Nos últimos anos, a sociedade brasileira tem se encalacrado em uma odienta polarização ideológica. Seja de que lado dela se esteja, há de se concordar: está difícil, doloroso mesmo. Diante de ideias que nos soam absurdas, distantes que estão de nossos base de valores, temos a tendência de tomar uma entre duas atitudes: conflito ou fuga. Ou nos esquivamos da discussão, ou entramos nela de sola. Nosso objetivo aqui é mostrar que ambos os caminhos estão errados, e dar algumas dicas de como debater sem brigar.

É óbvio o porquê do embate conflituoso ser indesejável: perde-se a racionalidade, com isso a razão e, ao final, os amigos. Sem falar que dificilmente se convence alguém na base do grito, caso o convencimento seja o objetivo da peleja (veremos abaixo que a chave para a serenidade no debate também passa por rever os objetivos do diálogo).

Fugir do debate, de forma definitiva, tampouco é desejável. Porque a fuga de hoje não impedirá que ele nos alcance amanhã. Eu posso não refutar as ideias absurdas que surgem ao meu redor, mas as consequências delas vão me atingir em algum momento. A radicalização não é de indivíduos, é um fenômeno social. E o diálogo entre opostos é a única cura para ela.

Muitas vezes o seu interlocutor se acomodou em ideias extremas porque elas são validadas por todo discurso que lhe chega. Seu tio fascista, por exemplo, não nasceu fascista. Mas nos últimos cinco anos, ele vem se alimentando quase que exclusivamente de conteúdo monofásico. Por falta de antítese, as teses dele se solidificaram na forma do que você chama de fascismo. A apresentação de uma antítese é fundamental para o amadurecimento intelectual de qualquer pessoa, não apenas do seu tio. No agregado, a troca é desejável e necessária para se sair da polarização e fortalecer intelectualmente a sociedade como um todo. Por isso, não se deve fugir do debate.

A esta altura, você já deve ter percebido que essa é uma via de mão dupla. Não é só o seu tio fascista que vai crescer intelectualmente com o diálogo: você também vai. Porque se você disser que a opinião dele está errada, ele vai querer saber por que. E você vai ter que se perguntar o porquê de algo que para você é óbvio. É aqui que ficamos nervosos, irritados, dizemos "não dá pra conversar com você" ou simplesmente agredimos com um palavrão. Porque nos sentimos ameaçados.

Nos sentimos ameaçados porque achamos que nossas crenças e valores são parte de nós, e não uma construção social. Assim como seu tio fascista é uma construção das influências que escolheu (JN, MBL, Jovem Pan), a minha e a sua opinião são construídas pelas influências que recebemos ao longo da vida, seja esse capital cultural escolhido ou não. Entendendo isso, percebemos que questionar nossas opiniões não um ataque pessoal.

E aí nos desarmamos. Questionamo-nos. Abrimos a guarda e, que surpresa boa, percebemos que pensamos o que pensamos por um bom motivo. Nossa opinião retornará à superfície muito mais fortalecida.

Claro, na teoria, tudo é muito bonito. Mas, "na prática", você há de me dizer, "não é bem assim". Por isso, seguem algumas dicas para não perder as estribeiras em uma discussão com seu oposto ideológico.

1- Não é pessoal: a minha ideia não sou eu.

A primeira dica já foi delineada acima. Para desconstruir o outro, é preciso abrir a guarda para ser desconstruído. E aí, temos medo de mudar de opinião e perder a identidade. De fato, o olhar do nosso oposto nos desconstrói, mas não devemos temer. Essa desconstrução é uma viagem de autoconhecimento que só pode fortalecer. Pegando emprestado o conceito que Schumpeter criou para descrever a competição capitalista, o que ocorre é uma "destruição criadora". Nem você nem seu adversário intelectual são destruídos em um debate, e ambos saem mais inteligentes dele. E, de quebra, a consciência de que nossas ideias são uma construção nos livra do fanatismo.

2- Leia sempre.

Somos construção, mas jamais acabada. Um livro, muito mais do que um vídeo no youtube, aprofunda o nosso raciocínio. Com a leitura, por fim, treinamos o distanciamento das ideias necessário à racionalidade, especialmente quando buscamos textos defendendo posições diversas.

3- Jogue fora a vaidade.

Conhecemos nossos limites intelectuais, os outros não. Nosso medo é de expor esses limites. Ser derrotado intelectualmente de forma humilhante. Mas esse medo só ocorre se nosso objetivo é vencer a discussão e, se esse é o objetivo, ela se torna fútil. Se o objetivo é convencer o outro (algo comum em período eleitoral), ela pode se tornar igualmente estressante. Não temos controle sobre o outro, apenas ilusão de controle, e a consciência dessa falta de controle é duplamente libertadora. Não, o objetivo do debate não é vencer nem convencer, é o debate em si. É a busca coletiva da verdade. É apresentar ao outro o seu olhar e conhecer o dele. Um sinal de que isso acontece é quando há pausa para refletir antes de se rebater uma ideia.

4- Consciência de que o debate não tem fim.
Vivemos em uma sociedade que está sempre com pressa. Quando uma ideia “absurda” invade nossa zona de conforto, queremos expulsá-la rápido. Só que o debate de qualidade não combina com ansiedade. A ansiedade manda a racionalidade para o ralo. Entra aqui a sabedoria de entender que o debate não tem fim. Se não tem fim, tampouco tem vencedores ou perdedores. O diálogo é para a vida inteira.

5- Nem todo o momento é propício.

Se o debate não tem fim, você não precisa responder imediatamente, correto? O diálogo de qualidade exige o momento cerebral propício. Dissemos que o debate é para a vida inteira, mas isso não quer dizer que ele tem de ocorrer o tempo todo. Se, ao entrar em uma discussão, você perceber que está com raiva, propenso à agressividade, é sinal que esse não é o momento de debater. Talvez você esteja cansado. Guarde essa discussão para o momento em que você esteja calmo e racional, mais propenso a ser respeitoso e também a dar as respostas mais inteligentes. Nosso cérebro precisa de descanso regular. Na maior parte do dia, é preciso descansar da guerra ideológica. Nessas horas é mais saudável ver vídeos de gatos fofos do que de política, assistir Ponte Preta x São Caetano do que noticiário.

6- Sem complexo de messias.

Você não é o Neo de Matrix, nem o Jaspion. Não precisa se obrigar a levar o debate nacional nas costas. O que defendemos aqui, ao postular que não é desejável fugir do debate, é muito mais uma mudança de postura do que um fardo individual. Portanto, respeitemos nossos limites individuais, aceitando nossa impotência em relação à maior parte da realidade. Isso nos acalma. Contente-se em fazer a sua parte para o amadurecimento intelectual da sociedade, sem ansiedade para ver os resultados. É no agregado que essa mudança de postura faz efeito.

***

Em algum momento destes anos loucos, tive a felicidade de conhecer um mantra que diz “expresso minha verdade com amor e coragem”. Expressar sua verdade é fundamental, e exige coragem. Mas o amor tem de vir antes da coragem, caso contrário, é melhor nem se expressar. É o amor que faz com que essa sua verdade seja expressa da melhor forma, contribuindo para a busca da verdade coletiva. E é esse amor, ao fim e ao cabo, a essência e finalidade de toda troca.