quarta-feira, 16 de setembro de 2020

DIFERENÇA ENTRE IDEOLOGIA E PROSELITISMO IDEOLÓGICO

O grande equívoco no debate sobre ideologia no ensino é confundir ideologia com proselitismo ideológico. Este último, sim, é sempre a tentativa de colonização do outro e, por isso, indesejável. O antídoto para a colonização do outro é a liberdade do professor e do aluno. E, no, entanto, aquele que defender a educação libertária, certamente será taxado de "ideológico". De fato é: o respeito à liberdade do aluno é ideologia, como também é ideológica qualquer tentativa de determinar o que deve e o que não deve ser ensinado nas escolas. O movimento "escola sem partido", ao propor uma inaceitável intervenção do estado no trabalho do professor, filia-se escancaradamente a uma ideologia ultraconservadora, mesmo vendendo-se como combate à “ideologia”. Não é o caráter ideológico de um discurso que é bom ou ruim, mas o conteúdo desse discurso e dessa ideologia.

A ideologia, como a política, não é exclusividade da burocracia partidária. Religião é ideologia. Os direitos humanos e qualquer direito ou lei é ideologia. A pátria é uma ideologia. O jornalismo, mesmo o mais honesto, é necessariamente ideológico, a começar pela escolha do que deve ser noticiado ou não. E até uma escola que ensine apenas matemática terá sua ideologia, ao escolher alienar o estudante das questões sociais, com todas as consequências que essa lacuna trará para a sociedade.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

UM SALMO

Saber que lá é melhor

E que lá começa aqui

Perder o medo da morte

Sem criar medo da vida

Saber que em Suas forças

Por tudo posso passar

Perder o medo da morte

Sem jamais negar a vida

Viver o tempo presente

Construindo o que se dá

Vencer o medo e a morte

Coragem! Viver a vida

Saber que um dia ela vem

Sem motivo pra apressar

Sem ter medo da chegada

Apreciar o caminho

Um dia de cada vez

Rumo ao sábio coração

Perder o medo da morte

Sem deixar de amar a vida

quarta-feira, 22 de julho de 2020

APARENTE CONTRADIÇÃO NA BUSCA DO EQUILÍBRIO


Neste mundo em que vivemos a ilusão da individualidade, a busca pela harmonização entre o bem estar próprio e o bem estar do próximo, em busca do equilíbrio desejável, não é tarefa óbvia. Já sabemos que a saúde emocional pede que separemos o que é nosso do que é do outro. Sabemos também que a saúde espiritual será maior na medida e que, superando o ego, entendamos que “eu e o universo somos um”. Ora, a questão que surge, desafiando nosso entendimento é: há aí uma contradição?

Só aparente. Saber que o que é do outro não é seu não impede de ajudar esse outro. Pelo contrário, lhe dá uma visão mais nítida para que essa ajuda seja feita de forma mais segura, dentro do equilíbrio acima mencionado. Essa medida (não óbvia, como dito) é a que deve ser buscada. É a melhor para si (pois não nos coloca em posições de sacrifício vão, que nos prejudiquem ou nos destruam, sem que um bem maior seja necessariamente alcançado) e também para o próximo. O que é seu é o que te cabe e é possível fazer, e isso inclui a sua ajuda. Ajudar ao próximo, assim, tem de ter por condição não fazer mal ao todo, e isso inclui a si mesmo. Caso contrário, alimentamos o ego, ainda que o de outro. Fazer mal a si é fazer mal ao outro, e ao todo.

Em tempo: o auto-esvaziamento, a kenosis, é a superação do ego em nome do bem maior. O sacrifício, nesse sentido, nunca será a regra, mas a exceção: é o abrir mão do próprio interesse quando ele se contrapõe ao bem maior. Um exemplo bem fácil e atual: abrir mão da liberdade de sair à rua superfluamente para não contribuir para o agravamento da pandemia.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

AMIGO


Amigo seria o mais importante dos títulos de nobreza, não fosse a leveza do sentimento mais puro, muito acima de mesquinharias.

Amigo é o companheiro em cuja presença o tempo para.

Amigo é o amparo que nos equilibra em meio às maiores dificuldades. É o que surge oportuna e magicamente, antes mesmo de chamarmos.

Amiga é a data mais bela de todo o calendário.

A mãe amiga é mais que mãe: é o abraço que cura toda tristeza. O pai amigo é presença que conforta o coração, mesmo muito após ter deixado este mundo.

O irmão amigo é mais que irmão: é o refúgio nas tempestades da vida. E o amigo amigo também é mais que amigo, é irmão.

Amiga é a melhor companhia, que torna qualquer momento colorido. Um companheiro é amigo quando só nos pode fazer bem.

Amigo é o animal, puro como criança, cuja maior ambição é estar ao nosso lado.

Amiga é a Terra, que de graça nos dá de comer, e sustenta nossas pisadas.

Amigo é o Deus que, incrível, já não nos chama servos, mas amigos, concedendo-nos o maior dos títulos, por pura graça e amor.

Pois assim, como enfim aprendemos, tão simples e infinito, faz-se nascer um amigo.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

FALSÁRIOS QUE MATAM


O sistema econômico como hoje conhecemos se baseia na confiança no valor dos meios de pagamento. O atestado do valor do dinheiro é decorrência da soberania do rei ou da nação, e é por isso que a falsificação de dinheiro é considerada um crime de lesa-majestade ou lesa-pátria.

Ora, a crença na autenticidade do dinheiro é para a economia tão fundamental quanto é a crença da autenticidade da informação para o funcionamento da democracia. Uma democracia consiste em que as pessoas decidam o que é melhor para si. E só se pode decidir o que é melhor para si quando bem informado sobre as consequências de uma decisão. Se o cidadão se baseia em informações falsas, sua decisão, possivelmente, fará mal a ele mesmo.

A presente pandemia mostra isso claramente. As pessoas estão soterradas por 
informação de má qualidade, e isso as leva a ter comportamentos que atentam contra si mesmas, quebrando a quarentena. As informações embasadas podem até chegar a elas, mas se perdem em um mar de desinformação que impede a média da população de discernir o real do imaginário. Por fim, própria consciência geral da existência de fake news é usada pelos difusores das mesmas, na medida em que completam sua enxurrada de mentiras com mais esta: a de que a verdade é fake news.

Não é por acaso que esse esgoto de informação inunda a intimidade das pessoas, a ponto de impedir a busca pela verdade de alcançar o mais remoto sucesso. Na fábrica de mentiras foi investido muito dinheiro e avançadas técnicas de propaganda, garantindo que a mensagem chegue a seu público-alvo e atinja os objetivos desejados pelos seus formuladores.

Quem planta a ignorância não o faz por ignorância. O mentiroso não mente por acreditar na mentira, mas porque ela lhe é conveniente. Já quem repassa a informação falsa nas redes sociais, por sua vez, tem muitas vezes a mesma inocência de quem repassa dinheiro falso por não conseguir distingui-lo do dinheiro autêntico.

O justo zelo pela liberdade de expressão e o exagero relativista fez com que postergássemos em demasiado o remédio institucional para a falsificação de informação. Em outras palavras, não punimos com o rigor da lei os que difundem deliberadamente a mentira, e essa mentira agora nos está matando. O combate ao vírus não dá margem a que relativizemos consensos científicos sólidos.

A civilização precisa urgentemente se tornar imune à falsificação de informação. Cabe às instituições reprimir essa prática que, a cada dia, parece fazer mais mal à sociedade. Quem difunde conscientemente a mentira deve, no mínimo, ser punido com o mesmo rigor destinado a quem falsifica dinheiro. Ou com um rigor até maior, visto que suas mentiras estão tirando vidas humanas. É preciso, sim, ter cautela para não ferir a liberdade de expressão. Mas uma solução institucional nesse sentido há de ser possível, tanto quanto a opinião se distancia da mentira deslavada.

terça-feira, 5 de maio de 2020

INDIVIDUAL E COLETIVO: REPENSANDO SMITH


A realidade desta quarentena lança luz sobre um debate filosófico antigo: a relação inseparável entre o interesse individual e o coletivo. Afinal, neste momento, quem cuida de si, evitando o próprio adoecimento, está necessariamente beneficiando a coletividade, ao interromper a cadeia de contágio e não sobrecarregar o sistema público.

Isso pode nos fazer recordar Adam Smith. Em 1776, o autor afirmou que, dada a divisão social do trabalho, fazer a sua parte, cuidando do próprio interesse, é a melhor forma de promover o bem geral. Smith tonar-se-ia a base da ciência econômica liberal e o autor preferido dos defensores do individualismo.

Mas, com fina ironia, este tempo de pandemia nos aponta também a limitação do pensamento individualista. Sim, porque, de visão interessante sobre uma sociedade complexa, a ideia básica de Smith tem servido de salvo conduto ao egoísmo. E, no atual contexto, os mais egoístas, que ignoram o bem geral, mostram-se verdadeiras ameaças à saúde pública.

Desde Smith, fomos condicionados a pensar a realidade social apenas do ponto de vista individual. E, nessa busca cega pelo próprio interesse, sequer avaliamos se o interesse coletivo estava de fato sendo atingido. Pois bem, não estava, e isso agora é evidente.

Com a desculpa de incentivar investimentos privados, cortamos o investimento público em saúde, educação, ciência e tecnologia (interesse coletivo). A busca do interesse individual não levou ao bem estar geral, e a pandemia nos pegou desprevenidos.

Smith acertou ao postular que, cuidando-se de si, cuida-se do próximo. O que seus seguidors ignoraram é que há aí um necessário complemento: cuidando-se do próximo, cuida-se de si. Ao evidenciar a inexistência de contradição entre as duas afirmações e, mais do que isso, a sua complementaridade, a pandemia pode nos legar uma síntese do que há de melhor nos pensamentos de direita e de esquerda.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A GRANDE OPORTUNIDADE


Em sua brilhante entrevista para o Roda Viva, no dia 11 de novembro do ano passado, o historiador israelense Yuval Noah Harari afirmou algo que, neste 2020 crítico, ganha caráter assombroso. Suas palavras, em livre tradução, foram:

A última grande crise econômica e financeira que o mundo teve foi em 2008. Apesar de todas as dificuldades naquela ocasião, as grandes potências mundiais trabalharam juntas de forma eficaz para evitar suas piores consequências. Se uma crise como a de 2008 eclodir amanhã... (E pode eclodir amanhã, ou qualquer dia. Talvez agora mesmo. Nossos celulares estão no modo silencioso, mas talvez seu celular esteja cheio de mensagens de que tal banco quebrou) ...E se isso acontecer agora, não haverá nenhuma cooperação global, como houve em 2008. Se tivermos outra crise como aquela, podemos assistir a um colapso financeiro completo, porque nos faltam a confiança e cooperação globais necessárias, como tínhamos em 2008, para lidar com a crise.”

Sim, de 2008 para cá, em grande parte em decorrência daquela própria crise, emergiram governos que, na contramão da integração, fizeram do conflito e do discurso faccioso sua base de sustentação. E a crise veio, pouco tempo depois das palavras do historiador.

Mas a crise do corona é diferente de qualquer outra que qualquer país tenha experimentado. Ela atinge sem demora todos os países do mundo, escancarando o caráter imaginário das fronteiras. E, no entanto, cria uma oportunidade de ouro para o fortalecimento da cooperação internacional. Pelo simples fato de que, agora, não temos outra alternativa.

A chamada globalização, fenômeno muito antigo, mas que nas últimas décadas ganhou relevância em nosso pensamento, tem se pautado por diretrizes quase que exclusivamente econômicas. O capital transita livre pelo mundo, enquanto o fluxo de pessoas é assunto delicado e gera imensa resistência, vide o drama mundial dos refugiados.

Em poucos meses, isso mudou. O objetivo primeiro da integração não é mais o lucro, mas a saúde e o bem-estar da humanidade.

Negar agora a integração é negar a realidade. Não há mais espaço para relativismo nesse sentido. Uma ação perigosa em qualquer país afeta todos os outros. Atentados ao meio ambiente, comércio de animais silvestres e desmatamento apenas começam a produzir suas mais nefastas consequências. Há muito, a ciência nos alerta sobre esses perigos (lembremos que a bomba relógio das mudanças climáticas não foi ainda desarmada).

A perspectiva da cooperação internacional em prol da saúde abre uma porta de integração virtuosa que até ontem a humanidade parecia incapaz de acessar. Pois saúde implica segurança alimentar, defesa do meio ambiente, respeito aos animais. Finalmente, e não era sem tempo, a preservação e a qualidade da vida torna-se nossa maior prioridade. E, repito, em escala mundial. A perspectiva de um sistema mundial de saúde pública nos enche de esperança, mesmo em meio ao caos.

Mas, infelizmente, essa oportunidade pode também ser desperdiçada. Líderes facciosistas ainda estão no poder. Não os chamo nacionalistas, porque nacionalismo é amar seu vizinho, não é odiar o estrangeiro. O discurso faccioso desconhece qualquer amor.

Está colocado diante de todos um novo mundo. Se forem sábios, os líderes das nações mudarão seus rumos, seu discurso e suas ações. Poderão, afinal, até mesmo estrar para a História por sua participação virtuosa na reconstrução pós-crise. Mas alguns não parecem querer enxergar nada além de seu universo mesquinho de negação e conflito. Se insistirem em sua postura insensata, caminharão para a ruína, levando consigo imensas populações.