quinta-feira, 7 de julho de 2016

APESAR DE TUDO, O ESCRACHO NÃO NOS PERTENCE

Nos anos 90, passava na TV um enlatado americano de que hoje ninguém se lembra. Chamava-se “Justiça Final”, e o enredo pouco se distanciava dos filmes de vingança tipo “Desejo de Matar”. Já na vinheta de abertura, o juiz Nick Marshall, personagem principal da série, justificava sua condição de vingador:

“Como policial perdi muitos casos devido a truques jurídicos, mas eu acreditava no sistema. Como promotor perdi muitos casos para advogados corruptos, mas eu acreditava no sistema. Como juiz eu procurei seguir a lei ao pé da letra, porque eu acreditava no sistema... até eles destruírem minha família. Daí eu parei de acreditar no sistema e passei a acreditar na justiça.”

Nerds esquerdistas como eu sentem um estranho misto de nostalgia e desdém ideológico ao recordar essa abertura. E, ironicamente, o Brasil de hoje nos fez um pouco como o juiz Nick Marshall. O golpe foi o nosso ponto de inflexão. Politicamente, guardadas as devidas proporções, foi o “até eles destruírem minha família” da historinha. Vejamos:

As eleições de 2014 foram difíceis e o debate foi rasteiro e violento, mas eu acreditava no diálogo. Tendo perdido a eleição, a oposição não se conformou com a derrota e tentou levar no tapetão, mas eu acreditava no diálogo. Iniciado o mandato, sabotaram o governo e apostaram no quanto pior melhor, mas eu acreditava no diálogo. Até que eles deram um golpe travestido de impeachment. Aí eu deixei de acreditar no diálogo, e passei a acreditar no confronto.

Pois é, quem não quer guerra não invade a Polônia. No entanto, devo dizer que, esquizofrenicamente, meu objetivo agora não é buscar justificação de qualquer atitude extrema. Não venho aqui defender a velha fórmula justificadora de injustificáveis: “Sou contra tal coisa, mas chegou a um ponto em que...”. Pelo contrário. O objetivo deste texto é questionar a pertinência de atitudes como o chamado “escracho”.

Concebi este texto após ler uma notícia do escracho a Janaina Paschoal em um aeroporto. O relato era de um blog simpático à “autora do pedido de impeachment” e antipático aos “petistas ensandecidos”, e chamava o ato de “barbárie”. Achei, a princípio, que tivesse havido agressão física, então me adiantei em escrever um esboço condenando fortemente a atitude e nivelando os escrachantes às pessoas que hostilizaram Guido Mantega em um hospital ou mesmo aos fascistoides que atacaram alunos na UNB.

Mas, depois de ver o vídeo, constatei que não se tratava de uma agressão, ao menos não no sentido físico. Os “petistas ensandecidos”, como chamou o blog de direita, apenas fizeram coro chamando Janaina Paschoal de golpista e de fascista. Eles mantiveram uma distancia física dela. Compará-los aos fascistas do ataque a UNB seria forçar a barra. Mas não desisti deste texto, pois acho importante ter um olhar crítico sobre o episódio e sobre escrachos em geral. Tal atitude é ética?

Encontra-se facilmente resposta a essa questão invertendo a situação. Pense se você acharia um absurdo ou não se a mesma atitude fosse tomada contra um intelectual “do seu lado”, por militantes “do outro lado”. A ética que vale para os aliados deve valer para os adversários também, não importa o contexto.

Mas se, ensaboadamente, deixo para você, leitor, a conclusão sobre o escracho ser ético ou não, afirmo que, no mínimo, ele não é estético. É um conceito muito feio, com ares de programa policialesco vespertino. Flerta muito proximamente com a covardia e com o linchamento.

Podemos dizer que, no caso de Janaina, os escrachantes mantiveram uma distância física, de modo a não ameaçá-la. Mas até que ponto podemos garantir que um companheiro não irá ultrapassar essa barreira? Se adotarmos o discurso de que, após o golpe, vale tudo, a chance de isso acontecer aumenta. E isso (aí sim, sem dúvida) nivelaria os companheiros escrachantes aos fascistas.

Nivelando-se, a esquerda incorreria em um duplo erro, moral e estratégico. O erro estratégico é claro. Tudo que os repressores querem é desculpa para reprimir. O golpe exige luta, mas é preciso que as lideranças deixem claro que essa luta é não violenta. Na violência, perdemos. Deles é a polícia, deles são as armas.

Já o erro moral, que se soma ao estratégico, já foi desenhado acima: é utilizar os métodos daqueles que condenamos. Você dirá: “Ah, mas a Janaina é golpista. Contra ela vale”. Mas ela ser golpista não invalida dois fatos:

1) Eu acredito que ela é golpista, mas posso estar errado.
Os fascistas que atacaram a UNB acreditavam estar certos. Se temos a consciência de que podemos estar errados, refreamos nossa agressividade. E sempre podemos estar errados, pois nossas convicções mais profundas, no limite, são uma questão de fé.

2) Antes de ser golpista, Janaina é um ser humano.
Os que hostilizaram Guido Mantega em um hospital (quando ele visitava a esposa com câncer) possivelmente achavam que que para político, ou pra petista, todo o castigo era pouco. Consideravam-no, enfim, uma pessoa indigna.

Segundo Tzvetan Todorov, “bárbaro é aquele que crê que uma população ou um ser não pertence plenamente à humanidade e merece tratamentos que eles mesmos recusariam firmemente aplicar a si mesmos” (TODOROV, Tzvetan, La Peur des Barbares [O Medo dos Bárbaros], conforme citado em GRESH, Alain. “Da Batalha de Termópolis ao 11 de Setembro”, Le Monde Diplomatique Brasil, janeiro de 2009).

Gritar “fascistas, golpistas” não caracteriza barbárie. O que caracteriza ou não a barbárie é o que se faz depois. Sofremos um golpe, nosso voto jogado no lixo, acusemos, pois, os golpistas. Mas, e depois de acusar? Agredimos o acusado ou conversamos com ele? Se escolhermos a primeira opção, seremos, sim, bárbaros. Uma acusação que não dê o direito de defesa é linchamento, e linchamento, definitivamente, não nos pertence (“programa policialesco vespertino”, lembram-se?).

Após gritar “golpistas!, fascistas!” é preciso explicar por quê. É possível que Janaina acredite mesmo que não seja golpista. Não basta estarmos convictos de que há um golpe em curso, é preciso saber explicar o porquê dessa convicção. Seremos chamados ao debate pelos que não compartilham da nossa convicção ou nem sequer refletiram a respeito, e não é com gritos que convenceremos ninguém.

Como eu disse, deles são as arma. Nossa única arma é falar a verdade, e só poderemos usá-la se mantivermos aberto o canal do diálogo. Isso implica legitimar o outro. Mas dar o direito do contraditório é pouco confortável. Já dizia Nietzsche, quando você olha para um abismo, o abismo também olha para você. Dialogar exige preparo, exige coragem. E apenas quando passamos por essa prova de coragem nos diferenciamos dos fascistas. Se não dialogamos, somos paneleiros, aqueles que não ouvem, só fazem barulho.

Ao final do último episódio da primeira temporada de “Justiça Final”, o juiz justiceiro Nick Marshall finalmente encontra o assassino da sua família. Tendo sido dominado, o bandido espera a própria execução sumária. O juiz vingador se aproxima dele e saca... uma algema. Leva o criminoso preso que, surpreso, pergunta, “Ué, você não vai me matar? Por quê?” Ao que o juiz responde: “Porque, apesar de tudo, eu ainda acredito no sistema”.

Sim, há momentos em que deve haver luta, mas a luta sempre deve ser não violenta. Sim, às vezes o confronto é necessário, mas o confronto sem racionalidade perde o sentido. Sim, corremos o risco de que, no final, o escorpião nos pique mesmo assim, mas é um risco que vale a pena ser corrido, quando o que está em jogo é a nossa própria integridade. O golpe, de fato, muda as coisas, mas não pode mudar nossos valores éticos mais profundos, não importa a que ponto tenhamos chegado. Mesmo que eles tenham invadido a Polônia. Só o amor vence o ódio, mais ódio apenas o potencializa.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

TERRITÓRIO INEGOCIÁVEL

Nos últimos tempos, uma tendência dominou o meu pensamento. Essa tendência caminhava no sentido de legitimar e tentar compreender o pensamento do meu contrário. No pouco que cabe ao indivíduo, o objetivo era a fortalecer convivência democrática e a conciliação, através do respeito à opinião alheia. Buscava-se a criação de consensos, construídos pela da negociação e com a participação de todos. A autocrítica à negação do outro era, ainda, um convite à aceitação de si.

Muito desse enfoque pode ser percebido em textos meus anteriores (ver, por exemplo, “Stalinismo Virtual”, aqui neste blog) e, não me entendam mal, creio que permanece válido. Mas essa tendência, que me trouxe crescimento intelectual e humano, talvez tenha se esgotado, ao menos provisoriamente.

Os eventos no Brasil e no mundo têm desafiado, no limite do imaginável, nossa capacidade de respeitar o outro e a opinião alheia. Afinal, como respeitar o desrespeito? É perceptível ao nosso redor um embate de valores. Há conjuntos de ideias e projetos de civilização não mais conciliáveis, o que leva, quando não a uma guerra civil (Deus nos livre), ao estado de conflito permanente.

No Brasil, um projeto perdeu a eleição e não se conformou. Através de um golpe, “corrigiu-se” o resultado dessa eleição. Pouco importa aqui o pretexto jurídico para a deposição da presidenta. O acordo democrático foi quebrado. O golpe inviabilizou a negociação, a conciliação. O lado que sofreu o golpe certamente não se conformará (como pedem, de forma cínica, os setores antes incendiários e que agora pregam a pacificação e a união nacional). Ainda que o jogo vire novamente, o setor perdedor também não se conformará. Os quereres são inconciliáveis e qualquer decisão coletiva que contrarie um desses quereres será sentida pelo querer contrariado como uma ação autoritária.

Nos Estados Unidos dos anos 1860, dois modelos civilizatórios não mais podiam conviver. Uma guerra civil colocou o país escravista contra o país do trabalho assalariado. A civilização baseada no trabalho escravo perdeu a guerra civil e seu projeto de sociedade foi destruído. O querer do Sul sentiu-se oprimido. Lincoln foi morto e seu assassino o chamou de tirano. Para ele, Lincoln era um tirano, pois lhe impusera um valor. Destruíra o seu modelo de sociedade. Ele se sentia sinceramente oprimido, pois lhe fora tirado o direito de oprimir.

O opressor sempre se sentirá oprimido ao ser-lhe tirado o direito de oprimir. Isso não deve frear nosso ímpeto civilizatório. A direção da boa luta política é esta: a inclusão de cada vez mais indivíduos no nosso grupo de empatia. A cautela em relação a essa meta deve ser apenas estratégica (avançar o mais rápido possível na medida em que a pressa não nos faça retroceder, dada a relação social de forças naquele momento). Entender o outro, compreender o que ele sente não implica necessariamente respeitar e legitimar seu pensamento. Os limites que separam o “compreender e legitimar” do “compreender e não conseguir legitimar” são justamente esses valores civilizatórios inegociáveis. Em outras palavrar, respeitar você, outro, só será possível até o ponto em que o seu querer não seja o desrespeitar o seu outro, seja ele eu, seja um terceiro. Caso contrário, o ceder a esse querer só se dará pela força, pelo domínio. Pela opressão, pois se trata de um território inegociável.

É em torno desse território, desse conjunto de valores, que nossa ação e pensamento político se constituem. É por isso que não nos abstemos de ser parciais (e passo a usar a primeira pessoa do plural porque sei que não estou sozinho). É imperativo avançar no sentido de uma sociedade menos escravocrata. A de hoje é menos escravocrata que a do século XIX. É, porém, chegada a hora de buscar uma sociedade ainda menos escravocrata. O momento de eliminar as hierarquias até agora naturalizadas e incluir, de forma igualitária, negros, mulheres, homossexuais, latino-americanos, árabes, judeus, índios e pobres no nosso grupo de empatia. Se você se sente ameaçado por essa perspectiva, saiba que não nos é mais permitido retroceder. Mas, se desejar juntar-se a nós nesta luta, tenha a certeza de que a sua contribuição, por menor que seja, tornará a vida mais fácil e o mundo mais belo, inclusive no sentido do que prega o melhor do pensamento religioso. Por fim, garantido esse território (a democracia, a liberdade, o rompimento dos grilhões escravizadores), no mais, podemos voltar a negociar.

sábado, 2 de janeiro de 2016

NÃO SOU O RESPONSÁVEL

Aquele que diz "não é minha culpa, eu não votei em fulano" ainda não entendeu o que é viver em sociedade. Não entendeu que uma decisão coletiva é composta por quem votou e por quem não votou na proposta vencedora. Assim, eu posso não ter votado no fulano, mas nós o elegemos. Eu não votei, mas nós elegemos, e eu sou corresponsável pelos rumos da sociedade em que vivo, seja pelo voto, seja pela construção diária do diálogo e de uma realidade melhor. Quem diz "não é minha culpa, eu não queria" simplesmente lava as mãos. Padece, ainda que em menor grau, do mesmo individualismo daquele que se apropria indevidamente de recursos públicos. Não está preocupado em tornar o seu meio melhor, apenas em se isentar de culpa. Ignora que a democracia pressupõe a escolha, e a escolha implica o risco do erro. Quem se abstém de decidir, de assumir posição, de correr o risco do erro, comete o maior dos erros, que é a inércia.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

A NESSECIDADE DE NOS AJUDARMOS

A necessidade de nos ajudarmos não deve ser vista como um peso, um fardo. É uma lei natural da humanidade. Aceitá-la é viver melhor. Não é apenas uma questão de eu ter de ajudar o meu próximo. Isso poderia indicar uma relação assimétrica e pesada. A questão é que nós todos só podemos viver bem se ajudarmos uns aos outros. Melhorar a realidade em que se vive, esse constante imperativo, é uma obra que só é possível com muitos braços. Com a ajuda de muitos, inclusive para que uns percebam e apontem os erros dos outros, para que estes possam ser corrigidos.

Nesse sentido (e aqui é aonde eu queria chegar), tão importante quanto a consciência de que precisamos ajudar os outros é a consciência de que precisamos nos deixar ajudar pelos outros. Porque sozinhos fazemos pouco ou nada, e nos cansamos demais.

terça-feira, 10 de março de 2015

STALINISMO VIRTUAL OU PERCEPÇÃO SELETIVA OU DESLEGITIMAÇÃO DO OUTRO OU UNFOLLOW É VIDA

Nestas épocas de acirramento político, o excesso de chatice é a grande reclamação dos frequentadores do facebook. Os que são de direita não aguentam os posts de esquerda e os de esquerda não toleram os posts de direita. Os de centro não suportam ambos. Uma solução fácil é deixar de seguir os chatos, os que dizem coisas incômodas e os que pensam diferente de você. É a saída mais confortável, certamente, mas esse stalinismo virtual tem seu preço.

Depois de alguns unfollows, esta janela para a realidade passa a exibir a tendência a que você mesmo direcionou: um mundo à sua imagem e semelhança. O problema começa quando você não percebe isso e passa a achar que a realidade é mesmo assim, do jeito que você quer que ela seja.

Lembro que, logo após a recente vitória da Dilma nas urnas, uma pessoa postou: “muito estranho esse resultado... só vejo gente reclamando por aqui, ninguém comemorando”. Só que, enquanto a timeline dela era um mar de lamentação e inconformismo, a minha parecia uma festa do Centro Popular de Cultura da UNE em 1963. Enquanto isso, a realidade das urnas mostrava a média entre os dois mundos virtuais de fantasia.

Por que essa diferença? Porque o facebook, produto comercial que é, é programado para mostrar o que você quer ver. Os “deixar de seguir” e “não quero ver isso” apenas reforçam esse processo. Indo por essa via confortável, sua “janela” vai ficar tão tendenciosa quanto uma rede de televisão que seleciona as notícias conforme os interesses de seus donos.

O resultado é o reforço da percepção seletiva: como você só vê opiniões que confirmam o que você pensa, a sua intolerância com as ideias opostas aumentará. “Como essa pessoa pode pensar isso, se todo mundo diz o contrário? Só pode ser maluco”. A essa altura, já se esqueceu de que todo mundo não é todo o mundo.

Não ouvir o outro, por mais “chato” que ele seja, é deslegitimar o outro. Deslegitimar o outro é matá-lo, fingir que ele não existe. É, por exemplo, fingir que todo mundo que votou na Dilma recebe bolsa família e, por isso, não deve ser considerado. Ou (para não sair da autocrítica) fingir que qualquer que reclame do governo é elite burguesa e, por isso, não deve ser considerado.

Assim, não consideramos o outro, matamos o outro. E quando se mata o outro, não há troca. Vivemos então de casamentos entre primos, promovendo futuras doenças congênitas. A dificuldade de se conviver com o outro é grande, mas a necessidade de fazê-lo é ainda maior.

***

Posto isso, digo agora aos que pedem o tal do impeachment: vocês querem fingir que os 54% de eleitores que votaram na Dilma simplesmente não existem, ou não devem ser considerados. O mandato dela é efeito do voto dessas pessoas, e não sua causa. Se ela deixar o cargo nós não deixaremos de existir, nem mudaremos de opinião. Vocês não conseguirão, com seus golpes, esculpir a realidade à sua imagem e semelhança. Porque cê mata uma e vem outra em seu lugar. 

sábado, 10 de janeiro de 2015

ZODAC

Antes de se discutir imprensa ou religião, temos um crime contra a vida. Essa é a dimensão e o tamanho da tragédia. Quem mata um homem mata a humanidade. E não há pessoa sã que não se comova diante de um assassinato brutal e múltiplo. Não há o que justifique, não há desculpa, não há o que diminua a dor.

Dito isso, gostando ou não, as discussões subjacentes à tragédia do Charlie são inevitáveis. E a lenha está posta na fogueira bélica que confronta ocidentais a orientais, franceses a argelinos, cristãos a islâmicos.

Mas, se há alguma conclusão possível desse episódio tão desconcertante, é a de que a realidade não é binária. Ela é bem mais complexa que uma galeria de personagens de He-Man, em que bem e mal estão bem definidos.

Não é o que somos que nos diferencia, é o que fazemos e o que não fazemos. O que define um assassino é o cometer assassinato, não o fato de ele ser árabe. O francês que agora quer a volta da pena de morte (da guilhotina, quem sabe?) e o que vê na tragédia uma oportuna licença para o seu ódio preexistente aos muçulmanos, esses são iguais ao terrorista. Suas mentes seguem a mesma lógica: a de que mais violência é solução para a violência. É a ilusória lógica fascista de que a força tudo resolve.

Ora, não precisa ser gênio para saber onde essa lógica leva, basta olhar para este século e ver como a guerra infinita ao terror tem sido bem-sucedida apenas em criar ainda mais violência e mais terroristas.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

LIBERDADE

Ele andava pelo Largo da Carioca ao final da tarde quando se deparou com a manifestação. Apenas meia dúzia de pessoas com cartazes. Mas seis pessoas com um alto-falante podem ser bastante incômodas. O que segurava o alto-falante bradava um discurso furioso contra a corrupção. O bom do discurso anticorrupção é que, além de simples, cativa facilmente os ouvintes. Todo mundo é contra a corrupção, até o corrupto. Por isso, tal discurso funciona bem como trampolim para outros discursos furiosos.

E foi exatamente isso que o tal sujeito fez. Logo passou do discurso anticorrupção ao discurso furioso contra o comunismo. "Eles agora ensinam nas universidades que o comunismo é bom", dizia. Temendo a tal "ditadura comunista", o manifestante demostrava sua preocupação com a livre difusão de ideias estranhas, diferentes das suas, diferentes do "normal".

“Eles ensinam”, dizia ele, “que você pode ser o que quiser! Que você pode ser 'viado' se você quiser, que você pode ser 'homem' se você quiser!” O bom dos discursos fascistas é que eles não demoram a se perder em seu próprio absurdo. Afinal, por que era tão ruim para ele "poder ser o que você quiser"?

O fato incomodou bastante o passante. "Era só meia dúzia", ele pensava consigo, tentando afastar. Mas meia dúzia, às vezes, têm alto-falante, às vezes têm recursos, ás vezes têm espaço na mídia. Podem mesmo incomodar.

Felizmente, a muitos resta a fé e, no caso do passante, a exótica fé de que nada é por acaso. E o encontro involuntário com o vociferante fascista também não havia de ter sido por acaso. A simples possibilidade de que gente como ele volte a ter comando fez o passante ter um até então inédito apreço pela liberdade.

Ele nunca pensou muito sobre o valor da liberdade, voltando suas reflexões mais para outras virtudes sociais: a fraternidade, a igualdade, a solidariedade, a paz, o amor. Mas a liberdade... Sempre pareceu muito vaga, abstrata, retoricamente manipulável. Talvez por isso ele não tenha lhe dado muito valor. Mas talvez porque ele sempre fora livre, sem perceber.

Esquecendo por um minuto a imprecisão da noção de "opção sexual", não parecia ruim a ideia de que você pode ser "viado" se você quiser. Não, ele não era, nem pretendia ser. Mas se por acaso um dia acordasse meio "viado", ele não seria preso por isso. E isso lhe pareceu bom! Ele era o que a sociedade hétero normativa considerava "homem". E também lhe pareceu muito bom poder ser "homem" se ele quisesse.

Era muito bom ser livre. Era, de fato, muito bom viver em lugar em que se podia ser o que se quisesse, desde que não se fizesse mal a ninguém e se respeitasse as diferenças.

Muitos que, como ele, cresceram depois de 1985 talvez nunca tenham pensado a respeito. Mas, depois de um 2014 de incômodas meias dúzias fascistas, talvez seja mais do que hora de se refletir. Refletirmos como é bom "poder ser o que você quiser". É muito bom poder ser "viado" se você quiser e poder "homem" se você quiser. Poder ser músico de rua, se você quiser e poder ser pastor, se você quiser. Poder ser negro, se você quiser e poder ser mulher, se você quiser. Poder ser romântico, se você quiser e poder ser cético, se você quiser. Poder ser sambista, se você quiser e poder ser roqueiro, se você quiser. Poder ser evangélico, se você quiser e poder ser ateu, se você quiser. Poder ser comunista, se você quiser e poder ser liberal, se você quiser.

E seria mesmo muito ruim não poder escolher.

Aparentemente, nada é mesmo por acaso. E depois de tangenciar por um momento a falta dela, o passante amou a liberdade, e se sentiu muito bem. Era mesmo muito bom ser livre.