quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

LIBERDADE

Ele andava pelo Largo da Carioca ao final da tarde quando se deparou com a manifestação. Apenas meia dúzia de pessoas com cartazes. Mas seis pessoas com um alto-falante podem ser bastante incômodas. O que segurava o alto-falante bradava um discurso furioso contra a corrupção. O bom do discurso anticorrupção é que, além de simples, cativa facilmente os ouvintes. Todo mundo é contra a corrupção, até o corrupto. Por isso, tal discurso funciona bem como trampolim para outros discursos furiosos.

E foi exatamente isso que o tal sujeito fez. Logo passou do discurso anticorrupção ao discurso furioso contra o comunismo. "Eles agora ensinam nas universidades que o comunismo é bom", dizia. Temendo a tal "ditadura comunista", o manifestante demostrava sua preocupação com a livre difusão de ideias estranhas, diferentes das suas, diferentes do "normal".

“Eles ensinam”, dizia ele, “que você pode ser o que quiser! Que você pode ser 'viado' se você quiser, que você pode ser 'homem' se você quiser!” O bom dos discursos fascistas é que eles não demoram a se perder em seu próprio absurdo. Afinal, por que era tão ruim para ele "poder ser o que você quiser"?

O fato incomodou bastante o passante. "Era só meia dúzia", ele pensava consigo, tentando afastar. Mas meia dúzia, às vezes, têm alto-falante, às vezes têm recursos, ás vezes têm espaço na mídia. Podem mesmo incomodar.

Felizmente, a muitos resta a fé e, no caso do passante, a exótica fé de que nada é por acaso. E o encontro involuntário com o vociferante fascista também não havia de ter sido por acaso. A simples possibilidade de que gente como ele volte a ter comando fez o passante ter um até então inédito apreço pela liberdade.

Ele nunca pensou muito sobre o valor da liberdade, voltando suas reflexões mais para outras virtudes sociais: a fraternidade, a igualdade, a solidariedade, a paz, o amor. Mas a liberdade... Sempre pareceu muito vaga, abstrata, retoricamente manipulável. Talvez por isso ele não tenha lhe dado muito valor. Mas talvez porque ele sempre fora livre, sem perceber.

Esquecendo por um minuto a imprecisão da noção de "opção sexual", não parecia ruim a ideia de que você pode ser "viado" se você quiser. Não, ele não era, nem pretendia ser. Mas se por acaso um dia acordasse meio "viado", ele não seria preso por isso. E isso lhe pareceu bom! Ele era o que a sociedade hétero normativa considerava "homem". E também lhe pareceu muito bom poder ser "homem" se ele quisesse.

Era muito bom ser livre. Era, de fato, muito bom viver em lugar em que se podia ser o que se quisesse, desde que não se fizesse mal a ninguém e se respeitasse as diferenças.

Muitos que, como ele, cresceram depois de 1985 talvez nunca tenham pensado a respeito. Mas, depois de um 2014 de incômodas meias dúzias fascistas, talvez seja mais do que hora de se refletir. Refletirmos como é bom "poder ser o que você quiser". É muito bom poder ser "viado" se você quiser e poder "homem" se você quiser. Poder ser músico de rua, se você quiser e poder ser pastor, se você quiser. Poder ser negro, se você quiser e poder ser mulher, se você quiser. Poder ser romântico, se você quiser e poder ser cético, se você quiser. Poder ser sambista, se você quiser e poder ser roqueiro, se você quiser. Poder ser evangélico, se você quiser e poder ser ateu, se você quiser. Poder ser comunista, se você quiser e poder ser liberal, se você quiser.

E seria mesmo muito ruim não poder escolher.

Aparentemente, nada é mesmo por acaso. E depois de tangenciar por um momento a falta dela, o passante amou a liberdade, e se sentiu muito bem. Era mesmo muito bom ser livre.

domingo, 3 de agosto de 2014

JOIO E TRIGO - UMA LEITURA PROGRESSISTA

A metáfora do joio e do trigo e de “separar o joio e o trigo” costuma frequentar um certo tipo discurso, aquele que separa umas pessoas das outras e estabelece hierarquias entre elas. Tal discurso é contrário às melhores noções de civilização, e que eu evito aqui chamá-lo de reacionário apenas para não soar repetitivo.

Mas voltando ao joio, vem-me à cabeça a fala, anos atrás, da mãe de um suposto criminoso de classe média ou alta. Ela, indignada por seu filho ser tratado igualmente a supostos criminosos pobres, dizia que era preciso separar “o joio do trigo”. E não é de se espantar que o joio, tal qual o inferno, seja sempre o outro.

Tão bem a imagem foi apropriada pelo pensamento conservador, que nos esquecemos que o seu criador foi Jesus. Jesus é a parte mais progressista da Bíblia, se destacando, pelo discurso, da forte tendência conservadora que a religião teve antes e depois dele. Quem conhece a teologia de Jesus pode estranhar que ele tenha dado origem a tal pensamento separador e hierarquizante, suspeitando logo de que se trata de uma interpretação errada da metáfora.

E a suspeita é correta. A parábola do joio e do trigo é breve. Um agricultor plantou o trigo em seu campo e, à noite, seu inimigo contaminou a plantação com joio. Quando um empregado vê o joio crescendo junto ao trigo, indaga ao agricultor se ele quer que o joio seja arrancado. O dono da plantação diz que não, que, por hora, é preciso deixá-los crescer juntos até a colheita, para que, ao separar o joio, não se arranque com ele também o trigo.

Ao explicar a parábola aos seus discípulos, Jesus diz explicitamente que a colheita é a consumação deste século (ou seja, uma realidade fora do mundo material como conhecemos). Jesus não nos mandou separar o joio do trigo. E, não só não mandou, como disse que era preciso deixá-los crescer juntos, para que, ao cortar o joio, não se corte junto com ele o trigo.

Detenhamo-nos, portanto, na esfera secular, em que ainda viveremos por prazo indeterminado (e isso quer se creia, quer se descreia em qualquer horizonte metafísico). Segundo a parábola original, neste mundo, neste século, o mal não poderá ser extirpado da sociedade sem altos custos. Joio e trigo, bem e mal, inocentes e culpados, não poderão ser separados de forma que não seja traumática. Assim, ainda que trabalhemos com a ideia de inocentes e culpados como pessoas distintas, elas não seriam infalivelmente separáveis.

Ao estabelecermos, por exemplo, a pena de morte, sempre estaremos correndo um sério risco de executar inocentes por erro no processo (que ocorrem com mais frequência do que gostaríamos, em qualquer sistema jurídico). Separar o joio do trigo de forma tão irreversível exigiria a infalibilidade dos julgadores (e quiçá a onisciência).

Essa reflexão já dá uma perspectiva diferente da do senso comum à metáfora de Jesus. Mas podemos ainda ir além do maniqueísmo. Joio e o trigo, inocentes e culpados, bem e mal não são pessoas separadas. Estão dentro de cada um de nós. O mal cresce em nós junto com o bem, de modo que não há ninguém totalmente mal nem ninguém totalmente bom. Desse modo, ao eliminarmos um “mau” (por exemplo, pela pena de morte), matamos também o “bom” que existe dentro dele.

Claro que (novamente, quer se creia, quer se descreia) o mal (o que é errado, nocivo, injusto) não é algo com que se deva acostumar passivamente. Mas, aos ávidos por eliminar o joio, fica a sugestão de começar por separá-lo dentro de si mesmos. E com muito cuidado.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

RESPOSTA A E-MAIL REACIONÁRIO

O texto abaixo foi escrito como resposta a e-mail que circula na net, com o título "Dilma - com fotos das vítimas" Peço que leiam com atenção, pois não é conveniente sabermos apenas uma parte da História.

Em primeiro lugar, isto não é campanha para a Dilma (não sei de todas as opções de voto que terei em 2010, e possivelmente não votarei nela). Mas utilizar o argumento de que ela é uma "terrorista de alta periculosidade", "com fotos dos corpos das vítimas", é pura apelação e baixaria. É colocar de lado o debate político e de projeto de governo. Vamos mais aprofundar um pouco essa história.

Em 1964, o Brasil tinha um governo progressista, de João Goulart, que propunha reformas de base que o país precisava para o desenvolvimento social. Jango foi chamado de "comunista" (reparem, mesmo tipo de argumento apresentado pela mensagem anterior) pela direita golpista e acabou derrubado pelos militares (com apoio de civis também, como o jornal O GLOBO, que saudava a "vitória da democracia" após o golpe).

Muitos, inclusive os apoiadores do golpe, acreditavam que era um golpe "para retornar à normalidade", e que haveria eleições em 65. Mas só houve eleições presidenciais novamente 25 anos depois. Aos poucos, os militares davam sinais de que não deixariam o poder. A população começou a se manifestar (como na passeata dos 100.000, em 68, motivada pelo assassinato do estudante Edson Luis). Em 1968 o regime militar decretou o AI-5, fechando ainda mais a ditadura e acabando com qualquer resquício de fachada democrática.

Nesse contexto, alguns opositores da ditadura viram na luta armada a única forma de derrubar o regime. Certos ou errados, esses participantes foram já foram processados. Muitos foram exilados e torturados. Os que não foram processados e condenados, é porque foram mortos pelo regime, e muitos estão desaparecidos até hoje.

Em 1979, quando já começava o processo de abertura política, houve a lei da Anistia "para os dois lados". Os sobreviventes da luta armada foram anistiados de seus crimes. Os torturadores e assassinos da Ditadura, porém, nunca foram sequer julgados, e ainda não sabemos direito a nossa História.

Em 1985, os militares saíram do governo, mas não sem muita luta popular (como nas Diretas Já - não havia só a luta armada na resistência). Em 1989, depois de 28 anos, houve novamente eleições diretas para presidente.

O referido e-mail, no entanto, utiliza os mesmos argumentos da Ditadura. Nas entrelinhas, ele justifica a repressão do regime, pois "Dilma e seus comparsas queriam implantar o regime de Cuba no Brasil" ou "eram financiados por China, Rússia e Cuba" ou alguma babosiera do gênero. Diz que a oposição era muito bem tratada aqui "por isso estão aí vivinhos" (na verdade, há algumas centenas de mortos e desaparecidos). Como critiquei as "fotos dos cadáveres", vou poupá-los de detalhes das torturas cometidas. Mas é bom que sempre nos informemos a respeito, pra ter uma dimensão da gravidade do que aconteceu.

Por fim, é uma sacanagem colocar uma frase de Martin Luther King Jr. em mensagem tão reacionária. Esse grande estadunidense sempre esteve do lado oposto da opressão e nada tem a ver com seus compatriotas que patrocinaram os golpes militares na América Latina.

saudações,
Leandro Murad

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

PROSELITISMO IDEOLÓGICO NA TV

Hoje (09/11), um telejornal do canal Globo News comemorava os 20 anos da queda do Muro de Berlim. A matéria exibida me irritou profundamente. Que não me entendam mal, o aniversário de tal fato histórico deve, sim, ser celebrado. O problema é a forma panfletária como isso aconteceu.

O âncora o descreveu o muro como “o maior símbolo da separação entre o ocidente democrático e capitalista, e o mundo comunista e totalitário”. Notem que democrático vem antes de capitalista, como se essa fosse a principal característica do ocidente durante a Guerra Fria.

Não foi essa a nossa experiência na América Latina. Tivemos ditaduras capitalistas no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile. Neste último, o governo socialista de Salvador Allende foi eleito democraticamente em 1970. Em 1973, com o patrocínio dos EUA, um golpe militar matou o presidente e instaurou um regime assassino. Os Estados Unidos também patrocinaram o golpe de 64, no Brasil, e o de 76, na Argentina, que originou a pior entre essas ditaduras (se medirmos em número de mortos). E isso tudo era parte do "Ocidente democrático e capitalista" descrito pela Globo News.

Quanto ao resto da frase, o "oriente comunista e totalitário", o problema é o termo "totalitário". O conceito é passível de crítica, primeiro por passar a ideia quase metafísica de um regime onipresente (o que nenhum pode ser, por mais que queira). Em segundo lugar, por colocar no mesmo saco experiências diferentes, como nazismo e comunismo. Mas não nos aprofundemos nessa discussão conceitual (que não pareça que a intenção deste texto seja esconder os crimes que se praticaram no Leste).

O Muro era sim um ícone da opressão da ditadura vigente na Alemanha Oriental, a população realmente queria sua queda. Queria o fim de ambos, do regime ditatorial e de seu muro. Mas será que queria que o país acabasse e que a economia fosse bruscamente tragrada pelas leis do mercado? Creio que não, e tenho certeza de que não desejavam os níveis de desemprego enfrentados nos anos seguintes à unificação.

O problema não é comemorar a queda do muro. É transformar esse fato, o fim do cerceamento de um povo, em um símbolo da vitória capitalista, deixando nas entrelinhas a idéia de que esse é o único sistema possível. É a celebração do pensamento único.

A reportágem da Globo News é binária. Para ela, o capitalismo é democrático e o socialismo é totalitário. É o bem e o mal, o claro e o escuro. O nosso cérebro, aliás, raciocina de forma binária, e temos a tendência de enxergar a realidade desse jeito.[1]. Mas a realidade não é binária. Quanto mais superarmos essa visão simplificada de mundo, mais inteligentes seremos.

O que critico neste texto, porém, não é a burrice. O emburrecimento talvez, mas não a burrice. O ponto onde quero chegar é que, infelizmente, o conservadorismo se tornou a égide ideológica do jornalismo da Globo News. O canal fechado, até há pouco tempo, tinha uma maior diversidade de pensamento do que os telejornais da Rede Globo aberta. Hoje parece que isso mudou, e já vejo a assinatura do ultraconservador Ali Kamel, diretor geral de jornalismo da Rede Globo, nos programas da Globo News.

Vivemos em um país democrático, não "totalitário". No entanto, a grande mídia muitas vezes é tão panfletária, binária, maniqueísta, ideológica e cheia de proselitismo político quanto um livro de História feito na União Soviética nos anos 50. Não prego que os meios de comunicação não tenham o direito de falar suas bobagens. Só faço um apelo aos espectadores: tenhamos senso crítico para não aceitá-las tão facilmente.

Leandro Coutinho Rodrigues Murad

[1] O pensamento de esquerda, no qual eu me incluo, tem uma tendência histórica a ser binário. Aqueles dentre seus representantes que possuem a virtude da autocrítica sabem disso, e têm consciência da necessidade de não cair mais nesse erro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

BANDEIRA SUJA DE SANGUE

A ação bárbara do exército israelense na Faixa de Gaza é um daqueles atos diante dos quais não se pode ficar indiferente. A cada notícia na televisão ou nos jornais, a cada nova e maior contagem de mortos, mais me choco, me revolto, e me sinto culpa pela passividade geral diante do massacre. Mas o pobre mortal não tem voz de decisão em tão grandes assuntos. Em sua própria individualidade, pouco pode fazer, senão se manifestar, protestar, gritar em qualquer meio de comunicação que lhe esteja disponível. Esperava, porém, ao menos um protesto coletivo contra a guerra.

E qual não foi a minha surpresa quando, na última sexta-feira, passando pela Cinelândia, vejo uma manifestação, não contra, mas de apoio ao “direito de defesa” de Israel. Um homem defendia ao microfone as razões do ataque. Adultos e crianças (que certamente pouco sabiam o que significava aquilo tudo) erguiam bandeiras de Israel e cartazes com dizeres como “O Estado de Israel tem o direito de se defender”.

Não me lembro o nome do movimento, mas seu mote era “o que você tem feito pela paz?”. Já tinha tomado conhecimento dele na comunidade virtual “Paz no Complexo do Alemão”, em que eles deixaram uma postagem fazendo propaganda da sua própria comunidade¹. Parecia apenas um movimento pacifista simpático a Israel, o que já soava paradoxal, diante dos últimos fatos.

Mas esse grupo autodenominado promotor da paz defendia os bombardeios e a invasão sangrenta da Faixa de Gaza. Por isso a cena na Cinelândia era bizarra: Um grupo de pessoas (se bem me lembro, todas de branco), falando em paz e defendendo a barbárie. Uma mulher, de voz afinada, cantou “Vem vamos embora que esperar não é saber...”, e depois “O que você tem feito pela paz”

Minha vontade foi de gritar pra aquela gente que eles eram uns caras-de-pau de falar em paz e ainda usar crianças inocentes para defender as suas idéias beligerantes. Mas como é de se esperar, não quis parecer maluco, nem correr o risco de atentar contra a liberdade de expressão.

Talvez o leitor ainda não tenha entendido o motivo de tanta indignação contra as idéias do referido grupo. Afinal, eles defendem (assim como o governo de Israel, e a Casa Branca) uma lógica reativa simples: se o Hamas atira foguetes contra Israel, este último tem de se defender. Dos inocentes que estiverem no caminho, espera-se apenas a compreensão.

Só que esse argumento deixa escapar duas coisas: a primeira é que a reação do exército israelense é quase sempre desproporcional (por exemplo, responder com rajadas de metralhadoras a crianças que atiram pedras). Desse modo, se um foguete da facção palestina mata um cidadão israelense, a resposta tem de matar centenas de palestinos.

A segunda verdade omitida é que, se um erro justifica o outro (e o argumento deles é esse), a ação do Hamas é legítima, pois Israel oprime o povo palestino há 60 anos. Não, essa opressão não justifica ataques do Hamas. Mas explica. Os foguetes palestinos não iniciaram essa questão.

Em 1948, a ONU criava naquele território um novo Estado. O slogan do projeto era: “Um território sem povo para um povo sem território”. Nele já podemos encontrar o erro: o povo palestino, desde o início, não foi sequer considerado. A ONU criou um Estado sem ter legitimidade para fazê-lo e ao longo dos anos Israel não respeitou sequer as fronteiras definidas pela entidade (sempre com a desculpa de autodefesa). Hoje não atende às determinações do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O ataque segue, tendo matado já mais de duas centenas de crianças, tão inocentes quanto aquelas usadas na praça para erguer bandeiras e cartazes.

No entanto, a revolta com a guerra não pode justificar o nascimento de um sentimento de antissemitismo. A maior barbárie do século XX, o holocausto, não pode ser apagada de nossas memórias individuais e coletiva, ainda mais em um contexto como o das últimas três décadas, de ascensão do neofascismo.

Mas o Holocausto não foi um crime contra judeus apenas (também morreram ciganos, eslavos, homossexuais). Foi, antes de tudo, um crime contra seres humanos. Ele não dá carta branca para Israel desrespeitar os direitos humanos, nem pode servir de freio aos protestos do resto do mundo contra a violência atual.

Não sou contra os clichês, as verdades mais óbvias são aquelas que mais precisam ser repetidas. Portanto, na conclusão deste texto, quero enfatizar que um erro não justifica o outro. Parta de onde partir, e seja qual povo atingir, a barbárie é detestável. Ela não tem religião, etnia, ou nacionalidade. O terrorismo do Hamas que fere uma pessoa que seja, o terrorismo de Estado israelense que mata centenas (no último mês) ou milhares (ao longo dos anos) e o Holocausto, que ceifou milhões de vidas, são todos barbárie e, por isso detestáveis. Um não justifica o outro, antes têm mais semelhanças entre si do que antagonismos.

Leandro Coutinho Murad

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A CONSCIÊNCIA NEGRA

"Hoje não é dia do negro. Hoje é dia da consciência negra, dia de se discutir a questão negra."

O pensamento acima é de Martinho da Vila, dito em uma entrevista hoje, Dia da Consciência Negra.
É bem verdade que o leigo, especialmente o branco leigo, tem certa dificuldade em entender o que seja a consciência negra. Um pode dizer: "Que hoje seja Dia de Zumbi eu entendo. Mas afinal, o que é dia da Consciência Negra?"

Tomei por desafio responder a essa pergunta. Talvez, por ser historiador, a melhor resposta que encontrei penda para o meu lado. A meu ver, a consciência negra é a consciência histórica do negro. Histórica em seu sentido amplo, não dizendo respeito apenas ao passado, mas ao tempo presente, e às perspectivas do futuro.

O brasileiro deve saber que a situação atual do negro é resultado da nossa História. A consciência do passado é que nos permite celebrar nossos heróis, como Zumbi e João Cândido, o Almirante negro, líder da Revolta da Chibata. Digo "nossos heróis" porque são heróis da liberdade, e não apenas dos negros. A necessidade de afirmação da atuação de negros na História se torna necessária pelo fato de a disciplina histórica ter uma tradição secular de eurocentrismo.

A consciência da História do Negro no tempo presente é a consciência política. É o brasileiro, em geral, e o negro, em particular, saberem que medidas devem ser tomadas para diminuir e erradicar a desigualdade racial. É saber que a luta passada continua hoje.

A consciência das perspectivas futuras é saber o que desejamos construir para as relações raciais. É o brasileiro, em geral, e o negro, em particular, saberem se querem uma viver em uma sociedade igualitária, em que a questão racial seja, de fato superada.

A questão racial não é a única do Brasil. A ela somam-se a questão do índio, a questão do nordestino, a questão ambiental, etc. A questão racial não é maior do que a questão social, e o brasileiro, em geral, e o negro, em particular, não devem perder de vista essa questão maior.

A questão social é também mais difícil de resolver do que a racial, pois esta implica em tirar negros da camada inferior da sociedade e colocá-los no alto e, da mesma maneira, tirar alguns brancos do alto e colocá-los um pouco mais em baixo, de modo que haja homogeneidade em todas as camadas. Já resolver aquela questão maior, a social, implica em redistribuir toda a renda, de modo que haja apenas uma camada social, ou pelo menos uma distribuição de renda bem mais justa.

Entretanto, não se pode tampouco cair na cilada reacionária de ignorar a questão racial. Ainda vivemos em uma sociedade de racismo cruel, em que, por exemplo, as mortes de muitos negros não são nem investigadas, se simplesmente a polícia alegar que eram bandidos.

Nesse sentido, o simples fato de haver um dia para discutirmos a questão negra já é um grande avanço.

Leandro Coutinho Murad

domingo, 14 de setembro de 2008

TRABALHO

Até 1888, nosso país tinha sua economia baseada no trabalho escravo. Essa realidade, ao contrário do que possa parecer, não está muito distante da nossa e, infelizmente, tal postulado não serve apenas para o aspecto cronológico. No Brasil contemporâneo, o trabalho é uma questão com problemas cuja grandeza é diretamente proporcional à urgência de suas soluções.

O século XX foi um período de grandes conquistas dos trabalhadores, notadamente a instituição da CLT, em um momento em que a questão trabalhista deixou de ser caso de polícia, tornando-se uma das preocupações obrigatórias do Estado. Hoje, no entanto, este último pouco se esforça em ver uma realidade ainda carente.

Esse quadro é composto de sérios problemas. O trabalho escravo subsiste sob a égide do poder econômico e militar dos proprietários de terra. De modo semelhante, o trabalho infantil é explícito, no campo e na cidade. Por fim, muitos brasileiros vivem na informalidade, à margem dos direitos adquiridos. Diante disso, como garantir que o trabalho seja uma atividade digna para todos, e não apenas para uma parcela afortunada da sociedade?

O primeiro passo para mudar esses fatos é expor as feridas. Conhecendo os problemas profundamente, a sociedade terá menos propensão a tolerá-los. Nesse sentido, o papel das mídias é fundamental, tanto na denúncia como no debate. Mas o Estado tampouco pode se omitir. É preciso tirar o poder de quem descumpre a lei, fiscalizar e punir severamente quem, por exemplo, explora o trabalho escravo.

O pessimismo, no entanto, talvez seja o maior gerador da acomodação e da omissão. Uma vez que interesses eonômicos e conchavos políticos levam à inércia, os governantes (e também a sociedade) têm de se lembrar que a economia deve servir ao povo, e não o contrário. Em 1888, muitos diziam que a escravidão era uma ferramenta indispensável, um mal necessário. Hoje, não é aceitável que sejamos irresponsáveis e passivos diante de questões sociais e humanísticas. A universalização da dignidade do trabalhador não só é possível, como indispensável para o aperfeiçoamento da democracia ou, em outras palavras, para a "democratização" da democracia.

Leandro Coutinho Murad