Ele
andava pelo Largo da Carioca ao final da tarde quando se deparou com
a manifestação. Apenas meia dúzia de pessoas com cartazes. Mas
seis pessoas com um alto-falante podem ser bastante incômodas. O que
segurava o alto-falante bradava um discurso furioso contra a
corrupção. O bom do discurso anticorrupção é que, além de
simples, cativa facilmente os ouvintes. Todo mundo é contra a
corrupção, até o corrupto. Por isso, tal discurso funciona bem
como trampolim para outros discursos furiosos.
E
foi exatamente isso que o tal sujeito fez. Logo passou do discurso
anticorrupção ao discurso furioso contra o comunismo. "Eles
agora ensinam nas universidades que o comunismo é bom", dizia.
Temendo a tal "ditadura comunista", o manifestante
demostrava sua preocupação com a livre difusão de ideias
estranhas, diferentes das suas, diferentes do "normal".
“Eles
ensinam”, dizia ele, “que você pode ser o que quiser! Que você
pode ser 'viado' se você quiser, que você pode ser 'homem' se você
quiser!” O bom dos discursos fascistas é que eles não demoram a
se perder em seu próprio absurdo. Afinal, por que era tão ruim para
ele "poder ser o que você quiser"?
O
fato incomodou bastante o passante. "Era só meia dúzia",
ele pensava consigo, tentando afastar. Mas meia dúzia, às vezes,
têm alto-falante, às vezes têm recursos, ás vezes têm espaço na
mídia. Podem mesmo incomodar.
Felizmente,
a muitos resta a fé e, no caso do passante, a exótica fé de que
nada é por acaso. E o encontro involuntário com o vociferante
fascista também não havia de ter sido por acaso. A simples
possibilidade de que gente como ele volte a ter comando fez o
passante ter um até então inédito apreço pela liberdade.
Ele
nunca pensou muito sobre o valor da liberdade, voltando suas
reflexões mais para outras virtudes sociais: a fraternidade, a
igualdade, a solidariedade, a paz, o amor. Mas a liberdade... Sempre
pareceu muito vaga, abstrata, retoricamente manipulável. Talvez por
isso ele não tenha lhe dado muito valor. Mas talvez porque ele
sempre fora livre, sem perceber.
Esquecendo
por um minuto a imprecisão da noção de "opção sexual",
não parecia ruim a ideia de que você pode ser "viado" se
você quiser. Não, ele não era, nem pretendia ser. Mas se por acaso
um dia acordasse meio "viado", ele não seria preso por
isso. E isso lhe pareceu bom! Ele era o que a sociedade hétero
normativa considerava "homem". E também lhe pareceu muito
bom poder ser "homem" se ele quisesse.
Era
muito bom ser livre. Era, de fato, muito bom viver em lugar em que se
podia ser o que se quisesse, desde que não se fizesse mal a ninguém
e se respeitasse as diferenças.
Muitos
que, como ele, cresceram depois de 1985 talvez nunca tenham pensado a
respeito. Mas, depois de um 2014 de incômodas meias dúzias
fascistas, talvez seja mais do que hora de se refletir. Refletirmos
como é bom "poder ser o que você quiser". É muito bom
poder ser "viado" se você quiser e poder "homem"
se você quiser. Poder ser músico de rua, se você quiser e poder
ser pastor, se você quiser. Poder ser negro, se você quiser e poder
ser mulher, se você quiser. Poder ser romântico, se você quiser e
poder ser cético, se você quiser. Poder ser sambista, se você
quiser e poder ser roqueiro, se você quiser. Poder ser evangélico,
se você quiser e poder ser ateu, se você quiser. Poder ser
comunista, se você quiser e poder ser liberal, se você quiser.
E
seria mesmo muito ruim não poder escolher.
Aparentemente,
nada é mesmo por acaso. E depois de tangenciar por um momento a
falta dela, o passante amou a liberdade, e se sentiu muito bem. Era
mesmo muito bom ser livre.